segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

30 Melhores Discos Nacionais de 2022

Devo admitir a vocês que tenho um carinho especial pela lista de Melhores Discos Nacionais - a última que lançamos por aqui nesse 2022 tão importante. Esse é o momento de reescutar artistas, entrar em contato com trabalhos que possam ter passado "batido" e mergulhar nessa pluralidade tão democrática do nosso cancioneiro (algo que é evidenciado nessa relação em que estilos variados se cruzam). A impressão que temos, também, é de que muita coisa estava represada nesses anos de pandemia - e de reclusão - e que nesse ano os artistas finalmente se sentiram à vontade para soltar novos materiais. De retorno inesperados como o do Planet Hemp, passando por bandas queridas e aguardadas como Maglore, até chegar a estreias como a da Natália Xavier, aqui temos um recorte bastante democrático de uma parte pequena do que conseguimos acompanhar. Sim, porque certamente tem muito mais por aí do que essa simples listinha. Basta ter paciência pra garimpar. Você será recompensando, pode ter certeza.


E se você gosta de listas, não deixe de conferir as nossas relações dos anos anteriores - 2021, 2020, 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015


30) Fernando Catatau (Fernando Catatau): em tempos tão urgentes, tão apressados, de consumo tão imediato, de tik tok, de vídeos curtos e de falta de tempo pra apreciar qualquer conteúdo cultural mais elaborado, parece até um contrassenso o vocalista do Cidadão Instigado, Fernando Catatau, lançar um disco - aliás, seu primeiro em carreira solo - que requer uma apreciação lenta, demorada. Evocativo, longo, o projeto de minúcias é daqueles que vai crescendo a cada audição, recompensando assim o ouvinte mais persistente. Nada de refrãos fáceis, melodias que seguem certa lógica ou estruturas convencionais: aqui o projeto se espalha em meio a fragmentos, confissões entortadas, percussão lenta e um sentimentalismo tão melancólico quanto visceral. Misturando cancioneiro brega, concretismo poético, teatralidade, sintetizadores enfumaçados e ambientações épicas, Catatau converte as 13 músicas do disco em pequenas peças nostálgicas, intimistas, repletas de divagações cotidianas, de romances esquisitos e de angústias existenciais. Um bom exemplo desse conjunto de ideias pode ser encontrado na filosófica Não Há Mais Nada a Dizer (Meus espinhos enganchados nos teus braços / E eu sozinho procurando entender). Pra quem andava com saudade da Cidadão Instigado, o álbum é recompensador.

29) Bala Desejo (SIM SIM SIM): vamos combinar que ser detentor de um coração pulsante pelo indie não é sinônimo de ser uma pessoa taciturna ou introspectiva. Sim, os alternativos também querem festejar, com suas bermudinhas coloridas e acessórios neon - afinal de contas não é só de Lana Del Rey de fone de ouvido, no escurinho do quarto, que se vive a vida, né? Nesse sentido, o Bala Desejo despontaria, ainda em abril do ano passado, como uma espécie de "boa nova (ainda que meio tardia) do verão", como apontaria o Estado de Minas. Inspirado no cancioneiro carnavalesco e festivo dos anos 60 e 70 o coletivo carioca parece encontrar um certo "equilíbrio no desequilíbrio", apostando num caos multicolorido que parte da multiplicidade de olhares dos artistas  - e que resultará em canções tão divertidas quanto políticas, românticas, tropicalistas ou psicodélicas. De Novos Baianos a Gilberto Gil, passando por Mutantes e Tom Zé o grupo formado por Julia Mestre, Dora Morelenbaum, Zé Ibarra e Lucas Nunes condensa referências, mas sem jamais perder a originalidade ou a personalidade - o que é comprovado pelas imperdíveis Passarinha, Baile de Máscaras (Recarnaval), Dourado Dourado e Lua Comanche. Vale descobrir.

28) Ratos de Porão (Necropolítica): Alerta Antifascista, Guilhotinado em Cristo, Neonazi Gratiluz, Bostanágua, Entubado. Não é preciso ir muito além dos títulos das canções do décimo terceiro disco de estúdio de João Gordo e companhia pra perceber como os anos de Bolsonaro deixaram a clássica banda de punk hardcore furiosa. Assim como no caso do Planet Hemp, os paulistas saíram de um hiato de oito anos para entregar um álbum que reflete à perfeição a degradação política e social que foram a marca do governo do "mito". "Em cada letra narro o que está acontecendo de 2018 para cá", resumiria o vocalista, em entrevista à Carta Capital. Na mesma conversa, Gordo explica que o título do álbum - que alude a um conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe, que faz referência ao uso do poder político e social para definir quem deve viver e quem deve morrer - resume de forma exemplar a época em que estamos vivendo. "É um disco fúnebre porque morreram muitas pessoas. Metade delas poderia ter sido salva se não fosse o negacionismo retardado", salientou. Musicalmente, a produção é uma porradaria que já nasce clássica, como comprovam os versos da nervosa Aglomeração (Negando a realidade / Neopentec antivacina / Ozônio vai no cu / Não esqueça a cloroquina).

