terça-feira, 3 de agosto de 2021

Cinema - Caros Camaradas (Dorogie Tovarishchi)

De: Andrey Konchalovskiy. Com: Yuliya Vysotskaya, Yuliya Burova e Andrei Gusev. Drama, Rússia, 2020, 119 minutos.

Se compreender os meandros políticos do nosso Brasil já não é tarefa fácil, imagina então os da antiga União Soviética. Ainda assim, os que se aventurarem a uma sessão do ótimo Caros Camaradas (Dorogie Tovarishchi) - o enviado da Rússia na categoria Filme em Língua Estrangeira no último Oscar - certamente serão recompensados. Há, pra começo de conversa, um fio condutor da narrativa, que culminará no episódio que ficou conhecido como Revolta de Novocherkassk - ocasião em que empregados de uma fábrica de construção de locomotivas entram em greve pelo fato de a comida estar a cada dia mais cara (e escassa), as condições de trabalho serem precárias e os salários estarem a míngua. O ano é 1962 e a promessa, com o Governo de Nikita Khrushchov, era o de criar um novo paradigma para o comunismo, muito mais distante da violenta herança estalinista que, com seu radicalismo - especialmente no que diz respeito às severas políticas agrárias -, acabaria levando milhares de pessoas à morte.

Só que os preços altos e o desabastecimento parecem estar batendo na porta. E os trabalhadores, no limite, avançam com o protesto. Que é reprimido de forma violenta pelo Exército Vermelho do Governo Soviético, com o apoio da KGB. O resultado? Vinte e seis pessoas mortas e outras 87 feridas pelas forças armadas de Khrushchov. E é aqui que entra o grande dilema da película: quando somos apresentados à uma certa Lyuda Semina (Yuliya Vysotskaya), percebemos logo que ela é uma saudosista de Stalin e que as correntes comunistas na Rússia podem ter várias vertentes. Como funcionária do Comitê do Partido Comunista ela atua de forma crítica ao Governo Khrushchov. Mais do que isso: tem saudade do período de bonança experimentado durante a Era Stalin. Por outro lado, sua filha Svetka (Yuliya Burova) representa o "outro lado" dessa equação. Como funcionária da fábrica se vê envolvida nas manifestações. E acaba desaparecendo após o massacre promovido pelo Governo. Para desespero da mãe que, com o coração "politicamente ferido", deve ir em busca do paradeiro da jovem.


Ao cabo, trata-se de um filme de forte teor político, que, em meio a discussões sobre a importância da greve e da sindicalização, faz lembrar clássicos como o nacional Eles Não Usam Black-Tie (1982) ou mesmo o ótimo alemão Adeus, Lênin (2003) - especialmente no que diz respeito à conduta antagônica de pais e filhos no debate político. Segura de suas convicções, Lyuda trafega entre gabinetes, comitês e outros setores ligados ao Partido Comunista, sem deixar de expressar o seu repúdio à massa trabalhadora (um coletivo que ela não hesita em taxar, preconceituosamente, de bêbados, vagabundos e outros adjetivos). "Antigamente as pessoas trabalhavam 16 horas ao dia e não reclamavam", argumenta em certa altura. Só que quando o comportamento extremista das forças de segurança do Governo a afetam diretamente, não lhe resta alternativa que não seja questionar as metodologias beligerantes aplicadas por Khrushchov. Aliás, ela mesma passa a ser perseguida, em certa altura.

Dura, árida, sem concessões, a obra do diretor Andrey Konchalovskiy utiliza a fotografia em preto e branco a seu favor - o que resulta em uma espécie de tributo ao conterrâneo Sergei Einsenstein que, em 1924, filmaria A Greve, outra obra-prima com título autoexplicativo. Lenta, de fluidez demorada, levemente introspectiva, a película chafurda nos meandros da podridão de uma política militarizada, em que o único recurso possível parece ser o uso da violência. Aliás, nesse sentido, por mais que faça a crítica ao modelo extremista de esquerda, o filme parece funcionar quase como uma distopia de um outro tempo, que se aplica ao momento que vivemos em nosso País - quando direitos são cassados, empregos são sucateados, trabalhadores são exauridos, sindicatos são suprimidos e a população como um todo se vê ameaçada. Há, no decorrer da narrativa, uma sequência quase simbólica desse tipo de falência, quando uma enfermeira é obrigada a assinar papéis que lhe obrigam a silenciar sobre os horrores presenciados no hospital, após o massacre. Esconder documentos, abafar verdades, burocratizar processos... o modus operandi, no fim das contas não muda. Independente do País que se esteja.
 
Nota: 8,0

2 comentários: