terça-feira, 4 de abril de 2023

Cine Baú - A Noite Americana (La Nuit Américaine)

De: François Truffaut. Com Jacqueline Bisset, Valentina Cortese, Dani, Alexandra Stewart, Jean-Pierre Aumont e François Truffaut. Drama / Comédia, França / Itália, 1973, 116 minutos.

Quando pensamos em François Truffaut parece ser meio inevitável nos vir a mente a imagem do diretor de cinema "cabeçudo", que integrou a Nouvelle Vague e que entregaria ao mundo obras-primas do movimento, como Os Incompreendidos (1959) ou Jules e Jim: Uma Mulher Para dois (1962). Mas há um outro lado do realizador que, por vezes, é meio ignorado e que envolve uma capacidade única para a concepção de obras íntimas, cotidianas, diretas. Sim, Truffaut era um teórico do cinema - escritor do semanário Cahiers Du Cinéma - e talvez fosse bastante natural a adoção de um espírito mais transgressor na hora de produzir filmes. Mais quebrador de lógicas ou de padrões. E não é que isso não se aplique ao A Noite Americana (La Nuit Américaine), mas poderia haver filme mais classicamente genérico (no melhor sentido) do que esse? A ponto de o próprio diretor debochar desse ideal de erudição que costuma rondar projetos do movimento?

Em certa altura da trama, o diretor de cinema Ferrand (o próprio Truffaut) é perguntado por um produtor se ele não gostaria de fazer um filme político. Ou quem sabe um filme erótico, pra ficar em outro modismo? Só que Ferrand está elaborando um suspense agridoce intitulado A Chegada de Pâmela - que não faria feio na temporada de verão de Hollywood. Sim, o filme dentro do filme é esquemático, repleto de amenidades, até meio piegas. E, de alguma forma, esse sentimentalismo se refletirá no comportamento de grande parte das pessoas que trabalham com ele - com todos os imprevistos que vão de astros com ego excessivamente inflado até chegar ao calendário apertadíssimo de filmagens. Fazer um filme, ao cabo não é fácil e Ferrand precisa lidar com toda a sorte de percalços. O orçamento é pequeno. Os problemas pessoais afetam a todos - traições, intrusões, doenças e outras questões mundanas. Mas a magia da câmera ligada não pode parar.


Aliás, é preciso que se diga que poucas vezes um filme foi tão realista e até mesmo afetuoso na abordagem do que ocorre nos bastidores, com seus improvisos, ajustes, logística necessária. A própria noite americana em si é uma técnica de filmagem que utiliza um filtro noturno nas tomadas de dia. A sequência com neve transparece magia. A da chuva que bate na janela é prosaica e divertida. Assim como toda a cena inicial em que um grande número de figurantes é coordenado, até o impactante instante em que um sujeito agride o outro em plena praça pública. O vai e vem, as idas e vindas. Há uma coisa lúdica e envolvente, que nos deixa sobressaltados o tempo todo. De alguma forma Truffaut parece gritar que fazer um filme não é tarefa fácil. Mas sem deixar de observar o prazer advindo da experiência. O fascínio. Um filme sobre fazer filme é sempre algo que magnetiza. E em A Noite Americana há toda uma simplicidade evocativa desses elementos formidáveis. Que desconstroem os astros. E que os humanizam.

Em uma cena, por exemplo, há todo um esforço comovente da equipe para que um simples gato consiga tomar leite de um pires. Ou para que uma veterana atriz consiga abrir a porta certa na conclusão de uma sequência. E qual o tamanho ideal para um revólver em um momento que se pretende violento? São instantes que formam essa colcha de retalhos de um universo que vai no limite entre o sonho e a realidade, a abstração e a materialidade. Vencedora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia daquele ano, a obra segue inesquecível como exercício de linguagem, com grande riqueza de detalhes, citações a obras diversas e um elenco afiadíssimo em suas tiradas com senso de humor exótico. "Fazer um filme é como um passeio de diligência no velho oeste. Quando você começa, espera uma viagem agradável. Na metade do caminho, você só espera sobreviver", afirma Ferrand ainda no terço inicial. Para o espectador, essa viagem não poderia ser mais agradável.


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