sexta-feira, 3 de julho de 2020

Pérolas da Netflix - Sombras da Vida (A Ghost Story)

De: David Lowery. Com Rooney Mara, Casey Affleck e Brea Grant. Drama / Fantasia, EUA, 2018, 92 minutos.

Eu já tinha falado do Sombras da Vida (A Ghost Story) antes aqui no Picanha, em uma nota bastante curta, quando o filme foi o nosso primeiro colocado na lista de 25 Grandes Filmes do ano de 2017. E como ele foi disponibilizado nesta semana na Netflix, eu considerei esta a ocasião ideal para falar um pouco mais da obra do diretor David Lowery. Por que, sinceramente, este não é um filme qualquer. É uma obra diferente, pouco convencional, intrigante, delicada, que discute temas como passagem do tempo, permanência da memória e luto por meio de uma narrativa que vai no limite entre o minimalismo, a inteligência e a elegância. E ainda consegue tudo isso com um FIAPO de história. Na trama, Casey Affleck é um sujeito que morre em um acidente automobilístico e "retorna" para a sua antiga casa como um fantasma (bem ao estilo daqueles vistos em desenhos animados, com lençol branco e olhos escuros), pra tentar se reconectar (ou consolar) a viúva vivida pela Rooney Mara.

De início parece um filme de terror meio convencional. O casal está deitado na cama, na véspera do acidente, e ouve um barulho estridente vindo do piano da sala. Ao levantar, assustada, a dupla se depara com... nada. Pode ter caído alguma coisa em cima do instrumento? Algum tipo de choque que possa ser explicado pela ciência? Não sei. Casas estalam o tempo todo, fazem barulhos estranhos, aleatórios, vindos de móveis, camas, geladeiras. Quem nunca passou por isso? Quem nunca escutou um ruído meio sem explicação, que tenha nos deixado alarmados? No dia seguinte o acidente ocorre, o fantasma do protagonista não atravessa uma espécie de portal que se arma ainda no hospital e acaba permanecendo no nosso plano. De volta a sua casa, não consegue interagir: é um ectoplasma com um lençol. Está morto. Mas observa. Observa o luto, a dor da ex-mulher. Observa e observa. Os dias passam, a dor da morte é superada. A viúva se muda. O fantasma fica. Como se estivesse grudado, conectado de uma maneira intransferível àquela casa. Única possibilidade de contato com o passado? Um bilhete perdido entre os tijolos e o concreto de uma parede.


Mas a parede será demolida. Outro prédio virá no lugar. Anos e mais anos se passarão. Séculos, eras, períodos. Com o fantasma preso, dolorido, apegado a não se sabe o que e mal e mal a quem. E o "pulo do gato" desse filme, a meu ver, é a capacidade de discutir temas tão profundamente existencialistas ou metafísicos - como medo da morte e resiliência para lidar com perdas -, de uma forma tão pouco convencional. Ok, quando o filme acaba talvez a gente pense "bem, não entendi tudo, o que será que quis dizer aquela parte?". Mas penso que, mais do que isso, é um filme sobre sentir. Sobre sentimentos. Sobre a dor e a necessidade de levantar a cabeça. Sobre o tempo e a capacidade única dele em curar as feridas. O tempo que demora a passar, assim como demora uma eternidade a sequência em que a viúva come angustiadamente uma torta, mas sem prazer algum em apreciar aquilo que come, como se o alimento fosse apenas um refúgio - e, aliás, é uma sequência incrível, que dá conta do talento de Mara em transmitir MUITO, mas de forma econômica, com gestos sutis, uma lágrima que percorre o nariz, uma fungada.

É filme de detalhes que se vale muito da parte técnica para funcionar - e que, eventualmente, exigirá um pouco de paciência do espectador. Há ali uma fluidez narrativa diferente, uma morosidade que dialoga com aquilo que assistimos - que tem a ver com espera, com calma, com respeito ao tempo. Atento aos detalhes, Lowery insere aqui e ali instantes pequenos que gritam muito, como no momento em que um evento sobrenatural revela uma edição de O Amor Nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marquez - quer livro mais adequado para falar sobre passagem do tempo? Em outra sequência, a gente descobre como "funciona" uma casa insanamente mal assombrada. É algo inteligente, que provoca, que nos faz refletir. Ao final, como já dito, não haverá solução óbvia. Mas, o melhor: a gente ficará pensando no filme por semanas, talvez por meses ou anos. Como obra de arte ele perdurará, atravessará gerações, continuará. Assim como continua a Nona Sinfonia de Beethoven. Assim como fica a evocativa música I Get Overwhelmed, do Dark Rooms - que integra a trilha sonora. E uma obra que transcende de forma tão vigorosa os limites do cinema, vamos combinar: é maior do que qualquer coisa.

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