terça-feira, 22 de setembro de 2020

Livro do Mês - Engole Esse Choro (Laura Peixoto)

"Ninguém pode ser o que é nessa cidade". Essa frase que está lá na página 117, dita pela personagem Belinha - avó da protagonista Eleonora -, parece de alguma forma resumir tudo aquilo que se lê no imperdível Engole Esse Choro, mais recente lançamento da escritora Laura Peixoto. Publicado pela editora Libélula, o livro é muita coisa: novela familiar, romance de formação, narrativa ficcional que carrega nas tintas de realidade. Mas é, especialmente, uma obra que desnovela a hipocrisia que insiste em escapulir pelas frestas de uma sociedade pródiga em apontar dedos, mas incapaz de olhar para si própria com com o mesmo espírito crítico. Arremessados que somos para o suarento (e pestilento) ano de 1974, na provinciana Lacônia do Sul, vemos ecoar nessa pequena e fictícia cidade  - tão parecida com outras tantas que vemos por aí -, a opressão da Ditadura Militar que se avizinha, em um contexto de grande tensão político social. Ao mesmo tempo, alheios a tudo, os laconienses vivem seu idílio particular em meio a festas, corridas, jogos no clube e escolhas da Rainha da Paróquia, se mantendo ocupados também em atividades comezinhas, seja o tricô, o jantar e as roupas que as crianças usarão no desfile.

De alguma forma, Laura transfere para o passado, um tempo que segue sendo o nosso: de alienação, de preconceitos, de desrespeito às diferenças e até de incapacidade de diálogo. Em cada escândalo que vai sequencialmente sendo revelado nos curtos capítulos, um universo de farsa, em que figuras tão dissimuladas quanto caricaturais, transforma a realidade apenas nisso: o real. Do padre que tinha duas amantes ao filho do empresário que se descobre gay, passando ainda pelos homens casados que frequentavam o bordel local, os moradores da Lacônia do Sul nada mais são do que o retrato fiel daquilo que, atualmente, aprendemos na marra a aceitar como o "cidadão de bem". Aquela figura que não falta à missa de domingo pela manhã, que se orgulha de cantar o Hino Nacional e que acredita que a moral e os bons costumes possam estar sendo quebrados por figuras subversivas diversas - seja o colega de aula cabeludo e que talvez fume maconha, seja a professora de artes, empenhada em fazer a turma pensar, sair da alienação.


Encadeando eventos aleatórios, quase como se fossem pequenos contos, a autora de Lajeado, no Rio Grande do Sul, transforma a história da Lacônia do Sul em uma história universal: nela estão os três adolescentes - além da já citada Eleonora, os irmãos Mariangélica e Plínio, os pais Astor e Iolanda, a avó Belinha, a empregada dona Miló. Por trás de cada muro, nos cantos, nas esquinas, vizinhos, conhecidos da cidade, com suas reputações sendo permanentemente postas em jogo, manêm segredos obscuros que parecem sempre prontos a vir à tona - por mais que a imprensa local teime em ignorar os fatos mais sombrios. Mais pitorescos. Aqui e ali as pessoas mais "diferentes", que não sigam o padrão estabelecido, que não incorram nas convenções sociais, são taxadas de subversivas, dissidentes, comunistas. Uma música diferente. Uma arte provocativa. Uma viagem para um País socialista. Uma não ida à Igreja. A quebra de algum contrato qualquer que já esteja pré-estabelecido. A sociedade na Lacônia parece ser olhar e julgar os outros. Por mais que a hipocrisia também possa estar bordejando a entrada da nossa casa.

Em entrevista à Rádio Independente, Laura afirmou que o livro é uma "ficção bem ficcionada, com uns 40% de verdade". Mas pra quem cresceu em Lajeado, não é difícil encontrar paralelos nos locais descritos, que mesclam localidades reais - como o Rio Taquary (ainda que grafado com "y") e o cachorrão do Carmelito -, com espaços fictícios, que podem ir de prosaicas barbearias e botecos, até suntuosas igrejas. Sobre as figuras envolvidas na novela entrecortada por fluxos de consciência de uma pessoa que parece estar no hospital - olhando para o passado ao mesmo tempo em que tenta lidar com o remorso -, é difícil saber o que é real ou não. Laura levou nove anos para escrever a obra, que saiu da gaveta em tempos de bolsonarismo, de militarismo de intolerância e de ódio. Décadas após os Anos de Chumbo, o patriarcalismo, o machismo e a misoginia parecem ter, literalmente, saído do armário, legitimados pela política beligerante vaticinada pelo extremismo de direita. "Engole esse choro", era o que as crianças ouviam antigamente, das bocas de pais excessivamente preocupados, conservadores, quadrados. Nos tempos atuais chorar pode estar sendo a solução paliativa, especialmente na hora de enfrentar esses tempos tão brutos, que seguem dialogando com um passado que teima em ressurgir.

Um comentário:

  1. Quem não quer sair no Picanha? Muito feliz, muito orgulho dessa resenha! Obrigada e abração!

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