Existe algo meio mórbido na ascensão de aberrações políticas como Jair Bolsonaro que é meio difícil de explicar. E saber que quase 50% dos eleitores brasileiros desejam uma figura como esta na Presidência é algo ainda mais assombroso. Bolsonaro não mede palavras em suas falas. Em entrevistas, já afirmou que o erro da Ditadura Militar foi torturar e não matar. Disse ser necessário "limpar" o Brasil assassinando umas 30 mil pessoas - inclusive o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso. Falou em fuzilar a "petralhada". Em suas manifestações apenas ódio, preconceito, intolerância, derramamento de sangue, ratos na vagina das mulheres, brutalidade de todos os tipos. E, ao mesmo tempo que 50 milhões de pessoas votam (e aplaudem) os atos do "mito", outros tantos convivem com o medo, a tensão, o sofrimento.
Mas como é possível se regozijar com o sofrimento alheio? Somos perversos por natureza? É da nossa essência se satisfazer, se divertir com a dor daquele que nos é diferente? O que explica essa onda fascista, que tem movido tantos brasileiros? Sim, é claro que o filme Violência Gratuita (Funny Games), aparentemente, não é sobre o autoritarismo. Mas, de alguma forma, ele dialoga com o tema, ao propor ao espectador uma espécie de jogo sádico que subverte qualquer lógica narrativa vista em cinema. Começo, meio e fim? Final feliz, com os mocinhos se salvando dos bandidos? Esqueçam. O que o diretor Michael Haneke (dos igualmente ótimos Código Desconhecido e Caché) quer, é ver até que ponto somos capazes de suportar - e encarar de frente - a violência, permanecendo indiferentes à ela. "Não era tortura, morte e sofrimento que vocês queriam? Então tomem", é o que ele parece nos dizer.
Na trama o casal Anna (Naomi Watts) e George (Tim Roth), acompanhados do filho Georgie (Devon Gearhart) vão passar as férias na casa de campo que fica em uma região nobre de Long Island. Não demora para que o clima tranquilo e idílico do local, de lugar ao horror e ao pesadelo quando os jovens Paul (Michael Pitt) e Peter (Brady Corbet) invadem a casa, tomam a família como refém, agridem covardemente Goerge e passam a propor uma série de jogos sádicos - garantindo a eles, ainda, que eles só têm doze horas de vida pela frente. Sobre os invasores? Nada de pretos, pobres, dependentes químicos ou outras pessoas à margem da sociedade. Tratam-se de pessoas brancas, loiras, bem vestidas (alvamente vestidas, diga-se), de banho tomado, que gostam de recitar frases religiosas, mas que praticam atrocidades. E que parecem sentir prazer nisso.
Hábil na montagem do filme, Haneke transforma a obra em um assombroso estudo sobre a nossa essência enquanto seres humanos e sobre como somos muito mais capazes de "tolerar" a violência que não nos diga respeito - e que, invariavelmente, nos desumaniza. Em filmes não toleramos ver as "famílias de bem" agredidas ou até assassinadas. Mas não nos livraremos do sentimento catártico ao assistir ao bandidão se dando mal. Mesmo que tudo aquilo que estamos vendo seja, no fim das contas, apenas um filme. E é justamente ao brincar com a lógica de mundo do cinema - especialmente o hollywoodiano - é que o diretor transforma Violência Gratuita em uma das mais (pasme) divertidas experiências cinematográficas do milênio. Não por acaso, assistir a Paul virando para a câmera apenas para perguntar se "estamos do lado da família", consiste-se em um dos tantos grandes momentos da obra.
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