De: Daniel Bandeira. Com Malu Galli, Zuleika Ferreira, Tavinho Teixeira e Carlos Amorim. Suspense / Drama, 2022, Brasil, 100 minutos.
Entendo que em muitos casos o cinema possa ser catártico, ser veículo para explosões emocionais diversas ou mesmo o caminho para a expiação. Compreendo também que a arte possa quebrar expectativas, subverter lógicas, ser até mesmo uma forma de libertação, de cura. Mas enquanto assistia ao turbulento Propriedade, segundo longa-metragem do diretor Daniel Bandeira, só conseguia pensar nas interpretações possíveis a respeito da obra - e sobre se ela seria bem recebida pelo público em geral (já tão disposto à beligerância, ao confronto, e à procura por inimigos reais ou imaginários). E eu confesso que assistir a um grupo de trabalhadores sem terra revoltados - com justiça, diga-se, especialmente levando-se em conta o conceito freireano de Justa Raiva -, reagindo aos seus empregadores com um tipo de violência caótica quase sádica, me questionava sobre a contribuição desse tipo de experiência para qualquer tipo de debate sobre diferenças de classe, contrastes sociais e o abismo existente entre os ricos e os miseráveis do Brasil.
Quem me acompanha por aqui - e me conhece na vida real - sabe que sou um progressista, que acredita na importância de políticas públicas que promovam igualdade social e que visem a uma sociedade mais justa e igualitária. São anos e anos de atraso de um Brasil que, vá lá, só expurgou a escravidão como uma mera formalidade - e sequer surpreendem as várias notícias País afora sobre grandes propriedades rurais que ainda mantém trabalhadores vulneráveis (e extremamente pobres) em condições análogas à escravidão. Pode até não haver mais o chicote e o tronco institucionalizado - bom, vai saber, talvez em alguns lugares esses equipamentos não tenham sido suprimidos -, mas o sistema, na atualidade, mudou de formato. Em muitos casos o empregado é conduzido a "morar" forçadamente no local de labuta, sob a desculpa de ter melhores condições de vida - ainda que isso envolva jornadas sufocantes, desrespeito à qualquer tipo de legislação do trabalho ou supressão completa de direitos. Já vimos filmes e obras de arte sobre o assunto. Com justíssimas revoltas, que acompanhamos com sangue nos olhos.
Mas não sei se houve algum tipo de problema estrutural em Propriedade, ou sou eu que tô sendo o tiozão que, aos quarenta e dois anos, não consegue mais acreditar em revolução, em insurgência e, principalmente, em "olho por olho, dente por dente". Muitos são os teóricos que afirmam que só construiremos uma sociedade melhor se tivermos mais empatia, mais compreensão, mais capacidade de ouvir o outro lado. Mais conciliação. E, vejam bem, é ÓBVIO que os trabalhadores em condições precárias que são vistos no filme de Bandeira são (ou deveriam ser) os mocinhos da história. Mas quando assisto a eles tentando assassinar uma mulher - por mais que seja a mulher branca, patroa, a senhora de escravos moderna e vilanizada -, dentro de um carro, sufocada por fumaça de uma fogueira, não consigo me sentir muito bem. Já que vejo apenas a brutalidade. Tem algo meio estranho e que difere, por exemplo, da experiência com Bacurau (2019), que também exibe esse tipo de revolta popular. Aqui a subversão converte boa parte do coletivo de empregados nos vilões apenas bestializados - com seus comportamentos intempestivos, meio xucros, muitas vezes incapazes de qualquer tipo de diálogo.
E, vamos combinar que o fato de a protagonista vivida pela atriz Malu Galli ser uma mulher traumatizada justamente por ter sofrido um sequestro relâmpago no passado - tentando reiniciar a sua vida após o ocorrido -, não ajuda muito. Ainda que adicione complexidade às relações sociais que acompanhamos na produção. Ninguém é, afinal, mocinho ou bandido o tempo todo - e ao menos o realizador se ocupa em conferir personalidades eventualmente distintas ao grupo de trabalhadores (alguns são naturalmente mais brutalizados e querem vingança, outros querem apenas fugir daquele local a qualquer custo, outros são mais imprevisíveis em seus atos). O que não deixa de ser um mérito, ainda que a violência esteja sempre pelas bordas. Há mais camadas nesse contexto. Mesmo assim, no combo geral me deu um ruim, especialmente quando me percebi torcendo pra que a protagonista se livrasse daquele sufoco. Que conseguisse escapar. Que a lei não fosse balizada por um conceito de selva, de Idade Média, de "vitória do mais forte". Senão a gente nivela a coisa por baixo. E até para vencer essas batalhas é preciso ter inteligência.
É um filme de horror sobre disparidades que descamba pra extrema violência? Ok, talvez seja apenas isso. Catártico, como disse no começo. Só que no meio do caminho eu quase esqueço que se tratava de uma obra sobre um grupo de agricultores desalentados de uma grande fazenda de gado, que será vendida para ser convertida em um hotel - o que resultará na "demissão" de todos ali (que, sem documentos, sem vínculos, sem qualquer direito, sairão com uma mão na frente e outra atrás). De novo, a vilania está no sistema como um todo: nas heranças, nos luxos, no capitalismo, nos ricos cada vez mais ricos, às custas dos pobres que não conseguem crescer de geração em geração, permanecendo na miséria. Matar uma mulher em seu próprio carro, sufocada? Uma mulher enclausurada e sozinha, aterrorizada e com medo diante da massa zumbificada? O momento no Brasil é complexo. E, enquanto subiam os créditos, já conseguia imaginar o tiozão classe média, saindo da sessão de cinema e dizendo pra esposa antes de ir comer seu lanche no McDonalds: "bem que na mídia disseram que não dava pra confiar no MST". Posso estar exagerando? Há outras leituras, certamente. Mas a minha foi essa. Sendo o mais honesto possível.
Nota: 5,5
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