27) Andrezza Santos (EUTRÓPICA): existe um quezinho nostálgico, um sentimento de familiaridade que nos invade desde os instantes iniciais de Sem DDD - canção que abre o segundo trabalho da paulista Andrezza Santos. É algo que está ali no meio da melodia convidativa, que se une a letra despojada (Eu acabei de chegar / Em mais um novo lar / Que não é meu / Caixas espalhadas no chão / Feito essa canção) e ao refrão solar e que, conforme o desenrolar, se espalhará entre dedos estalados, vocais esticados e efeitos eletrônicos que brilham em cada curva. Fugindo do clima mais denso, contemplativo que marcaria trabalhos como o EP Sapopemba, a artista radicada na Bahia mescla estilos em uma "simbiose musical de tantos Brasis que coexistem nesse imenso País e a vasta herança da música nordestina, experimentada [...] através do xote, ciranda, axé, samba de coco e brega funk, sem deixar de fora sua grande inspiração no rock" - como resume o material de divulgação. O resultado é um coletivo de canções homogêneas, espontâneas, que utilizam a delicada voz de Andrezza como uma espécie de direcionamento natural - como atestam as envolventes A Gente ia Longe, Vagão Vazio, Eu Vou, Você Não Vem?, Cheganças e Sair Sozinha.

26) Wado e o Bloco dos Bairros Distantes, em (O Disco Mais Feliz do Mundo, Vol. 1): vamos combinar que, se existe um artista versátil no País, esse é o catarinense Wado. Permanentemente prestando homenagem à música periférica, o artista converte cada um de seus trabalhos em um exercício musical de exaltação à canção nacional - podendo essa ser a MPB (Cinema Auditivo, 2002), o samba (Samba 808, 2011) ou mesmo o axé (Ivete, 2016). Em seu décimo primeiro disco, o cantor deixa para trás o clima introspectivo e intimista que marcava o ótimo A Beleza que Deriva do Mundo (2020) - nosso sétimo colocado na lista daquele ano -, para entregar um registro de essência festiva, carnavalesca, como o próprio título sugere. Apostando em releituras que recebem aquele verniz de modernidade - como é o caso de Zanzibar, clássico oitentista do coletivo A Cor do Som, ou mesmo Meia Lua Inteira composta por Carlinhos Brown e que ficaria famosa na voz de Caetano Veloso - Wado traz para o estúdio um projeto de carnaval que já existe há mais de dez anos. "A ideia é convidar o ouvinte para uma folia dançante e solar", resumiria o artista no material de divulgação. Bom, 2023 está aí e não dá pra negar: finalmente teremos motivos de sobra para celebrar depois da tragédia dos últimos anos.

25) Molho Negro (ESTRANHO): a rotação do power trio paraense pode até ter reduzido nesse quarto trabalho - bem como o deboche a ironia que sempre marcaram as suas letras. Reflexo dos tempos? Mais sérios? Menos engraçados? Talvez. Com melodias mais minimalistas e menos expansivas do que aquelas que marcaram o divertidíssimo Normal (2018), o trabalho anterior - que continha canções imperdíveis como Novo Rosto e Ego - aqui o coletivo fala mais sério com seu público deixando o barulho (e uma parte do sarcasmo) para trás. "Foi uma coisa natural de amadurecer, de pandemia, de mundo acabando mesmo e acho que gradualmente as coisas foram tomando outras formas", explicou o vocalista João Lemos, em entrevista ao site Headbangers News. Num comparativo, seria como pegar o Supergrass da fase I Should Coco (1995), comparando-o com o da época do Life On Other Planets (2002). O resultado são canções que falam de temas mais difíceis, mais complexos, como é o caso do rock classição Não Nasceu Para Brilhar (Eu acordo e a angústia dá bom dia / Levanta a persiana e me serve um café / É mais um dia com o peito apertado / E calado porque eu não sei explicar o que é).

24) Vitor Ramil (Avenida Angélica): O estilo invernal do sempre ótimo Vitor Ramil ganha uma roupagem ainda mais poética com este décimo segundo trabalho de "estúdio". E o estúdio nesse caso é realmente entre aspas, já que o registro é resultado de duas noites de gravação realizadas em agosto do ano passado, no Teatro Sete de Abril em Pelotas. Para o disco, o artista utilizou como base dois livros escritos pela conterrânea Angélica Freitas - no caso, Rilke Shake e Um Útero É do Tamanho de um Punho - extraindo de seus versos uma coleção de canções envolventes, pontuadas pelo sempre presente violão de Ramil. "A poesia da Angélica é cult, é pop, é tocante, é divertida, é crítica, é amorosa e, acima de tudo, é muito musical", salientou o músico no material de divulgação do álbum. Nesse sentido, poemas como Rilke Shake recebem uma roupagem intimista, capaz de transformar versos enigmáticos em uma experiência semicatártica que mistura cotidiano, referências culturais diversas e sentimentos palpáveis e abstratos em igual medida (Nada bate um Rilke shake / No quesito anti-heartache / Nada supera a batida / De um Rilke com sorvete). Ao cabo, o trabalho comprova que poemas musicados podem ter ritmo, serem melodiosos e até conter refrões pegajosos. 

