terça-feira, 10 de setembro de 2019

Novidades em DVD/Now - Deslembro

De: Flávia Castro. Com Jeanne Boudier, Sara Antunes, Jesuíta Barbosa e Eliane Giardini. Drama, Brasil / França / Qatar, 2019, 95 minutos.

"Aqueles que não conhecem a sua história estão fadados a repeti-la". Não deixa de ser curioso pensar que essa frase, tão relevante nos tempos sombrios que vivemos em nosso País, seja atribuída ao teórico político Edmund Burke, filósofo conservador que foi um grande crítico da Revolução Francesa. Em nosso contexto, especialmente se pensarmos na Ditadura Militar - e no aparente desejo de muitos de simplesmente "deletar" esse período traumático de nossa história recente -, ela soa atualíssima. Nesse sentido, quando nos deparamos com um esforço artístico que, de alguma forma, resgata aquele momento, ele já nasce digno de nota. E é exatamente este o caso de Deslembro, de Flávia Castro - obra que nos joga de volta para o final dos anos 70 (no período que em que foi decretada a Lei da Anistia), para contar a história de uma família de exilados, que está voltando para o Brasil.

Mas o retorno ao nosso País tropical não será fácil. Especialmente para a jovem Joana (Jeanne Boudier) que, após ter passado toda a sua infância e adolescência em Paris, na França, reluta em retornar com a família para a terra natal da mãe. A sensação de desconforto da menina irá para além do estranhamento natural de se estar em um novo lugar em que não se tem amigos e os antigos colegas ficaram para trás: haverá alguma coisa incômoda nesse novo cenário que, aos poucos, virá a tona, revelando traumas do passado que pareciam "escondidos" na memória da adolescente. E é impressionante notar como Flávia é hábil na construção de uma narrativa que sufoca mesmo nas cenas mais prosaicas - como um piquenique em família na floresta (que não dá muito certo) ou em eventuais flashbacks em que seu pai, um ativista de esquerda, reaparece em cenas embotadas, tensas, confusas. E eu fiquei particularmente maravilhado com a habilidade da diretora no uso de vozes, barulhos e outros sons que surgem no formato de sussurros, como rimas sonoras ou zumbidos que ligam um frame a outro, ampliando a sensação de crescente desconforto.



Já que está de volta ao Brasil, Joana encafifa com o passado do pai biológico (Jesuíta Barbosa), sujeito que teria desaparecido e sido assassinado pelo Estado durante o regime. Montando um quebra-cabeças ela reencontra uma antiga casa que era ocupada por um grupo de resistência do qual seu pai fazia parte e entra também em contato com a sua avó - a mãe de seu pai (vivida com ternura por Eliane Giardini). Em meio a um universo de incertezas que geram um tipo de suspense involuntário de que simpatizo muito - será que o pai dela não estaria vivo? Ela poderia encontra-lo até o final da película? - a jovem vai amadurecendo, descobrindo o amor e funcionando como uma adolescente como qualquer outra, que briga com a mãe Ana (Sara Antunes), que sofre, que fuma maconha, que gosta de ir a praia, que absorve a cultura a sua volta e que tem consciência do significado da luta de seu pai (ainda que utilize justamente este fato para "atacar" sua mãe em certa sequência).

É uma obra familiar, que apresenta com eficiência o contexto político da época - ainda que alguns excessos didáticos pudessem ter sido evitados. É o caso dos jovens que, invariavelmente levam o nome de proeminentes figuras políticas de esquerda (Ernesto, Leon, etc) ou mesmo o instante em que Joana chama um vizinho exaltado de fascista, para ele responder um onipresente "vai pra Cuba!". Ainda assim, como diz o Henrique, meu parça aqui do Picanha, as vezes mesmo o ÓBVIO necessita ser esfregado NA CARA - e é por isso que este fato não compromete a apreciação do filme. Colocando volta e meia a luta política e a necessidade de exumar os "esqueletos do armário" como condição básica para a felicidade familiar, a película é hábil ao captar os eventos do período de forma sutil, econômica, mas, altamente relevante. Joana, a seu modo, se esforça para pertencer aquele universo que, agora, lhe é novo. E ela só conseguirá fazer isso se deixar o passado para trás, não desejando JAMAIS repeti-lo.

Nota: 8,5

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