Vamos combinar que hoje em dia já é bastante conhecida a história que envolve a apresentação de Beyoncé, ao lado do grupo The Chicks durante o Country Music Awards de 2016 - e que resultou em um sem fim de reações racistas, misóginas, sexistas. Texana de nascimento, a maior rainha do pop estaria portanto impedida de cantar um estilo normalmente ligado, ao menos na atualidade, aos rednecks sulistas, que seguem batendo cabeça sobre como devolver Donald Trump ao poder? Não mesmo. Ainda que Texas Hold'Em possa ter sido um forte aceno ao gênero - como já havia ocorrido no passado em Daddy Lessons, presente em Lemonade (2016) -, o caso é que Cowboy Carter é muito mais do que o disco de country music da Bey. Pode ser o ponto de partida, uma investigação, um tratado histórico, como ela costuma fazer. Mas há muito mais do que Willie Nelson e Dolly Parton avalizando ou banjos respingados aqui e ali. E esse é um trabalho da Beyoncé que, vamos combinar, só poderia ter sido feito por ela. Especialmente por conta de suas origens. E, enfim, lidem com isso.
Sequência da trilogia que se iniciou com o festivo e dançante Renaissance - nosso terceiro favorito na lista internacional de 2022 -, aqui temos uma artista afiada no exame de sua terra natal em todos os seus preconceitos, mas sem deixar de expressar seu amor por ela. Somos seres complexos e ao trafegar por tantos gêneros - do hip hop ao gospel, passando pelo R&B e pelos ritmos africanos -, Beyoncé constroi uma epopeia revisionista provocativa, que escava o justo espaço histórico das mulheres negras, em um ambiente normalmente dominado por homens brancos, conservadores. Músicas como 16 Carriages são poderosas não apenas pela subversão melodiosa e pela letra potente sobre o desenraizamento repentino e os traumas decorrentes (Aos quinze anos, a inocência se extravia. / Tive que cuidar de casa em uma idade precoce), mas pelas possibilidades de transformação para além do purismo bucólico do gênero. É um disco pra degustar com calma - são 27 canções e quase 1h20 de duração - com as letras a tiracolo, lendo outras análises, resenhas, comentários. Um projeto que certamente será estudado no futuro, revisitado, redimensionado. Ousada, divertida, perspicaz, iconoclasta, sensual, confiante, Beyoncé invadiu o cenário do filme do John Ford e subverteu toda a lógica. Amém.
Nota: 9,5
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