23) Moons (Best Kept Secret): Os arranjos sofisticados somados ao vocal esteticamente limpo - quase como um Simply Red em um encontro com o Destroyer - convertem os mineiros do Moons em um dos mais agradáveis coletivos da atualidade. Da delicadeza do dedilhado de violão da inaugural The Will To Change até chegar ao climinha folk contemporâneo da favorita do público Childlike Wisdon, tudo aqui remete a algum tipo de economia elegante, que costura a poesia e os elementos instrumentais de forma fluída e nunca expansiva. Ainda assim, se engana quem pensa que o minimalismo signifique menos força. Muito pelo contrário. Em apresentação ocorrida no meio do ano, em Belo Horizonte, o grupo formado por André Travassos (violão, guitarra e voz), Bernardo Bauer (voz e baixo), Digo Leite (guitarra), Felipe D’Angelo (voz, piano, guitarra barítona e sintetizadores), Jennifer Souza (voz, guitarra e percussão) e Pedro Hamdan (bateria e percussão) comoveu o público com seu repertório imersivo, enquanto marcava posição sobre assuntos políticos e sociais do atual momento no País - com a exibição de fotos de ativistas e de uma frase que lamentava o assassinato de lideranças como Bruno e Dom. A música funciona como um clamor por calmaria. Especialmente em tempos tão brutos.
 
22) Pelados (Foi Mal): uma pitada de Alvvays com outra de Real Estate e mais uma dose de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo e já dá pra ter uma ideia do pop perfumado e primaveril que é produzido pelo quinteto paulistano Pelados. Gravado em julho de 2021, o registro - o segundo da carreira - se espalha em meio a canções que se conectam umas nas outras por meio de áudios captados de interações, transições melódicas, fragmentos de diálogos, risadas e contagens de tempo, alternando entusiasmo, jovialidade, medos e melancolias. O resultado é um trabalho que vai no limite entre o experimental e o acessível, entre o lo-fi enfumaçado e o bedroom pop - sendo a capacidade de rir da própria vulnerabilidade e a ironia, uma das marcas registradas. Algo que pode ser percebido já nos títulos das canções, que recebem nomes sugestivos, como, Medo de Ficar Pelado, Coquinha Gelada After Sex, Yo La Tengo na Casa do Mancha e Ser Solteiro É Legal. " O lance é que não é para levar a sério, a gente não se leva a sério. Se alguém quiser levar, vai nessa, quem sou eu para falar. Tem muitas músicas que são uma grande piada e outras que são muito sérias. Normalmente, as mais sérias vão ser as maiores piadolas", resumiu o baterista Theo Ceccato em entrevista ao Monkeybuzz.

21) Baco Exú do Blues (QVVJFA?): "Quantas vezes você já foi amado?". A pergunta feita de forma enigmática pelo rapper Baco Exú do Blues no título de seu quarto trabalho parece rondar a obra como se fosse um espectro. Dos instantes iniciais com o lamento cheio de fúria verbalizado em Tenho Tanta Raiva... à conclusão com a urbana 4 da Manhã em Salvador tudo no álbum sugere a permanente busca por amor-próprio ou a aceitação como uma meta, em um Brasil em que a discussão de questões como racismo, objetificação de corpos negros e gordofobia seguem mais do que relevantes. "Usamos drogas pra esconder nossa dor / Diamantes nas correntes pra ofuscar nossa dor / Cravejamos o sorriso, não vão ver nossa dor", divaga o artista na suntuosa Autoestima, que traz ainda versos reveladores como "Foram vinte e cinco anos pra me achar lindo". O expediente se repete na sofisticada Mulheres Grandes (Mulheres grandes demais / Com desejos gigantes / Não servem pra ser amantes) que aposta na ambiguidade como matéria-prima, resultando em uma composição ao mesmo tempo romântica, lasciva e questionadora. "Embranqueceram o amor", lembraria o artista em uma ótima entrevista à Carta Capital, discutindo as possibilidades de afeto em um ambiente de preconceitos. Fundamental.

20) Josyara (ÀdeusdarÁ): subverter a própria produção para evitar se repetir. Incorporar novos elementos para fugir do óbvio. Evitar a acomodação decorrente do sucesso. Essas acabam sendo marcas registradas da cantora e compositora baiana Josyara que, em seu segundo trabalho, parece expandir as possibilidades para além do minimalismo plácido e da calmaria aconchegante dos versos que ditariam o ritmo no ótimo Mansa Fúria - nosso 14º melhor disco na lista de 2018. Aqui, a artista utiliza o tempo de isolamento forçado proporcionado pela pandemia para o exercício de experimentações com o uso de instrumentos distintos como pandeiro, atabaque e, claro, o violão, que se espalham em meio a sintetizadores mais encorpados, que exalam frescor. O resultado são canções cheias de personalidade, refinadas, pontuadas pela percussão e que parecem crescer a cada audição, abrindo espaço para uma cantora mais segura de si, mais madura e, claro, mais consciente. Indo no limite entre o lamento e a celebração, Josyara reverencia o futuro, sem ignorar o passado - algo que é evidenciado no cintilante samba Essa Cobiça (Como eu queria de volta / Mas não coisas mortas / Que já se foram / Eu quero as coisas nossas / Que a gente nem viveu). Luto e renascimento, memória e celebração. Tá tudo lá.

