terça-feira, 15 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Apocalipse nos Trópicos

De: Petra Costa. Com Silas Malafaia, Sóstenes Cavalcante, Lula e Jair Bolsonato. Documentário / Drama, Brasil / EUA / Dinamarca, 2025, 109 minutos.

Em uma das tantas cenas impactantes de Apocalipse nos Trópicos estamos no fatídico 8 de janeiro de 2023. Após as "velhinhas de Bíblia na mão" invadirem e destruírem a sede dos três poderes, um grupo é filmado no interior do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) ajoelhado, mãos em concha, rezando. Em meio aos escombros, à fumaça e ao caos completo reforçado pela câmera trepidante, o que se vê parece uma cena saída de uma distopia estranha sobre uma seita fundamentalista que toma o poder. Zumbificadas, alienadas em sua forma mais extrema, aquelas pessoas entoam cânticos e clamam a Deus - ao seu Deus, aquele que elas idealizam - por algum tipo de salvação. Ao cabo, a guerra não é entre esquerda ou direita - ou sobre qualquer outro campo do espectro democrático. A batalha é do bem contra o mal. Ou ao menos é essa a ideia que vem sendo vendida pelos setores mais reacionários da Igreja Evangélica. E que tem sido replicado junto a uma população de crentes que mais do que quintuplicou nas últimas décadas.

E é partindo disso que a documentarista Petra Costa - do igualmente imperdível Democracia em Vertigem (2019) - traça um panorama  de como a influência dos evangélicos têm sido determinante para as decisões políticas de nosso País nos anos recentes, com o aumento considerável de integrantes da chamada Bancada da Bíblia, no Congresso; a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 (um ungido do Senhor, uma espécie de escolhido por Deus para livrar a população de todo o mal, ao menos de acordo com esses profetas da modernidade) e até a indicação de um integrante do STF que receberia a sugestiva alcunha de "terrivelmente evangélico", no caso André Mendonça. Um conjunto de ações que teve (e tem) como objetivo barrar qualquer avanço do espectro progressista - seja em questões sociais, trabalhistas ou de costumes -, mas combater também o mais famoso fantasma dos delírios da extrema direita: o do comunismo. E que tantas pessoas - muitas delas trabalhadoras, periféricas, vulneráveis -embarquem nessa jornada delirante de fanatismo, é algo que entristece. Ainda que não surpreenda.

 


Centrando a narrativa na figura do pastor Silas Malafaia, a quem Petra acompanha de perto - com direito a entrevistas em sua casa, carro ou jatinho particular (uma ninharia de R$ 1,4 milhões, que a mídia insiste em dizer que custa muito mais, o que seria uma injustiça de acordo com o líder evangélico) - a cineasta constrói um painel sobre como esse grande espectro político tem no pânico moral - com seus banheiros povoados por trans e abortistas depravadas, além de kits gays e mamadeiras de piroca sendo fartamente distribuídos pela esquerda às crianças nas escolas, contagiando-as com suas ideologias dissonantes - uma de suas grandes forças. Em certa altura da produção uma mulher de origem humilde é questionada sobre em quem votaria nas eleições de 2022. "Eu até acho que o Lula tem coisas boas, mas não posso votar nele por causa da minha crença", pondera. Já a sua filha parece revelar um voto envergonhado em Lula. "Ainda que eu não goste dessa história de banheiro unissex", verbaliza. Sim, o impacto é inegável. E decisivo para o voto.

Com uma grande riqueza de imagens de arquivo - algumas já conhecidas, outras inéditas - a realizadora explica ainda como a ascensão evangélica se deu também por influência de líderes carismáticos dos Estados Unidos, que desde o governo Reagan e o ambiente da Guerra Fria já estabelecia esse campo de batalha de nós contra eles como um ideal de colonialismo teológico, que tinha também como objetivo central desmobilizar a Teologia da Libertação, que surgiria na América Latina como uma resposta da Igreja Católica com o objetivo de interpretar os ensinamentos de Jesus à luz da justiça social, e que seria oposta à opressão. O contrário do que prevê um ideal pautado por Deus e o Diabo em sua acepção mais simples do ponto de vista maniqueísta, que utiliza a fé como fachada para um laboratório brutal de capitalismo tardio. E não é por acaso que, para além do filme, as tais igrejas church, com seus legendários, coachs do abstrato, jogos de azar e individualismo atroz parecem o incubatório perfeito para a extrema direita vigente nos nossos tempos.

 

 

Em alguma medida o filme de Petra, dividido em seis partes com nomes bíblicos sugestivos - Deus nos Tempos do Cólera, Domínio, Gênesis - é ao mesmo tempo melancólico e preocupante, mas também esperançoso e iluminado. E confesso que me comovi ao reassistir as cenas da vitória de Lula em 2022, sob a desconfiança de todos e a crença cega, inclusive de Malafaia, de que sem a ajuda da Igreja Evangélica, que representa atualmente cerca de 30% da população atual, ele não venceria. E isso depois de todo o descalabro da pandemia, com mais de 700 mil mortes - muitas delas ocorridas por atraso na compra das vacinas (o que é lembrado na produção como mais um efeito colateral danoso desse segmento que, ao invés de acreditar na ciência, optava por delírios que envolviam greves de fome, orações e outros subterfúgios sem nenhum efeito do ponto de vista prático). Talvez para alguns espectadores, a obra não represente nenhuma grande novidade no espírito dos tempos atuais - de um Brasil que, por muito pouco, não descambou para uma versão piorada do impressionante Divino Amor (2019), filme de Gabriel Mascaro. Mas há perigos que não podem ser esquecidos. Ou ignorados. E isso Petra faz muito bem - ainda que seja importante mencionar o fato de a obra se empenhar em evidenciar o fato de haver um outro lado, quase desconhecido, de líderes evangélicos que abominam os métodos de Malafaia e sua gangue. Ainda assim, já diria Brecht, "o fascismo é uma cadela sempre no cio". E essa cadela receberá, muito provavelmente, a bênção de algum pastor. Sempre perto da urna mais próxima.

Nota: 9,0 

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