De: Lynn Shelton, Michael Weaver e Nzingha Stewart. Com Kerry Washington, Reese Whiterspoon e Joshua Jackson. Drama, EUA, 2020, 465 minutos.
Não li o incensado livro Pequenos Incêndios Por Toda a Parte (Little Fires Everywhere), mas a minissérie que adapta a obra da escritora norte-americana Celeste Ng - e que está disponível na plataforma de streaming da Amazon Prime -, é simplesmente imperdível. Trata-se de mais um daqueles dramas familiares, com uma narrativa que intercala idas e vindas no tempo, que revelarão personagens tomando decisões moralmente duvidosas praticamente o tempo inteiro. Tudo embalado por uma forte carga emocional, que vem a reboque de traumas do passado que precisarão ser superados, enquanto temas relevantes como racismo, sororidade, contrastes sociais, romantização da maternidade, xenofobia, poder transformador das artes e bullying são discutidos. E tudo isso sendo apresentado de forma fluída, com o impacto sendo gerado aos poucos e conforme a história distribuída em oito episódios se desenrola.
Tudo começa com um... incêndio. Os bombeiros explicam o caráter excêntrico da origem do fogo: pequenos focos por toda a parte. Como se gerado deliberadamente, premeditadamente. Enquanto os familiares se compadecem entre si, a história volta quatro meses no tempo para nos apresentar a Elena Richardson (Reese Whiterspoon), dondoquinha que vive uma vida de luxo e de abundância, numa espécie de híbrido de dona de casa - que precisa cuidar de quatro filhos já na adolescência -, com jornalista ocasional, que escreve histórias para um semanário local. Com uma suntuosa casa em Shaker Heights, que ela divide com o marido, o advogado Bill (Joshua Jackson), ela resolve alugar por um preço mais baixo do que o do mercado a outra residência da família. A locatária é a artista itinerante Mia Warren (Kerry Washington), que mora em um carro velho com a filha Pearl (Lexi Underwood). Aquilo que ela acredita ser um gesto quase filantrópico, será o início de uma escalada vertiginosa de acontecimentos que, aos poucos, abalarão o idílio que todos pretendiam estar envolvidos.
Figura misteriosa, Mia parece ter uma série de segredos relacionados ao passado. Mesmo sendo artista plástica de talento, parece nunca ter "acontecido". E por quê a insistência em viver uma vida nômade? Do que exatamente ela "foge"? Quem é o pai de Pearl e o que teria acontecido com ele? De alguma forma, essas dúvidas instigarão Elena a fazer uma verdadeira investigação sobre o passado de sua mais nova locatária. Pior, como forma de se aproximar ainda mais dela, a convidará para trabalhar em sua casa, dando a desculpa da oportunidade de ampliar os rendimentos. E os trabalhos poderão ser diversos: da preparação prosaica de refeições até a realização de fotografias em eventos bem típicos da burguesia (caso do aniversário de um ano da filha de uma amiga de Elena). Aliás, o aniversário em questão será simplesmente bombástico, o que nos arremessará para o passado de todos ali envolvidos, nos apresentando ainda uma personagem importante dentro da narrativa - no caso, a jovem garçonete Bebe Chow (Lu Huang), uma imigrante ilegal que trabalha no mesmo restaurante de Mia (ela intercala turnos).
E enquanto os "adultos" vão desnovelando um verdadeiro rocambole de fatos escabrosos que culminarão no inacreditável episódio final - com direito a cenas em um tribunal -. os jovens também vão vivendo seus dramas. Pearl respeita a sua mãe, mas não entende muitas coisas que acontecem em sua vida, o que lhe colocará em pé de guerra com ela um sem fim de vezes. Já a jovem Izzy (a ótima Megan Stott) não suporta a vidinha de faz de contas, organizadinha, com direito a fotinho de família padronizada que Elena pretende que todos ali vivam. Aliás, Izzy sonha em ser artista, em usar as roupas e o cabelo como queira e em viver sua sexualidade da forma que bem entender. Aliás, nenhum dos filhos de Elena pode viver como quer. E talvez nem ela, com seus quatro filhos e uma vida luxuosíssima, mas cheia de frustrações, talvez tenha vivido como efetivamente tenha sonhado. E os eventuais encontros com um namorado do passado, poderão ser o indicativo de pendências emocionais difíceis de serem superadas.
Trata-se ao final de uma série cheia de complexidades, bem conduzida, sem nenhum tempo para a "encheção de linguiça". Ao contrário, praticamente todas as sequências têm significado, mesmo que ela envolva a aparição aleatória de alguma personagem inesperada - como o homem que aparece nos pesadelos misteriosos de Mia -, ou algum tipo de provocação artística como aquela envolvendo bonecas e pretendida por Izzy na escola. Quem gosta de dramas familiares vai se deleitar. Aliás, a série caiu nas graças também da crítica e, mesmo tendo saído de mãos abanando da mais recente edição do Emmy, viu Kerry sendo indicadas na categoria Atriz em Minissérie ou Filme Para a TV. Já Reese, depois de Big Little Lies, parece que se especializou em interpretar a bitchiezinha fútil, que quer ver o circo pegar fogo. Ou a casa pegar fogo. Ou tudo incendiar. Afinal, o fogo, o ardor, a tensão das chamas, real ou não, pode ser também uma bela metáfora para o caos que parecerá sempre pronto a se instalar em Shaker Heights.
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