19) Dingo (A Vida É Uma Granada): o nome da banda até pode ter mudado, mas a mistura de soul music com pop luminoso segue inabalável - o mesmo valendo para as letras existencialistas e recheadas por divagações cotidianas, sempre dotadas de uma poética meio torta que foge do óbvio. Sim, os gaúchos podem até não se chamar mais Dingo Bells, mas as composições majestosas, marcadas por forte sentimentalismo continuam sendo a principal matéria-prima. Brincando com sonoridades e diferentes estilos, o coletivo formado por Rodrigo Fischmann (voz e bateria), Felipe Kautz (voz e baixo) e Fabricio Gambogi (voz e guitarra) surge amadurecido e até mais sofisticado. "Temos essa natureza de criar e de se preocupar com músicas que tenham melodias belas que inspiram, emocionam e arrepiam. Não queremos que a pessoa passe pelas canções e saia igual", comentou Fischmann, em entrevista ao site Música Pavê. Com uma personalidade já estabelecida, o grupo é daqueles que parece já possuir uma assinatura própria, um estilo que evolui de forma natural desde Maravilhas da Vida Moderna - nosso décimo sétimo colocado na lista de melhores de 2015. O que resulta em composições refinadíssimas e de grande lirismo, como A Desconstrução do Ser, A Vida É Uma Granada e Parabólicas.

18) Raidol (Mandinga): "Abre, abre, abre o caminho pra eu passar! Abre, abre, iluminando o meu cantar". Pode ter sido mero acaso que o artista paraense Raidol utilizou, na faixa inaugural de seu disco de estreia - o nome da canção é Abre Caminhos -, um recurso metalinguístico que parece funcionar como uma carta de apresentação ao público. Classificando o trabalho como uma "encantaria amazônica pronta para enfeitiçar o Brasil com muitas músicas de amor, trazendo a junção do antigo e do contemporâneo, do místico e o carnal", o cantor mescla ritmos como pisadinha, carimbó, pop amazônico, guitarrada, house, surf music e rap. O resultado chamaria a atenção da Associação Paulista de de Críticos de Arte (APCA) que incluiu Mandinga na lista dos 50 Melhores Discos do ano - sendo assim o único artista do Norte a alcançar tal feito. "Ser um artista da região Norte é enfrentar diversos apagamentos e desvalorização. Continuo lutando e acreditando que precisamos descentralizar e criar um novo eixo econômico baseado na produção cultural. A desigualdade acaba me trazendo essa inquietude que me faz desenvolver esse movimento", comentou em entrevista ao site O Liberal. Aqui no Picanha já estamos viciados nas ótimas Sagitário, Deixa Eu Te Perguntar e Rebola, Vai!

17) Jair Naves (Ofuscante a Beleza que Eu Vejo): "Em rota de colisão / Quem desvia primeiro?". Com sua voz de trovador que parece sempre pronto a anunciar o fim do mundo, o músico mineiro Jair Naves converte esse quarto trabalho em um veículo perfeito para divagações existencialistas, que se diluem em versos marcados pelo sofrimento, pelas tentativas de perdoar (e amar) e por discussões políticas que aludem aos tempos sombrios de flerte com a extrema direita no País. Gestado nos dois últimos anos, o álbum revela um artista furioso mas reflexivo, com o piano melodioso servindo como um respiro em meio a colagens, quebras de ritmo e ruídos - com esse aparato mais experimental sendo a metáfora para um olhar ao mesmo tempo de pesar para o passado e de aceno levemente esperançoso para o futuro. "Depois do 'Rente' (seu disco anterior) acho que a minha intenção era tentar algo mais abstrato, menos direto, buscando tratar outros tipos de conflito. [...] Acontece que considerando tudo o que aconteceu a partir de 2020 eu me vi empurrado nessa direção. Foi praticamente impossível ignorar tudo que aconteceu, o luto coletivo, a revolta, a incredulidade e a sensação de fim de uma forma de viver e começo de outra", resumiu Naves em entrevista ao site Hits Perdidos.

16) Luneta Mágica (No Paiz das Amazonas): Um mergulho em uma sonoridade que evoca o contraste entre o ancestral e o contemporâneo, o bucólico e o urbano, o antigo e o tecnológico. Resumir a experiência de ouvir No Paiz das Amazonas, o terceiro trabalho da banda manauara Luneta Mágica é trafegar num universo em que contradições se aproximam, em que as diferenças parecem somar, em que a distância é logo ali. Se afastando do pop mais comercial entregue no disco No Meu Peito - nosso quarto melhor álbum na lista de melhores nacionais de 2015 -, o coletivo se reaproxima do experimentalismo psicodélico que marcaria a estreia, com o esplêndido Amanhã Vai Ser o Melhor Dia da Sua Vida (2012). Diferente de tudo o que já foi feito pelo grupo, o registro imprime "uma visão conceitual, partindo de referências da própria floresta amazônica, que vão ao encontro de sons que ecoam pelo mundo inteiro", como resumiu a banda no material de divulgação. O resultado é uma espécie de caos organizado que conecta passado, presente e futuro de uma forma nunca óbvia, mas sempre instigante, provocativa (inclusive no que diz respeito às letras), como comprovam as faixas Águas Poluídas, Conduzido (haux, haux), Tuiuiú e Além das Fronteiras. Vale descobrir!

