"Sou só eu ou o mundo está ficando mais louco?" Está. Está ficando mais louco. As pessoas estão perturbadas, insanas, descrentes. Estão acoadas lutando para sobreviver e tentando entender o que acontece nesse universo de caos, de violência gratuita, de ódio, de polarização, de indecência política e de banalização (e legitimação) da grosseria, da estupidez e da intolerância. Estão conectadas em aparelhos, mas estão distantes, frias, individualistas. Há uma sensação de isolamento em meio a confusão de tudo que parece nada. Há um futuro incerto. Há dor. Doença. Desamor. Deboche. Dívidas. Depressão. Gatilhos despertados. Assassinato e brutalidade. O filme Coringa (Joker) - essa verdadeira hecatombe fílmica que não parará tão cedo de ser falada, estudada, analisada - se passa no começo dos anos 80, mas dialoga completamente com o tempo em que vivemos. E talvez por isso incomode. Por não dar uma solução fácil. Por nos jogar o absurdo na cara, como quem diz: lidem com isso.
O poder da arte é inacreditável e por mais que haja gente achando que o filme do diretor Todd Philips - cuja melhor obra, pasme, é o primeiro Se Beber Não Case (2009) - faça algum tipo de apologia (ou banalize) a violência, dificilmente uma obra de ficção vai conseguir competir com a vida real. Violência estilizada? Sangue glamourizado? Nada que Tarantino não tenha feito. Personagens com problemas psicológicos que, a partir do disparo de algum "gatilho" (no sentido metafórico), resolvam surtar? Oras, Travis Bickle de Táxi Driver está aí para dizer que o sangue é derramado desde as obras mais trágicas de Shakespeare. E, sim, pessoas perturbadas existem ou alguém já se esqueceu que Mark Chapman assassinou John Lennon sob a alegação de ter sido "inspirado" pelo clássico juvenil O Apanhador no Campo de Centeio? Alguém acredita que a literatura insidiosamente juvenil (ainda que melancólica) de J. D. Salinger tenha efetivamente esse potencial destrutivo? Bom, uma pessoa perturbada, provavelmente com uma série de problemas psicológicos achou e, bom, o resto é história.
Bom, o Coringa que leva o nome de Arthur Fleck, vivido por Joaquin Phoenix - que parece ter nascido para o papel -, é justamente uma dessas figuras rejeitadas pela sociedade, que vive a margem, com um amontoado de demônios interiores e sofre. Na primeira sequência ele está trabalhando vestido de palhaço em uma loja, segurando uma placa. É acossado por um grupo de skinheads à moda da Gotham City mais fétida possível, que lhe espancam. E assim a vida seguirá lhe dando porradas, com o sujeito, de pouco trato social, perdendo o emprego, tendo dificuldade de relacionamento com qualquer pessoa (especialmente as mulheres) e tendo como único prazer da vida assistir um programa de variedades apresentado no final da noite por um certo Murray Franklin (Robert De Niro, emulando os trejeitos de David Lettermann). Enquanto cuida da mãe doente, Arthur apanha da vida. E sonha em participar do programa de Murray. E apanha mais um pouco da vida. E luta por um emprego. E apanha. E tenta ser comediante de stand up. E apanha. E apanha. Até que reage. Explode. Tem o gatilho "disparado". Literalmente.
A revolta de Arthur, que em certa altura do filme tem uma reação extrema diante da provocação de três jovens playboys em um metrô, gera uma reação em massa que transforma o episódio particular no eco de uma sociedade cansada de tantas injustiças. A cidade está imunda por conta das greves dos lixeiros - aliás, ponto pro desenho de produção já que Gotham surge como uma metrópole palpavelmente emporcalhada, cinza e com aparência permanente de suja (nunca vi tanto saco de lixo amontoado). Há também o cancelamento de programas sociais que geram renda - inclusive para Arthur. O desemprego, a pobreza, tudo parece aumentar em uma sociedade de contrastes, tendo a figura do multimilionário Thomas Wayne (Brett Cullen) como a representação da elite a ser derrubada. Não demora para que muitas pessoas vistam também as máscaras de palhaço. Ou se pintem como um. As injustiças têm de cessar. O que não será possível sem violência. É o proletário, a classe operária tentando ir ao paraíso. E tornando Arthur/Coringa uma espécie de ícone de sua revolta.
Nesse sentido, acreditem, os cinéfilos de "direita" (eis que eles existem) estão detestando o filme por causa de seu componente político. Já houve até twitada dizendo que o Coringa deveria ir para Cuba. Mas isso é reduzir uma obra imensa, um complexo estudo de personagem de uma figura que é uma no começo e outra no fim da película, a uma narrativa meramente política - e quem já viu DE FATO filmes políticos sabe que esse Coringa poderia até ser maior nesse debate, se houvesse ainda mais contexto que deixasse as diferenças sociais ou econômicas escancaradas. Mas nem é tanto assim. A meu ver muito maior do que isso é o Coringa como obra de arte em si. É a entrega inacreditável de Joaquim Phoenix a um papel que lhe levará certamente a uma nominação ao Oscar - o que ele faz com o rosto enquanto ri compulsivamente, tentando refrear essa sua "condição" é assombroso. É um filme com uma edição de som que torna tudo mais incômodo, mais ruidoso, com engrenagens, barulhos e músicas que vêm sabe-se lá de onde e que servem para estabelecer o caos interno, a confusão, a entropia. É a fotografia azuladamente saturada e melancólica como complemento ao desenho de produção - já citado - que transforma a cidade em um ambiente permanentemente pestilento. É o conjunto da obra que faz desta uma experiência única e que nos faz ter prazer em ir ao cinema. Sobre o Coringa ser "de esquerda"? Nem ele percebeu isso. Mas para nós todos que amamos essa arte, trata-se da cereja do bolo.
Nota: 10
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