De: Maite Alberdi. Com Elisa Zulueta, Francisca Lewin e Marcial Tagle. Drama / Policial, Chile, 2024, 92 minutos.
O conceito de liberdade para as mulheres está no centro da discussão do envolvente No Lugar da Outra (El Lugar de la Otra) - o enviado do Chile para a categoria Filme em Língua Estrangeira para o Oscar 2025, e que acaba de estrear na Netflix. O que é, afinal, ser uma mulher livre? Hoje em dia esse ideal poderia ser exemplificado pela capacidade delas em serem reconhecidas como seres ativos, pensantes e com vontades próprias - que reivindicam ainda seus direitos como cidadãs. Claro, as concepções por trás podem ser muito mais complexas, mas o que se sabe é que nem sempre foi assim - e décadas atrás era mais comum o controle de corpos, vozes e mentes, que convertiam as mulheres em sujeitos passivos na sociedade. No filme da diretora Maite Alberdi - do tocante documentário A Memória Infinita (2023), nominado ao Oscar no ano passado -, a trama se passa nos anos 50, no Chile.
Sim, esse período anterior à era da "lacração" - e que muitos extremistas de direita redpillados sonham com o retorno - é justamente aquele que relega mulheres à condição de donas de casa obedientes, que ocuparão seus dias cuidando da casa, dos filhos e das refeições dos demais (muitas vezes homens infantilizados, que parecem incapazes de sobreviver se não houver uma mulher na cozinha ou no tanque). E o mais curioso é o fato de que, quando essa obra inicia, com um crime bárbaro - no caso, o assassinato de um homem em pleno salão de chá do famoso hotel Crillón, de Santiago -, temos a impressão de que acompanharemos um thriller passional de tribunal, que revelará aos poucos as motivações da escritora Maria Carolina Geel (Francisca Lewin) para, simplesmente, sacar a arma, à luz do dia, e na frente de dezenas de outras clientes, para matar seu amante, Roberto Pumarino Vallenzuela. Mas não.
Aqui, o que perceberemos é que essa história meio hitchcockiana, de sangue e tragédia na classe média alta, será apenas uma desculpa para que Alberdi avance a narrativa para além do crime de amor e vísceras - especialmente após Mercedes (Elisa Zulueta), a secretária do juiz governamental que cuida do caso, ficar obcecada pelo ocorrido. Do estranhamento inicial com os pequenos conflitos - Mercedes chega a confrontar Geel por conta de um mero cigarro solicitado -, para o fascínio diante de uma vida de glamour, intelectualidade, sofisticação e independência vivida pela assassina, será um tapa. Ainda mais pelo fato de Mercedes estar meio que de saco cheio de sua própria vidinha ordinária - sempre confinada em uma casinha minúscula, com dois filhos adolescentes e barulhentos, compartilhando ainda o espaço com o marido, um fotógrafo meio pé rapado que utiliza a própria residência da família para a produção de fotos, em um estúdio apertado e improvisado.
Então quando o juiz envia Mercedes para a residência de Geel para uma apuração lateralizada, ela fica impactada pelo que encontra - no caso, roupas elegantes, acessórios luxuosos, maquiagens, perfumes, livros. E, principalmente, uma paz. Um tipo de paz que ela, aparentemente, não lembrava de ter sentido anos antes - e que guarda semelhança com as sensações vividas pela protagonista do divertido e caótico My Happy Family (2017), filme da Geórgia que já esteve na Netflix (infelizmente não está mais). Claro que a investigação seguirá normalmente, com testemunhas sendo ouvidas e o impacto da opinião pública em estado de choque por um evento real desta magnitude, sendo invariavelmente levado em conta. Com tudo se tornando mais complexo quando Mercedes resolve fazer uma visita à ré, que aguarda por sua sentença em uma Instituição coordenado por freiras - um espaço tranquilo, quase idílico -, ao mesmo tempo em que elabora uma nova obra de ficção.
Em uma carta destinada ao amante morto, Geel, que se inspirou em outro caso ocorrido anos antes, envolvendo a romancista María Luisa Bombal, em janeiro de 1941, no mesmo local, afirmou: "Roberto, minha natureza, minha personalidade, meus passatempos, minha idade, minha experiência são contrárias ao casamento. Se adicionar uma profunda sensibilidade à equação, sempre em conflito com as coisas e os seres, e um total ceticismo sobre a vida, você aceitará que nada em mim corresponde a essa instituição". Vai ver o amante desejava algo mais sério com a escritora - o que talvez envolvesse algum tipo de castração artística que não corresponderia à sua natureza. Óbvio que isso não é motivo para sair assassinando alguém. Só que essa morte passa a ter um cunho mais simbólico - um homem que morre para que uma mulher (re)nasça -, quando Mercedes se dá conta do significado de ser uma mulher livre. Uma mulher que não precisa encerar a casa. E nem ficar aos gritos com marido e filhos desrespeitosos. Ela apenas tem paz. Alguém afinal, precisa ir até o extremo. Geel teria matado por amor? Por amor a arte? Fica a reflexão.
Nota: 8,0
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