15) Djonga (O Dono do Lugar): Habituado a lançar seus discos sempre em março, o rapper mineiro Djonga alterou essa lógica já estabelecida com o O Dono do Mundo. Sexto álbum do artista, o projeto se apresenta com a potência habitual, alternando instantes políticos e de discussões sociais com outros que celebram as conquistas do povo preto - algo que, em muitos casos, pode ser percebido em uma mesma música, como no caso da essencial Até Sua Alma, que tem participação especial da dupla Tasha e Tracie (E pra quem já valeu trocado pra escravista branco / Tá bom receber uma milha pra postar um arroba / Rede social que eu gosto é o app do banco / E eu que atravessei a rua, lembrei qual povo que rouba / Sola do sapato nada gasta e isso me basta / No lugar das ferida no calcanhar). "É uma reflexão sobre contra quem estamos lutando, pelo que e se temos força pra isso. Essa representação já começa pela capa, uma referência a Don Quixote, de Miguel de Cervantes, que é uma grande alegoria sobre isso. Essa loucura, idealismo, confusão", comentou o rapper no material de divulgação. Recheado por reflexões cotidianas sobre masculinidade, LGBTfobia e religião, a obra possui produção refinada, funcionando ainda como veículo de luta contra o racismo estrutural.
 
14) Alaíde Costa (O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim): por mais estranho que possa parecer, a própria Alaíde Costa admitiu, em entrevista à Veja, que se sente no "auge da carreira" - mesmo estando com 86 anos. "Passei longos períodos sem gravar nada porque as gravadoras queriam que eu gravasse canções que não combinavam comigo, e eu não aceitava", admitiu na mesma entrevista. E talvez seja justamente esse comportamento de quem não se dobra a eventuais pressões externas - muitas delas fruto do racismo estrutural -, que faz com que ela pareça tão à vontade interpretando as composições do classudo O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim - trabalho produzido por Emicida, em parceria com Marcus Preto. Dona de uma voz única e afinadíssima, a artista adota a placidez como método, entoando cada verso de forma cadenciada, lânguida, sem pressa. O resultado é conjunto de oito canções que se espalham em meio a amores complicados (Tristonho), arrependimentos (Praga) e esperança por dias melhores (Aurorear). Fazer um álbum que sublinhasse a grandeza de Alaíde não apenas como intérprete ligada à bossa nova mas, sobretudo, como a voz que transitou quase sempre à margem do grande público. Esse era o objetivo. Que parece ter sido alcançado com sobras.

13) Johnny Hooker (ØRGIA): Se divertir, mas sem perder a capacidade de indignação. Dançar e refletir. Sentir ternura, amar, mas sem abandonar as questões que incomodam. É dessa dualidade que emerge esse ótimo ØRGIA. Em entrevista concedida ao UOL ainda em 2021, o artista afirmou que o Brasil precisava voltar a beijar na boca. "Voltar a ser feliz, ter desejo, se apaixonar", resumiu. Pois essa espécie de expiação parece combinar ainda mais com esse 2022 que foi tão duro - o que talvez explique a facilidade com que abrimos um largo sorriso diante de canções como, Amante de Aluguel, Larga Esse Boy, Nos Braços de Um Estranho e Nhac! Misturando estilos variados que vão do tecnobrega, passando pelo samba, até chegar à música eletrônica, Hooker converte o registro em uma celebração à vida, que se apoia na tríade noite, sexo e política. Exemplo central desse expediente está em CUBA, que joga o ouvinte para um reggaetown improvisado e lânguido, enquanto o refrão faz um convite que funciona tanto como como carta de amor, quanto como resposta ao bolsominion que deseja enviar qualquer um que não vote no "mito" à ilha da América Central. Ao cabo, é um disco debochado, cheio de calor humano, e que nos faz lembrar de que, em meio ao caos, a arte pode nos divertir.

12) Natália Xavier (Eu Também Sou Teus Rios): "Coco de roda, maracatu, baião, afoxé, canto-rezo e o espírito dos tambores são pontos de partida deste rio que desemboca, já com a própria seiva, no mar. E o verbo jamais abandona a potência revolucionária do símbolo e da fabulação". É dessa forma que a cantora e compositora paulista Natália Xavier resume seu álbum de estreia, produzido por meio de financiamento coletivo. Filha de pai baiano e mãe pernambucana, a artista já estabelece na percussão sinuosa da inaugural Não Morra de Sede, Meu Amor um diálogo íntimo e autoral com a sua ancestralidade nordestina, conectando o ouvinte com um tipo de música que vai no limite entre o teatral e o poético, o primitivo e o contemporâneo. Com cada verso se espalhando em meio a melodias que pulsam simbolismo, lutas e descobertas sobre questões de corpo, de identidades e de tempos políticos, Natália converte cada uma das oito canções em pequenos fragmentos confessionais, que apostam no potencial imagético da palavra - o que podemos perceber em belas composições, como é o caso da intimista Confios (Quando me aquieto / Sou recebida no seio do mundo / Minha natureza de chuva / Já não pode mais se ocultar).

