De: Margolzata Szumowska e Michal Englert.Com Alec Utgoff, Maja Ostaszewska, Lukasz Simlat e Weronika Rosati. Comédia dramática, Polônia, 2020, 113 minutos.
Foi com o ótimo Medos Privados em Lugares Públicos (2006) que o falecido Alain Resnais elaborou uma verdadeira colcha de retalhos em que a hipocrisia da sociedade era evidenciada a partir da história de seis pessoas - três homens e três mulheres - que tinham suas vidas cruzadas. Na narrativa - meio fria, eventualmente insólita, quase como uma fábula existencialista -, temas como solidão, efemeridade das relações e a instabilidade do amor, eram apresentados de forma primorosa, enquanto a neve que persistia em cair, se apresentava como a metáfora estética perfeita que servia como alicerce para a ideia geral do filme. De alguma forma, é possível afirmar que Nunca Mais Nevará (Sniegu Juz Nigdy Nie Bedzie) - o enviado da Polônia para a mais recente edição do Oscar e que finalmente está chegando aos cinemas - repete esse expediente. Ainda que de uma forma invariavelmente mais hermética.
Trata-se ao cabo de um filme curiosamente agradável de se assistir, ainda que reserve uma boa dose de complexidade para as suas camadas mais interiores. A trama nas aparências é muito simples: nela acompanhamos um imigrante ucraniano de nome Zhenia (Alec Utgoff), que atua como massoterapeuta em um condomínio fechado na Polônia. Indo de casa em casa, sempre com a sua maca portátil a tiracolo, o protagonista tem contato com as mais variadas figuras que habitam esse universo particular - da dona de casa mãe de dois filhos que parece estar insatisfeita com o casamento, passando pelo idoso de comportamento reacionário até chegar a mulher solitária que se ocupa de cuidar de seus cachorros. Em meio a porteiros e vigilantes, a existência pacata do local parece estar sempre no limite do "acontecimento". Por baixo do véu de tranquilidade, um sem fim de angústias que sempre parecem prontas à vir a tona, seja em forma de discussões acaloradas, seja por meio de pulsões sexuais reprimidas.
Bonito e habilidoso no seu ofício, Zhenia vai aos poucos ganhando a confiança de cada uma daquelas pessoas - sejam homens ou mulheres. O que torna a sua presença um veículo para tensões latentes, que são complementadas por gestos econômicos, olhares de satisfação e a busca hedonista por algum prazer que a existência vazia já não parece mais capaz de satisfazer. Aqui e ali em cada diálogo, temas como xenofobia, opressão às minorias e a futilidade dos extratos mais abastados da população, surgem em pequenas pílulas, que nunca soam excessivamente invasivas. O mesmo vale para a curiosa análise da neve como fenômeno natural que está em "extinção" - e que aqui estabelece um diálogo sofisticado com a obra de Resnais. Diante de tudo o que (não) acontece, não demora para que Zhenia se transforme em uma espécie de guru daqueles que atende: condição que é reforçada pelo exercício de habilidades que vão para além da mera massagem.
Em linhas gerais, é um filme que possibilita uma série de interpretações - e que certamente fará sucesso naquele clube de cinema alternativo da faculdade de humanas. Nada é óbvio, por mais que o fio narrativo dificilmente se desvie do prumo. Tecnicamente bem executada, a obra recorre ainda a flashbacks para esclarecer que Zhenia também possui os seus próprios traumas - e a cada ida para esse "canto" do seu inconsciente nos desperta mais curiosidade sobre o que teria ocorrido, no passado, com sua família. Pra quem gosta do estranhamento gerado pelo trabalho da diretora Malgorzata Szumowska - aliás, tem resenha do excelente Body (2015) aqui no Picanha -, encontrará em Nunca Mais Nevará um prato cheio. Místico, soturno, emocionalmente curioso, é aquele filme que não entrega uma solução fácil. Mas que nos tira da zona de conforto. Eu, particularmente, adoro isso.
Nota: 8,0
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