Toni Morrison escreveu O Olho Mais Azul entre 1962 e 1965 - na década em que eclodiriam, portanto, os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. E é uma obra que, por trás do véu da discussão dos padrões de beleza na sociedade, permanece mais do que atual em seu debate sobre preconceito, ódio e intolerância. A trama centra sua história na jovem Pecola Breedlove, menina negra (e tida como feia) do Estado de Ohio que sonha em ter os olhos azuis como forma de amenizar o racismo que a rodeia - vindo de casa, da escola, da vizinhança - e que, por comparação, também poderia servir para "ver o mundo" de outras formas. Marcada pela violência, Pecola integra uma família bastante disfuncional, com um pai abusador e alcoólatra e uma mãe completamente negligente. Após um incidente familiar, o serviço social da cidade de Lorain, onde se passa a ação, instala Pecola temporariamente na residência da família MacTeer.
Narrada em formato de fluxo de consciência, a obra intercala vozes - e até estilos -, sendo predominantemente contada por Claudia Macteer, jovem da mesma idade de Pecola (11 anos). Dividido em quatro capítulos - Outono, Inverno, Primavera e Verão -, o livro contém um prólogo que dá conta da brutalidade do cotidiano de sua pequena protagonista. Metaforicamente, o jogo de palavras envolvendo "cravos-de-defunto" que não cresceram dão conta da consumação de um estupro que, mais tarde, saberemos ter ocorrido dentro da própria família. O racismo é um problema, mas a violência doméstica também o é. E a obra descortinará uma série de episódios cotidianos em que o histórico preconceito estrutural tomará forma. Sem aliviar lado pra ninguém, Morrison recua no tempo narrar situações da juventude de Cholly e de Polly - os pais de Pecola - e de como eles viriam a se tornar quem são. E aí estão inclusas, também, as mais variadas violências.
Acho que um livro assim é poderoso em suas sutilezas, em como se apropria de suas temáticas, espalhando-as nos detalhes, nas cenas mais prosaicas. Há uma sequência, por exemplo, em que Pecola vai ao mercadinho comprar alguns doces, sendo completamente mal tratada pelo dono da venda, que sequer a "enxerga", tão pequena que é, atrás do balcão (e os negros não seriam quase sempre "invisíveis" e nossa sociedade?). Em outra parte, Claudia, que também é negra, se mostra indignada com o fato de as bonecas que recebe de presente de Natal serem todas brancas - e a importância do discurso sobre representatividade ganha força nesses pequenos instantes. Um combo que faz com que Pecola, de forma até inconsciente, renegue a sua raça e sonhe com todas as forças em ter os cabelos cacheados, a pele e os olhos claros de Shirley Temple, que aparecia na televisão no começo dos anos 40, período em que se passa a história.
Falecida no dia 5 de agosto de 2019, Morrison viria a ser a primeira autora negra a receber o Prêmio Nobel de Literatura - em 1993. Em sua obra, livros como Amada (1987), Jazz (1992) e Paraíso (1999) repetiriam o expediente, invariavelmente colocando a questão racial como ponto essencial de suas narrativas. Outras temas recorrentes, caso do feminismo, ressurgiriam no formato de mulheres fortes, com personalidades marcantes - com a crítica enquadrando, não por acaso, a sua obra na vertente do Feminismo Pós-Moderno. A própria Pecola, em seu universo de descobertas, de frustrações, de medos e de falta de perspectivas, cresce num contexto de sonhos interrompidos, mas de ampliação de consciências, a partir de dores desnudadas - eu, particularmente, gosto de pensar no trio de prostitutas que acolhe Pecola, na vizinhança, como a representação desse espectro contestador e de quebra do status quo. "Escrever é realmente uma forma de pensar - e não apenas sobre sentimentos, mas também sobre coisas que são díspares, não resolvidas, misteriosas, problemáticas ou apenas doces", afirmou certa vez a autora. É possível afirmar que O Olho Mais Azul simboliza essa frase de forma inadiável.
Muito, muito bom!
ResponderExcluirObrigado, Laurinha! Uma honra te ter aqui nos meus "escritos".
Excluir