11) Bruno Berle (No Reino dos Afetos): batidas minimalistas, melodias que se espalham sem pressa, uma economia de tudo que também é evidenciada pelas letras entoadas de forma vagarosa, ainda que com uma fluidez própria. Nada no terceiro disco do cantor e compositor alagoano Bruno Berle parece dialogar com a urgência maximalista e excessivamente apressada dos tempos que vivemos. Como se fizesse um convite para um mergulho em um universo de calmaria e de introspecção, o artista converte as 12 composições de No Reino dos Afetos em um veículo para expressar pequenas alegrias, romances tortos e devaneios cotidianos em uma mescla que vai do samba, passando pelo lofi, fazendo ainda uma parada no R&B contemporâneo e no afrobeat. "O álbum foi feito com a busca de uma coisa maior, uma coisa bonita, um lugar bonito para se estar. É meu primeiro álbum que eu acho feliz, que é para cima, que não é melancólico e eu tô muito empolgado com isso", comentou o músico em entrevista ao site Música Pavê. Um bom exemplo dessas características pode ser encontrado no single Quero Dizer que, com letra envolvente (Pois um dia com você dentro da noite / É como o vento / Como o sol a me aquecer) e sonoridade convidativa, é daquelas que aconchega facilmente o ouvinte. Lindo demais.

10) Joyce Moreno (Brasileiras Canções): com mais de cinquenta anos de carreira e mais de quarenta discos lançados, não deixa de impressionar o fato de a compositora, escritora, arranjadora, cantora e instrumentista Joyce Moreno seguir entregando álbuns com uma naturalidade - e uma brasilidade - única. "Como passarinho num céu de urubus, as doze canções do novo trabalho de inéditas surgem exatamente como essas imagens poéticas tão simples, mas tão poderosas", indica o material de divulgação - que estabelece diálogo direto com a faixa-título. O que introduz, de alguma maneira, os elementos que guiam a estética do trabalho - que vai no limite entre o bucólico e o travesso, o cristalino e o classudo. Acompanhada do talentoso trio formado por Hélio Alves (piano), Jorge Helder (baixo) e Tutty Moreno (bateria), a artista burla os limites entre o samba, o jazz e a bossa nova, utilizando a própria atmosfera do álbum como elemento norteador de suas delicadas criações. Um bom exemplo desse aspecto luminoso da obra pode ser observado na ótima Tantas Vidas que, com sua letra sutilmente divertida (Não há mulher, por mais feia / Que não veja como é linda / Quando se sente bem-vinda / No coração que ela adora) afaga o ouvinte, conquistando-o já na primeira audição. Um feito e tanto.

9) Mulamba (Será Só Aos Ares): "Não se ofenda tanto com o meu canto / Não se afete com o afeto / Não calarei meu gemido / Pro pudor dos teus ouvidos". Quem acompanha a carreira do coletivo curitibano Mulamba certamente não se surpreenderá com os versos acima - que abrem o segundo trabalho do grupo e que integram a ótima canção Phoda. Discutindo questões de gênero, empoderamento feminino, violência contra a mulher e outros preconceitos, a banda utiliza suas canções como veículo para reflexão - mas sem abrir mão de celebrar as conquistas e avanços da sociedade (ainda que estes, eventualmente, emerjam da tragédia). Um bom exemplo desse expediente pode ser encontrado na faixa Dandara, que homenageia a travesti Dandara Kettley que, em 2017, foi brutalmente torturada, espancada e assassinada em Fortaleza. "Mulher que deu a cara a tapa, Dandara bem fresca resistiu / Sambou na cara da sociedade, contra a hipocrisia do Brasil" entoa a vocalista Amanda Pacífico, em meio à sinuosa melodia que mescla MPB com samba. Com participações especiais de Luedji Luna, BNegão e Kaê Gajara a mulherada - agora ainda mais posicionada politicamente e amadurecida - prova que segue emb*cetada. É imperdível.

8) Tim Bernardes (Mil Coisas Invisíveis): Vamos combinar: talvez Tim Bernardes tenha inaugurado algum tipo de nova vertente musical, algo como um "indie filosófico", que mescla sofrimento, afeto e otimismo em iguais medidas. Mas esse combo de sensações é muito menos turbulento e muito mais resignado - onde se reconhecem as dores, os lutos e as aflições da alma, mas também se reaprende a amadurecer, a prosseguir, a encontrar motivo para algum tipo de contemplação diante do mundo. Nesse sentido, a mescla de melodias homogêneas, econômicas e pontualmente ensolaradas não gerariam nenhum tipo de estranhamento se este segundo trabalho solo do vocalista d'O Terno se chamasse Recomeçar 2 - e não Mil Coisas InvisíveisEm entrevista ao site Papel Pop, o artista afirmou que desde <atrás/além> se permitiu "fazer algumas canções com letras mais longas, em que eu ia desabafando e discorrendo sobre coisas de maneira meio ensaística, meio poética, meio objetiva, meio abstrata". Assim, o álbum se apresenta como mais um daqueles trabalhos que requerem uma apreciação mais calma, onde se possa assimilar detalhes, encaixes, referências e orquestrações que se desdobram entre a economia e a expansão, a verborragia e a sutileza. Beleza aqui é a ordem do dia.

