De: George C. Wolfe. Com Chadwick Boseman, Viola Davis e Michael Potts. Biografia / Drama, EUA, 2020, 94 minutos.
É simplesmente impossível assistir a uma obra como A Voz Suprema do Blues (Ma Raney's Black Bottom) e não ficar ainda mais compadecido pela morte precoce de Chadwick Boseman que, aqui, encarna o seu derradeiro papel. E admito a vocês que o trailer me enganou um tanto, já que esperava um tempo maior de tela da Viola Davis - a Ma Rayney do título, uma das primeiras cantoras de blues de que se tem conhecimento -, sendo que o astro de Pantera Negra é quem tem, na verdade, o melhor arco narrativo, sendo tão protagonista quanto a estrela de How to Get Away With Murder. E, sinceramente, pode separar a estatueta dourada: em um filme baseado em uma peça de teatro e em que as interpretações são tão importantes, acho difícil que Boseman, com sua entrega habitualmente qualificada, tão enérgica quanto contida, não leve o Oscar póstumo. O que provavelmente se consolidará como um dos grandes momentos da cerimônia marcada para abril do ano que vem.
Nesse sentido, quem esperava uma discussão um pouco maior sobre os efeitos causados por uma mulher negra no mundo da música há cerca de um século atrás, poderá sair um pouco decepcionado. E confesso que, em partes, vi a experiência um tanto comprometida, já que Ma Rayney surge em tela como uma artista já empoderada, autossuficiente e consciente de seu "papel" na sociedade norte-americana dos anos 20. A ponto de brigar com os seus empresários por contratos mais justos no que diz respeito aos direitos sobre suas canções e de jamais se censurar diante das eventuais pressões da gravadora que pretende produzir seu primeiro disco - e penso ter havido uma clara romantização da personagem, especialmente em um País tão racista como os Estados Unidos. E não é que a discussão sobre preconceito não esteja lá: ela apenas ficou algumas "camadas" um pouco mais abaixo no combo geral, com outros dramas e narrativas paralelas ocupando mais espaço em tela.
E é justamente esse o caso do arco dramático do personagem de Chadwick Boseman. Quando chegam ao estúdio para a gravação do álbum de Ma Rayney, os músicos expressam seus medos, seus anseios, suas ambições. No caso do trompetista Levee (Boseman) a ideia mais para a frente será a de se "desgarrar" do papel de mero músico de apoio para produzir suas próprias músicas. Mais do que isso: ao repaginar canções antigas da grande estrela do blues para uma roupagem mais moderna - com arranjos mais floreados, mais coloridos -, Levee entra em conflito com os produtores e com a própria Rayney. Aos poucos as motivações de cada um bem como suas histórias de vida se descortinarão, com o roteiro valorizando muito mais os diálogos e as interpretações (cheias de closes e de planos fechados) do que qualquer outro movimento mais expansivo. Assim são raras as externas, com a câmera centrando "fogo" nos ambientes claustrofobicamente fechados, com os músicos debatendo o contexto social, cultural e até político da época em discursos potentes e que seguem relevantes até hoje.
Assim, trata-se ao cabo de uma obra de sutilezas, muito bem montada e que tem no poder da arte - e na música em si - uma de suas fortalezas. Não por acaso, em meio ao truncado processo de gravação, nos deparamos com frases contemplativas como "quanto mais música existe no mundo mais completo ele é". Há nesse sentido uma verdadeira ode aos artistas que quebram paradigmas com seus esforços e anaturalização de Rayney como uma potência virtuosística de sua época é parte disso - o que é complementado pelo charme meio errático de seu comportamento tão ambicioso quanto temperamental. O que também rende sequências engraçadas como aquela em que a estrela "briga" pela oportunidade de poder desfrutar de uma Coca Cola. É um filme que cumpre seu papel e que ainda dá um tapa na cara do espectador com sua sequência final, que mostra que, nesse universo, a música pode ser apenas mais um comércio como qualquer outro - sensação que seria ampliada mais adiante, com apropriações culturais indevidas e mal utilizadas em prol do capital.
Nota: 7,5
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