De: Kaouther Ben Hania. Com Mariam Alferjani, Ghanen Zrelly e Anissa Daoud. Drama, Tunísia / França / Líbano / Noruega / Qatar / Suécia / Suiça, 2017, 100 minutos.
Um estupro aparentemente cometido por policiais. Esse é o ponto de partida de uma madrugada em que Mariam (Mariam Alferjani), a protagonista de A Bela e os Cães (Aala Kaf Ifrit) - filme tunisiano disponível no Mubi -, sofrerá um sem fim de abusos físicos e psicológicos enquanto se esforça em denunciar a violência sofrida. Afinal de contas, como que se denuncia um abuso que é cometido justamente por aqueles que deveriam defender o cidadão? Sim, unidades de polícia criminosas, corruptas, violentas não parecem ser exclusividade do Brasil e, em países ainda mais misóginos, machistas e patriarcais como a Tunísia, todo esse contexto parece ser ampliado. A dificuldade geral em relatar um crime sexual vai do hospital, passando pela delegacia até chegar à esfera privada, onde uma mulher violada ainda corre o risco, como consequência, de ser considerada impura, marginalizada (especialmente em nacionalidades em que o fanatismo religioso impera).
Filmada quase como se fosse um grande plano sequência, a obra da diretora Kaouther Ben Hania - do recente (e ótimo) O Homem que Vendeu Sua Pele (2020) - assume um caráter propositalmente documental, inserindo o espectador como uma espécie de observador a se deparar com a completa sensação de abandono vivida por Mariam. Tudo começa em uma festa, onde a jovem está curtindo uma noite com as amigas - com direito a socorro de uma delas para uma troca de vestido já que o outro rasgou em um "acidente" na boate (aliás, o tipo de detalhe que funciona como uma espécie de rima visual perfeita sobre a temática do filme). Mais adiante, a protagonista conhece Yousseff (Ghanen Zrelly), se interessando pelo sujeito. Quando ocorre um corte do primeiro para o segundo ato - de nove no total -, Mariam já surge desesperada, fugindo de algo muito traumático que parece ter ocorrido. E é aí que uma verdadeira via crúcis em busca de justiça tem início.
Realista ao abordar a sensação de abandono social em episódios do tipo, o filme nos conduz inicialmente ao hospital onde, em vão, Mariam e Yousseff se empenham em obter algum tipo de atestado, um documento qualquer, que possa ser a comprovação de que ela foi violada. O que permitiria dar encaminhamento a um boletim de ocorrência com mais informações. No hospital as perguntas e respostas de médicos e enfermeiros variam de "mas ela está mesmo doente?" a "isso eu não tenho como tratar por não ser algo da minha alçada". Na delegacia, tudo se torna ainda pior, mais agressivo, mais torpe, mais revoltante, com os "homens da lei" agindo como figuras debochadas, cínicas, que colocam o tempo todo em dúvida as denúncias citadas por Mariam. As provocações chegam a Yousseff que reage e acaba sendo preso por desacato. "Esse cara não deveria estar lá pra te proteger?", questiona um policial - o mesmo que, mais tarde, verbalizará o inevitável "mas também com essa roupa, como você acha que não vai ser estuprada?", no mais famoso argumento de culpabilização da vítima que conhecemos.
Dolorida, a experiência evidencia a completa falta de justiça em episódios do tipo. Tudo é filmado de forma urgente, com uma câmera meio trepidante, próxima dos envolvidos, o que amplia a sensação de incômodo generalizado. Em uma das tantas cenas chocantes, a jovem praticamente implora que a polícia não telefone para o seu pai, o que tornaria tudo pior. Sim, em um episódio envolvendo um estupro, a protagonista não encontrará amparo na própria família que, em uma sociedade fechada, conservadora, provavelmente concordará com a justiça a respeito de supostas roupas inadequadas, comportamentos sexualizadas ou atitudes depravadas. Afinal, onde já se viu a mulher ser dona do próprio corpo né? Decidir como quer agir, pensar, vestir? Isso me fez lembrar do famoso episódio em que o Rodrigo Constantino, esse projeto mal acabado de articulista político, afirmou que castigaria a própria filha se ela chegasse em casa denunciando um estupro (Constantino se referia ao famoso caso Mari Ferrer). Esse é o tipo de coisa que faz com que percebamos que, em tempos de Bolsonaro, o Brasil não está assim tão distante da Tunísia.
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