7) Anelis Assumpção (Sal): Luedji Luna, Céu, Mahmundi, Iara Rennó, Thalma de Freitas, Jadsa, Josyara. Basta dar uma olhada no seleto time de colaboradoras que integra o quarto disco da paulista Anelis Assumpção, pra se ter uma ideia da envergadura do projeto. Todas mulheres negras que a artista admira muito. "Depois de girar algumas lâmpadas e visões morfológicas, entendi que cada faixa seria co-produzida por uma pessoa diferente. [...] Já ouvindo as manifestações profundas que o disco enviava, eis que elas vão chegando e com elas, toda uma falange de ideias, sons e suas ancestralidades.", filosofou a cantora e compositora no material de apresentação do trabalho. De alguma forma, essa pluralidade pode ser percebida na mescla de estilos, que vão do afrobeat e do reggae, passando pelo samba e pela música de vanguarda - navegando no limite entre o contestador e o provocante, o político e o sensual. Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na metafórica Sangue Mioma, que se espalha em versos enigmáticos e cheios de significados (Nas vias, nas veias / Canção de sangue tingindo a lua cheia) enquanto efeitos eletrônicos minimalistas e texturas mais experimentais elevam à composição ao sexy e ao etéreo em igual medida. É algo único.

6) Maglore (V): "Há que se manter esperançoso, mas sem esquecer da luta". Da inaugural e ensolarada A Vida É Uma Aventura aos instantes finais com Maio, 1968 nunca deixa de impressionar a capacidade do Maglore de converter seu novo trabalho em um veículo que expressa a verdadeira fé em dias melhores, mas sem deixar de lado os romances ensolarados, as dores cotidianas e as crônicas sociais. Como se fosse uma espécie de pacote musical completo, a banda intercala estilos, indo do power pop ao rock alternativo, passando pelo tropicalismo e pelo reggae. Tudo sem perder a personalidade e a coesão que apaixonariam os fãs - eu entre eles! Um bom exemplo desse expediente de idas e vindas, de passagem do tempo, de utopia e de celebração da vida pode ser encontrada na maravilhosa Espírito Selvagem que, com seu refrão grudento, melodia primaveril e letra zombeteira, cheia de ironia (Não vim aqui pra debochar / Nem boto o dedo na ferida de ninguém / Mas não consigo fingir graça / Pra essa gente que é uma farsa de doer) expressa com senso de humor o contexto de retrocessos, de extremismo e de pós-pandemia. Mas há mais, muito mais nesse registro que posiciona os baianos entre as grandes bandas brasileiras da atualidade.

5) Criolo (Sobre Viver): Desigualdade social, violência, pandemia, extremismo religioso, racismo, milícia, destruição da natureza. Tudo ao mesmo tempo e agora - e nesse sentido a impressão que fica é a de que nunca foi tão necessário um novo disco de rap do Criolo. Aliás, há todo um quê de literalidade na obra, a quinta de estúdio, já que o artista perdeu a irmã precocemente para o covid-19 há pouco mais de um ano. "Como a gente se fortalece, como a gente segue em frente? A música consegue tirar o que a gente tem de melhor, a música sempre nos dá uma segunda oportunidade" refletiu, em entrevista recente ao site Tracklist, citando o episódio, que aparece na soberba canção Pequenina (Cuidar da minha irmã, agora só em prece / Ela não tá mais aqui é que esse mundo não te merece). A propósito, o canto vigoroso e poético de Criolo, um verdadeiro mestre em misturar (e até recriar) estilos, surge com contundência em meio ao caos perpetrado por esse atual momento que vivemos - e canções de títulos autoexplicativos como Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais, Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer e Diário do Kaos funcionam quase um diário de nossos tempos. Com participação de convidados como Milton Nascimento e Liniker, o paulistano mostra que está em ótima forma.
 
4) Xênia França (Em Nome da Estrela): "Tem vezes que eu espero / Outras vezes me desespero /Quando nada mais faz sentido / Só confio na força / Que trago comigo / Então sigo reexistindo / E renascer é preciso". Quase como se funcionassem como uma carta de apresentação, os versos da inaugural - e classuda e elegante e utópica e sincera e potente - Renascer servem como uma linda porta de entrada para o segundo trabalho da baiana Xênia França. A melodia pegajosa que se espalha, mas se conecta, será uma espécie de padrão ainda que, aqui e ali, cada faixa funcione como um ato em si - o que não retira jamais o aspecto homogêneo do disco. Interestelar, por exemplo, é invadida por uma percussão tribal mais vigorosa, ao passo que Futurível, regravação de Gilberto Gil, aposta em uma eletrônica levemente minimalista em torno dos versos existencialistas sobre transmutação de energia, humanoides, teletransportes, mutantes e outras dimensões. Obviamente esse mergulho em outros "planos" não reduz a conexão com a brasilidade, com movimentos ritualísticos e com a ancestralidade - o que é comprovado ao se escutar a soberba e ondulante Dádiva, composta por Luiza Lian, ou mesmo a luminosa Ancestral Infinito.

