De: Atom Egoyan. Com Sarah Polley, Ian Holm, Alberta Watson, Bruce Greenwood e Simon Baker. Drama, Canadá, 1997, 112 minutos.
Mais de uma vez durante o transcorrer de O Doce Amanhã (The Sweet Hereafter), gélido filme do diretor Atom Egoyan, Nicole (Sarah Polley) realiza leituras do poema O Flautista de Hamelin. Escrito por Robert Browning em 1842, o texto remonta à Idade Média e conta a história de um gaiteiro de roupas coloridas, que é contratado por uma cidade para atrair ratos com seu cachimbo mágico. Só que quando os cidadãos se recusam a pagar pelo serviço de desinfestação, ele se vinga da cidade usando o seu poder mágico contra os seus filhos - atraindo-os assim para longe. Nesse contexto apenas uma das crianças não consegue acompanhar o cortejo: ela é manca. Nicole, que lê e relê a fábula para os filhos de Billy (Bruce Greenwood) é a única sobrevivente de um grave acidente com um ônibus escolar, que tirou a vida de 14 crianças de uma pequena cidade do interior do Canadá. Ela está em uma cadeira de rodas. E talvez não queira acompanhar os "ratos" que desejam dela uma vingança diante do ocorrido.
Por ratos leia-se, na realidade, o advogado Mitchell Stephens (Ian Holm), que parece ver na tragédia uma grande oportunidade de processar os responsáveis - e faturar uma boa grana. As intenções dele parecem nobres. Mas será? A cidade que ele encontra após o acidente parece meio paralisada, estática, entorpecida com a dor. Seus moradores mal se movimentam, agem com discrição. Há algo que parece estar pairando o tempo todo sobre aquela comunidade - algo que está escondido, submerso. Segredos? Questões sem uma resposta clara? A incerteza e a letargia surgem em cada canto, em cada encosta coberta pela neve, em cada estrada vazia e solitária percorrida. Há um frio generalizado e dolorido que parece saltar o tempo todo da tela. As pessoas estão enlutadas e talvez cansadas. O jurista realiza o seu périplo em busca de interessados em entrar com uma ação. Contra qualquer um: o departamento de transportes, a fabricante do ônibus, a própria motorista. É tudo sutil, mas ao mesmo tempo turbulento.
A primeira parada do protagonista é na casa dos donos do motel local Wendell (Maury Chaykin) e Risa (Alberta Watson) que recebem o sujeito meio à contragosto. Perguntados sobre os demais moradores, o casal - que mais briga do que dialoga - parece incapaz de falar qualquer coisa de positivo dos demais habitantes. Um é um beberrão, outra age como uma prostituta, um terceiro é um picareta, drogado ou hippie. Há feridas abertas entre todos ali, o que vai evidenciando aos poucos que, por baixo do véu branco de um coletivo de famílias que busca se reerguer, reside um sem fim de ressentimentos, que tornarão complicada qualquer ação mais coletiva. Não demora para que outros segredos venham à tona: Risa, por exemplo, trai o seu marido com Billy. Já Nicole, postulante a cantora country parece ter uma relação quase incestuosa com seu pai Sam (Tom McCamus). A hipocrisia anda em toda a parte, em cada curva, prestes a sair da estrada. Como um ônibus desgovernado.
Ganhador do Prêmio Especial do Júri de Cannes em 1997 e indicado a dois Oscar, O Doce Amanhã é, atualmente, uma obra que divide opiniões. Há quem considere o estilo melodramático meio datado e a ambientação geral meio brega. De minha parte considero que o filme de Egoyan funciona muito mais como uma experiência sensorial do que necessariamente como um filme de tribunal, com advogados indo até as últimas consequências em processos. Nesse sentido há que se considerar as escolhas técnicas bastante sofisticadas para um filme do final dos anos 90 - suas tomadas aéreas amplas, os planos gerais que acompanham o ônibus, a trilha sonora comovente, a fotografia esbranquiçada e paralisante. É, ao cabo, um drama triste que nos evoca para que prestemos atenção aos detalhes, ao que está nos cantos, àquilo que talvez não seja tão óbvio. Decifrar o final talvez não seja tão simples: mas para uma comunidade que convive com a dor, a expiação do luto já será castigo suficiente.
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