Lembro até hoje da minha surpresa quando foi anunciado o vencedor do Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira na cerimônia de 2010: naquela ocasião, O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos) derrotaria A Fita Branca (2009), a assombrosa visão de Michael Haneke da Alemanha pré-nazismo. Passados dez anos do lançamento do filme de Juan José Campanella - que já havia nos brindado anteriormente com jóias como O Filho da Noiva (2001) e Clube da Lua (2004) -, resolvi fazer uma revisão, o que me fez perceber o quão completa é a obra. Não se trata apenas de uma misteriosa "novela" policial, com roteiro intrincado, romances inacabados e um crime de complicada resolução. É uma narrativa engenhosa, que utiliza a parte técnica com vigor, enquanto discute temas diversos como passagem do tempo, permanência da memória, contexto político, relações de trabalho e conflitos amorosos, entre outros. Tudo com grandes interpretações. Tudo dramaticamente comovente. Como muitas vezes é o cinema argentino.
Na trama Ricardo Darín (e quem mais seria?) é o investigador aposentado Benjamín Esposito, que utiliza seu tempo livre para tentar emplacar uma carreira tardia como escritor. Obcecado por um violento assassinato ocorrido no passado, e com dificuldade de transformar em palavras essa narrativa cheia de pontas soltas, ele vai atrás de sua antiga chefe, Irene (Soledad Villamil), para tentar jogar alguma luz sobre os eventos ocorridos mais de 30 anos atrás, em 1974, às vésperas do Golpe Militar argentino (que seria colocado em prática em 1976). Reviver estas memórias poderá servir para que o livro saia do papel. Mas a que custo? E será escavando os velhos traumas daqueles tempos, que Esposito terá a oportunidade de confrontá-los, percebendo equívocos e tentando, tardiamente, reparar erros. Incapaz à época de verbalizar a sua paixão por Irene, o advogado veria ainda uma série de injustiças se descortinarem no que diz respeito ao crime que investiga. E, bom, esse conjunto é que faz com que tenhamos um filme engenhoso, um quebra cabeças elegante, romântico e turbulento.
"O sujeito pode mudar tudo: de cara, de casa, de família, de namorada, de religião, de Deus... mas tem uma coisa que ele não pode mudar: de paixão". Essa é uma frase dita por Pablo Sandoval (Guillermo Francella), colega de trabalho e melhor amigo de Esposíto, em certa altura da projeção e que, de certa forma, resume as pretensões da obra. Aquilo que te comove, que tem significado ou sentido pra ti, não mudará, independentemente do entorno. Pode ser qualquer coisa que mova uma pessoa: para Sandoval é ficar no bar fazendo nada, enquanto enche a cara e observa o movimento. Essa divagação nos jogará para o meio de um jogo do Racing contra o Huracán, em Avellaneda, naquela que é uma das mais incríveis sequências filmadas nesse milênio. A paixão pelo futebol, a arquibancada, a torcida, a emoção do gol se cruzam com as possíveis pistas deixadas por aquele que é o principal suspeito do crime. Ocorre uma perseguição, uma prisão. Não há provas, não há flagrantes, não há nada que ligue aquele eventual torcedor, que era um amigo da vítima, ao assassinato ocorrido. A vida segue. As paixões também.
Mas a cena do jogo de futebol é só um exemplo maior do exercício de técnica executado por Campanella no filme. Entre um flashback esmaecido e outro há as mudanças sutis de aparência entre os envolvidos, que só não modificam o brilho no olhar daqueles que acompanhamos. Há algo muito vivo, muito marcante na forma como todos se olham - especialmente como Irene e Esposíto se enxergam, dizendo muito, mas sem dizer palavra. Um olhar de lado em uma foto pode ser a chave para o crime cometido, assim como um olhar mais atento para o todo pode levar o protagonista a solução do crime, tantos anos depois. É nessa engenhosidade de idas e vindas, de olhares e de não ditos, de personagens que parecem sempre no limite (da exaustão, do cansaço), que vai se descortinando um roteiro cheio de engenharias saborosas, de riqueza de detalhes. É um filme que parece um daqueles vinhos distintos, que vai fazer com que percebamos uma nota não antes sentida, lá no final, no último limite, no gole derradeiro.
Ao cabo de tudo, o diretor argentino realizou uma obra-prima moderna que funciona tanto como romance, quanto como folhetim policialesco. A gente parece sempre estar torcendo para que as coisas deem certo, ao mesmo tempo em que o nosso olhar permanece atento para as possíveis reviravoltas. Os diálogos são um primor, mesmo como quando versam sobre banalidade, como quando Sandoval debocha de Esposíto pela preferência pelas histórias de Perry Mason. Mas possuem valor mesmo, quando se aprofundam nas questões demasiadamente humanas, que fazem com que tenhamos identificação imediata. Quem, afinal de contas, nunca se apaixonou? E resolveu esperar porque AQUELE não era o momento? Mas quando seria? Ou não seria jamais? Há a pessoa certa na hora errada? Há contextos - políticos, sociais, culturais -, que possam favorecer este ou aquele acontecimento? "Apresente suas objeções", suplica Irene, em certa altura, já quase no terço final. O tempo, afinal de contas, passará. E as feridas só serão curadas quando conseguirmos olhar pra frente, sem medo de lembrar do que ocorreu lá atrás. Filmaço!
Nenhum comentário:
Postar um comentário