3) Planet Hemp (JARDINEIROS): Sim, acreditem: a mistura de evangelistão, fetiche armamentista e agropop que compõe o bolsonarismo é tão bizarra que este foi um dos motivos para que o Planet Hemp saísse de um hiato de vinte e dois anos sem lançar um novo trabalho. Era tudo mato quando Marcelo D2 entregou ao mundo o agora distante A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000) e, ouvindo as canções de JARDINEIROS, é praticamente impossível não pensar no mal-estar completo de nossa nação, que funciona como pano de fundo para versos potentes que jogam luz a todo o absurdo atual. "A gente achou que nunca mais iria fazer um disco, porque estávamos satisfeitos com nossas obras, até o Brasil nos obrigar a sair desse lugar de conforto", comentou Marcelo D2 em entrevista para o portal O Dia. Nesse sentido, não deixa de ser interessante notar como a banda ressurge com todo o vigor, entregando uma série de músicas marcadas pelo forte caráter político, sem medo de enfiar o dedo na ferida. Um bom exemplo disso está na visceral TACA FOGO ("Vivem em seus condomínios, malditos minions fazendo arminha com a mão / Tem coisa mais cafona, rico roubando em nome de Deus cristão?"). E, como não poderia deixar de ser, o tema favorito da banda não fica de fora, vide a ondulante faixa-título.

2) Tulipa Ruiz (Habilidades Extraordinárias): "qual a sua 'habilidade extraordinária'?". A história curiosa por trás do título do quinto trabalho da cantora e compositora santista pode ser apenas isso: uma história. Curiosa. Ainda que, inegavelmente, ela tenha levantado a importante questão sobre o que é produzir arte em um País que massacrou a cultura nos anos Bolsonaro. Em termos mais "práticos", se pararmos pra pensar na habilidade extraordinária da própria Tulipa, para além do Grammy, acho que está a capacidade de saber que, em time que está ganhando não se mexe. E isso não significa se repetir em cada disco e sim utilizar os mesmos conceitos testados anteriormente para ampliá-los, engrandecê-los. Afinal de contas a MPB da artista nunca é óbvia - com cada álbum surgindo envernizado pela modernidade, ainda que as inspirações sejam a vanguarda paulistana, o funk setentista ou o tropicalismo. Equilibrando balanço, brasileirismo, sensualidade, natureza e ancestralidade, Tulipa, uma mestre nos jogos de palavras e nas artimanhas da poesia, das idas e vindas e dos encontros e desencontros de consoantes e vogais, jamais ignora a importância de temas como violência contra a mulher (Kamikaze Total), resistência em meio a distopia brasileira (Novelos) e abusos no uso da tecnologia (Não Pira) ou no universo do trabalho (Vou Te Botar no Pau). Já nasceu clássico.

1) Terno Rei (Gêmeos): O final de tarde na cidade, os dias cinzas de outono, a escadaria do colégio, a mistura de sensações que nos invade em meio a divagações cotidianas. Definir a música feita pelos paulistas do Terno Rei é colocar uma série de referências no liquidificador, para extrair de lá uma sonoridade cheia de personalidade, de vigor. No limite entre a urgência dos tempos atuais e a nostalgia oitentista, o coletivo percorre cenários palpáveis, eventualmente melancólicos, em que dilemas afetivos e existenciais colidem com uma estética vibrante, pop e quase juvenil. Em seu mais recente trabalho, esse tipo de expediente pode ser percebido já no saboroso single Dias de Juventude - com sua melodia curvilínea e letra que não faria feio na abertura daquele seriado adolescente que, agora, parece deslocado no tempo (Eu quero te lembrar / Dos dias da juventude / Da noite legal, viagem sem fim / Da boca no ouvido e a cabeça na Lua). Outras canções como Sorte Ainda, Brutal e Olha Só reforçam esse conceito - que, aliás, é reforçado pela capa de tintas desbotadas, esmaecidas -, representando ainda um avanço em relação aos primeiros e enfumaçados álbuns (caso de Essa Noite Bateu Como Um Sonho). Apenas não dava pra ignorar: é o melhor disco nacional do ano.

A meu ver, penso que ficou uma lista bem equilibrada e que dá ao menos uma parte da dimensão daquilo que tem sido produzido no nosso País atualmente. Outros projetos, como, os do Tatá Aeroplano (Não Dá Pra Agarrar), do Qinhones (Centelha), do Gabriel Ventura (Tarde), do Bruno Morais (Poder Supremo), da Gloria Groove (Lady Leste) ou da Deize Tigrona (Foi Eu Que Fiz) bem poderiam ter entrado na nossa relação - e talvez se eu refizesse essa lista já na semana que vem, muita coisa já estaria mudada.

E pra vocês? O que faltou aqui? Quais foram os grandes registros desse ótimo ano musical? Deixem seus comentários!

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