Quem já assistiu a Os Pássaros (The Birds), clássico do diretor Alfred Hitchcock, sabe que a obra é uma verdadeira coleção de sequências vertiginosamente aflitivas. Aliás, o filme é todo tenso, num efeito meio curioso que faz com que sintamos alguns calafrios até mesmo nas cenas mais prosaicas - como as que ocorrem no restaurante ou em um eventual barquinho que atravessa a baía. A meu ver é nessa obra-prima que o Mestre aprimora todas as trucagens que lhe consagraram. E o melhor: diferentemente daquilo que ocorre em suas películas anteriores, aqui temos o terror instaurado por uma força da natureza que é, portanto, imprevisível, mais complicada de lidar. O que farão efetivamente os pássaros a cada passo dado pelos habitantes da pequena Bodega Bay ninguém sabe: é diferente de um assassino com uma arma na mão e uma ideia fixa. É tudo imprevisível, cáustico, barulhento, aleatório. A violência vindo do ar, do nada, gratuita, implacável. Um terror incontrolável, pode-se dizer.
E escolher apenas uma sequência que resuma essa catarse aérea que assistimos transpirando da tela, também não é tarefa fácil. Mas existe uma que é tensa não apenas por aquilo que assistimos: mas por aquilo que NÃO enxergamos. E era dessa forma que Hitchcock conseguia, muitas vezes, estabelecer a sua magia. O suspense e o terror pareciam brotar de onde menos se esperava, de uma forma meio contrastante, angulosa, com as acontecimentos se descortinando de forma tópica, mas não menos inquietante. Na cena da escola, a jovem Melanie Daniels (Tippi Hedren) pretende conversar com a professora (vivida por Suzanne Pleshette), para lhe alertar sobre os perigos que podem estar rondando não apenas a pacata cidade, mas o educandário. Se aproxima de uma cerca, fuma um cigarro, enquanto escuta a cantoria dos alunos, uma espécie de música folclórica hipnotizante, que vibra lá de dentro. Há um silêncio no ar. Aparece um pássaro que pousa no trepa-trepa. Mais um. E outro. Ela fuma, a música segue. A escola tem um silêncio plácido. Mais alguns pássaros se movem e...
...bom, é nessa sequência que a gente lembra os motivos de Hitchcock ser considerado um Mestre. A composição dos quadros, os jogos de câmera, as idas e vindas. A música, os contrastes entre a tensão e a calmaria e um trepa-trepa que surge LOTADO de pássaros. Um tipo de sadismo com o espectador que beira o delírio: a gente sabe que algo muito sério está pra acontecer. Percebemos, sentimos. A tensão já vem crescendo. Já houve um ataque. E mais outro, previamente. A cidade está sendo "invadida" por aves frenéticas que atacam, sem lógica. Querem apenas matar o que está pela frente. E resta as demais pessoas fugir. Correr. E lutar pela vida. A cena é demorada, angustiante. Os alunos sofrem com bicadas, sangram, gritam. Os guinchos dos pássaros perturbam, agridem, assim como o bater de asas. Tudo é atordoante, delirante. É como o livro A Pomba, do escritor Patrick Suskind elevado a enésima potência.
Talvez não seja tão simples identificar as metáforas propostas pelo diretor inglês, a partir da obra de Daphne Du Maurier. Há um subtexto permanente que envolve uma mãe "castradora" - no caso a do protagonista Mitch Brenner (Rod Taylor), sempre observado de perto pela matriarca Lydia (Jessica Tandy) -, com um Complexo de Édipo que parece "gritar" para sair da tela. Hitchcock se sentia assim, na vida real, e utilizava a sua obra para expulsar alguns demônios do armário - o que certamente explica a grande quantidade de femmes fatales em suas obras (e ele não faz nenhuma questão de esconder isso). Se os pássaros desse clássico são uma forma de confrontar essa "força da natureza", não temos como saber. Deixando de lado as metáforas, o que se pode afirmar é que este é o último grande filme do inglês. E que levou os seus atores ao limite da tolerância já que, reza a lenda, para conferir realismo à produção, ele chegou a GRUDAR pássaros de verdade ao corpo das vítimas, que saíram, de fato, machucadas). Perturbador é pouco.
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