quarta-feira, 8 de junho de 2022

Cinema - Miss França (Miss)

De: Ruben Alves. Com Alexandre Vetter, Thibault de Montalembert, Pascalle Arbilot e Isabelle Nanty. Comédia, França, 2020, 107 minutos.

Foi em 2018 que a espanhola Angela Ponce fez história ao se tornar a primeira candidata trans a disputar o Miss Universo. O que, vamos combinar, representa um avanço em um meio tão conservador, quase parado no tempo, como é o de alguns concursos de beleza. Pois o assunto que costuma dividir opiniões ressurge no ótimo Miss França (Miss), filme sobre um jovem garoto que sonha em disputar o concurso. Aliás, a obra de Ruben Alves já abre com uma daquelas sequências de escola, onde um grupo de crianças expressa o que "deseja ser quando crescer" - com Alex (vivido pelo modelo Alexandre Vetter em sua fase adulta) verbalizando seu sonho em frente a turma. Um corte temporal nos leva 15 anos adiante, onde a protagonista sobrevive em meio a atrasos de pagamento na pensão que divide com um coletivo diversificado de minorias - pessoas de outras nacionalidades, trabalhadores precarizados, travestis e outros.

O sonho de se tornar miss não arrefeceu no coração de Alex. Ao contrário, ele volta à baila justamente quando ele reencontra um amigo de infância na academia de boxe do bairro. Discutindo temas contemporâneos como identidade de gênero, papel da mulher na sociedade e importância da sororidade (especialmente em ambientes machistas e patriarcais), a obra parte do tradicional universo que envolve esse tipo de disputa para, aos poucos, deixar evidente de que não se trata de torcer para que alguém vença uma simples competição. Há, ao cabo, algo maior em jogo, que permitirá outras vitórias, outras conquistas que dizem mais respeito à aceitação, à ocupação de espaços e a superação de preconceitos. Tão ou mais destemido do que o amigo que hoje é campeão de boxe, Alex se desafiará a enfrentar as etapas que envolvem o concurso, podendo expressar aquilo que sempre sonhou - no caso, a sua feminilidade.


E tudo isso é resolvido no filme com uma leveza impressionante. Enquanto Alex avança na etapa regional - que lhe leva à nacional -, mantendo o seu segredo, ela vai se tornando a cada dia mais feminina, mais envolvida com aquele contexto, com direito a mudança de postura, de figurinos e uso de maquiagens. Os comentários sociais sobre a necessidade urgente dos concursos de beleza avançarem para além da banalidade da beleza em si também possibilitam um debate mais amplo sobre o assunto. O que também  permite a inserção de piadas divertidíssimas, como a que envolve a ida das misses para a beira de uma praia imunda na Bélgica, onde farão uma coleta simbólica de lixo. A ideia é divulgar uma suposta preocupação com o meio ambiente, o que envolverá também o engajamento nas redes sociais. Só que para a protagonista, os propósitos serão outros, claro. E não é demais lembrar que uma miss trans já representa, por si só, uma quebra de paradigmas suficiente.

Com dificuldades que envolvem a incapacidade de se enturmar com as demais candidatas, passando pelo comportamento linha dura de Amanda (Pascalle Arbilot), a organizadora do evento, a obra flui de forma vigorosa mas acessível, transgressora mas palatável, apostando também no carisma do elenco como uma de suas fortalezas (e não deixa de ser uma ótima surpresa ver um ator veterano como Thibault de Montalembert esbanjando personalidade e versatilidade na pele da prostituta Lola). Entre idas e vindas será justamente a família "improvisada" de Alex - no caso, o pessoal da pensão - que lhe ajudará no sentido de não permitir que o sonho perca força. Trata-se, ao cabo, de uma experiência de grande sensibilidade, que aposta na delicadeza como combustível - o que quase faz com que quase nos esqueçamos o fato de estarmos um um mundo tão cheio de preconceitos, de ódio e de intolerância. Refletir tudo isso é o que faz a experiência valer a pena. O que faz com que a vitória venha por outros caminhos.

Nota: 9,0


Nenhum comentário:

Postar um comentário