"A Matilde, talvez por criar viúva o seu único filho, enojava-se do mesmo jeito mas agia diferente. Não teria coragem para desfazer um filho, o único filho, que tanto trabalho e sonho lhe dera. Se, pelo menos, o pudesse mandar embora, mesmo que não tivesse mais familiares, nem muito para onde ir. Ficariam sozinhos um do outro. A Matilde queria acreditar que, mandando embora, o filho poderia resolver o problema, como se longe dali não florisse, não gesticulasse, não subisse um tom nas sílabas mais bonitas das palavras quando falava a rir, talvez longe dali não fosse maricas. Talvez porque ela também tivesse culpa. Era culpada duas vezes, uma de ter o feito assim, outra de não encontrar solução e competir-lhe tanto encontrar solução. Respondia à vizinha que o Antonino era só um miúdo, e nem gostaria de rapazes porque ainda sequer tinha idade pra gostar de raparigas."
Quando a gente lê o trecho acima do livro O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, a gente vai se dando conta que a obra é apenas nas aparências, e de acordo com a sua orelha, uma narrativa sobre um sujeito à beira de completar 40 anos, que deseja ardorosamente ter um filho. Sim, o pescador Crisóstomo quer aplacar a solidão vivenciada em sua casa isolada na beira da praia - indo encontrar no adolescente Camilo, um órfão de uma anã, a oportunidade de preencher a sua metade vazia. Mas quando outros personagens - marginalizados, minoritários, vulneráveis - vão se juntando àquela família meio improvisada, de almas tão excêntricas quanto generosas, percebemos que este é um livro sobre os excluídos sociais, os invisíveis, e a sua eterna busca por um lugar no mundo. Ao cabo essa é uma obra sensível e lírica pela capacidade de fazer emergir a esperança, a partir do amor.
Antonino, o "homem maricas", é renegado pela própria mãe. Crescendo num ambiente de preconceito e de intolerância, especialmente por ser um sujeito que não tem vergonha de expressar seus sentimentos, é tratado pelos demais como uma espécie de aberração. Um esquisito que quebra a ordem lógica dos homens de bem e a sua eterna busca pela heteronormatividade como padrão. Na ideia de se sentir menos odiado pelo entorno, improvisa um casamento com uma mulher enjeitada de nome Isaura - uma jovem magricela, esquálida. Incapaz de cumprir com suas obrigações matrimoniais na noite de núpcias, Antonino simplesmente foge. Isaura fica arrasada - com a sensação de dor sendo ampliada pela iminente morte de sua severa mãe, Maria. Meio sem rumo, Isaura vai parar no mesmo vilarejo litorâneo que abriga a casa de Crisóstomo, se juntando a este e a Camilo.
Só que, entristecido, o próprio Antonino se unirá ao trio, encontrando amparo naquele coletivo inusitado, na família escolhida. Camilo acha Antonino estranho mas vai aprendendo a conviver com ele, a respeitá-lo. Afinal, ninguém nasce querendo odiar. São coisas que se aprendem. Em casa. Nas frestas que fazem emergir discriminações travestidas de moralismo barato. E como se já não bastassem todos esse desencontros - que viram encontros -, há ainda a curiosa história de Rosinha, caseira de dona Matilde, que, de forma paralela se casa com o fazendeiro Gemúndio, que lhe promete mundos e fundos. Só que a coisa desanda quando, num jantar de celebração à união, Rosinha morre após comer um pedaço de carne de uma galinha gigante, supostamente mágica. O que faz com que sua filha Emília, assim como Matilde, também se junte ao grupo de Crisóstomo. Como resumiria o ensaísta argentino Alberto Manguel, cada personagem aqui "é símbolo de libertação e triunfo pessoal, que demonstra as infinitas possibilidades da alma e da imaginação humanas". Foi minha terceira obra de Mãe, lida. Tão boa quanto as anteriores.
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