quarta-feira, 8 de julho de 2020

Pérolas da Netflix - Ninguém Sabe Que Eu Estou Aqui (Nadie Sabe Que Estoy Aqui)

De Gaspar Antillo. Com Jorge Garcia, Millaray Lobos e Luis Gnecco. Drama, Chile, 2020, 100 minutos.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.

É sempre no meu não aquele trauma.

                                               Carlos Drummond de Andrade

Não há espaço para os desajustados. Ligamos a televisão, acessamos nossas redes sociais e percebemos uma série de padrões impostos: o que devemos vestir, o que devemos comprar e, claro, o que devemos ser. A verdade é que o dito popular “uma imagem vale mais que mil palavras” parece ter tomado conta do nosso imaginário e não conseguimos mais conceber o diferente. Você só existe se é uma imagem agradável. Se não, está fadado ao anonimato ou ao sofrimento constante de tentar ser aquilo que você não é. Pare e pense por alguns segundos, não há cantor de sucesso nos holofotes se está fora dos padrões de beleza. A mídia compra o belo, o estilo e o engajamento social, sem isso você tem apenas... talento? Dom? Os jurados virarão a cadeira para você, encantados por sua voz. Mas nesse caldeirão, no domingo à noite ou nos milhares de stories, não há espaço para os desajustados.

É nessa indústria cruel do entretenimento que Memo (Jorge Garcia) cresce. Ninguém Sabe Que Eu Estou Aqui (Nadie Sabe Que Estoy Aqui) é um relato lento e melancólico da vida de um talentoso cantor que, por não se enquadrar nos padrões previstos das grandes gravadoras, acabou se tornando um ghost singer, ou seja, foi a doce voz de um corpo magro, bonito e totalmente desprovido de talento. Memo passa por testes e não há dúvida alguma: a sua voz e sua habilidade vocal é admirável, mas o empresário, mais preocupado em quantos discos irá vender, convence o pai do jovem que o melhor caminho é esse, emprestar sua voz, negar sua aparência deixar o jovem Angelo (Gastón Pauls) brilhar. O que vende é o desejo dos primeiros amores adolescentes, não a música. Na tela, observamos um Memo já adulto, com passos muito lentos e totalmente mudo, vivendo em uma pequena ilho no sul do Chile, somente acessível por pequenas embarcações.


A beleza do filme está nos grandes e lentos planos que mostram um ambiente bucólico, frequentado por Memo e seu tio, Braulio (Luis Gnecco), que vivem de um trabalho manual e árduo, criando ovelhas, sem acesso à internet, sem luz elétrica e em silêncio. A atuação de Garcia é melancólica, com intensos olhares perdidos e horas gastas com fantasias de um passado que quase vivenciou, um palco lotado, muitas luzes e ornamentos. Um grande artista que nunca obteve sua merecida glória e é assombrado pela culpa. O paradoxo do cantor que decide viver em completo silêncio. Claro, sua voz não fora o bastante, é compreensível a escolha pela solidão. Este paradoxo encontra o seu ponto alto em uma cena de vômito, quando Memo, após um breve momento de coragem, acaba expelindo um líquido vermelho e repleto de glitter, uma potente simbologia do seu incômodo com um passado que aos poucos vai se refazendo diante do espectador.

A mídia faz um papel importante na narrativa, ao ligar as pontas do passado com o presente. Quem busca o isolamento não quer ser encontrado. O protagonista acaba sendo reconhecido por um jornalista, após uma breve e simpática interação com um celular, presente de Marta (Millaray Lobos), uma amiga de Memo, que “adota” e encoraja o amigo depois de ouvi-lo cantar a famosa música de Angelo, a jovem estrela juvenil que fez sucesso internacional utilizando a voz de Memo. Veículos de todo o Chile invadem e buscam imagens de um Memo decadente. É neste contexto que a obra nos apresenta um imenso desfecho. Uma reconciliação com o passado, um acerto de contas com seus fantasmas. Memo viveu um desconsolado “não”, um trauma, uma ferida intensa. É chegada a hora de, mesmo que num breve instante, se jogar. 


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