Incrível perceber como, mais de 35 anos depois de ter sido lançado nas cinemas, o clássico Eles Não Usam Black-Tie, do diretor Leon Hirszman, segue dolorosamente atual. O Brasil caminhava para o final de uma longa ditadura em 1982 - época em que greves como a dos metalúrgicos, ocorrida em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, ganhavam força. Esses movimentos emergentes, diga-se de passagem, buscavam melhores condições de trabalho ao passo que protestavam contra o arrocho salarial (quando reajustes não acompanham a inflação), reivindicando liberdade e autonomia sindical. Nesse sentido, é possível afirmar que a obra de Hirszman - adaptada de uma peça de Gianfrancesco Guarnieri - era a verdadeira representação de seu tempo. Um tempo que consolidou mobilizações trabalhistas que perduram até hoje e que marcam o surgimento de um sindicalismo que que se caracteriza pela organização. Aliás, não é por acaso o fato de a efervescência política fazer surgir não apenas o Partido dos Trabalhadores (PT), mas também a figura do nosso eterno melhor Presidente da história, Luiz Inácio Lula da Silva.
De alguma forma o filme de Hirszman nos joga para dentro desse contexto, ao nos apresentar para o jovem operário Tião (Carlos Alberto Riccelli). Absolutamente alienado em relação ao contexto em que está vivendo, Tião está apenas interessado em prover uma boa vida para a namorada Maria (Bete Mendes), que está grávida. O pai de Tião, Otávio (o próprio Guarnieri), é um ardoroso militante sindical que, a despeito da idade, não perde o seu idealismo - e nem o sonho alimentado pela classe trabalhadora, por dias melhores. Quando uma assembleia faz com que ecloda um movimento grevista, a categoria metalúrgica fica dividida (e pai e filho acabam ficando em lados opostos desse debate). O jovem Tião não quer perder o emprego e fala a língua do patrão ao acreditar no fato de que é melhor estar empregado do que não ter emprego. Otávio, como se fosse a matriarca do clássico moderno Adeus Lênin, preferia ver o filho ao seu lado, na marcha por melhores condições de trabalho. É desse conflito que resultará o grande arco dramático da película.
De certa forma, Hirszman olha com certa melancolia para a juventude - desinformada, ignorante, afastada da realidade. Na trama de Eles Não Usam Black-Tie é clara a miséria - não apenas financeira, mas intelectual, com a massa de trabalhadores preocupada apenas em jogar sinuca, tomar uma cachacinha ou acompanhar os rumos da novela (e não é por acaso que as sequências envolvendo o pai bêbado de Maria, absorto diante da televisão, são tão pungentes). Os poucos idealistas que ocupam-se da greve (e de sua importância) com mais intensidade, como é o caso de Sartini (Francisco Milani, em inesquecível caracterização), são taxados de subversivos, insurgentes, rebeldes. Mas são eles que estão tentando atrair a atenção dos trabalhadores na fábrica. E que estão apanhando e sendo levados ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Otávio já foi parar lá mais de uma vez, diga-se. Em uma delas, ficou preso três anos.
O choque de frente entre Tião e Otávio renderá algumas das mais inesquecíveis sequências da história do cinema brasileiro - e ainda que penda a balança para a importância da discussão dos direitos trabalhistas, Hirszman não deixa de olhar com certa ternura para Tião. O medo de perder o emprego, as pressões sociais para ser o provedor da família, o fazem ser o "fura greve" que vemos. E não é por acaso que a mãe Romana (Fernanda Montenegro, assombrosa em sua delicada interpretação), fica no meio dos dois, dedicando a ambos o mesmo carinho e a mesma compreensão. Na verdade não há uma solução fácil, e Hirszman faz questão de deixar claro que Tião - com sua eventual fraqueza - e Otávio - com seus delírios idealistas - não são os vilões. O vilão, especialmente naquela época, era o contexto político/social do Brasil, que exauria a massa trabalhadora, acabando com a sua esperança e relegando-a as migalhas de uma falsa promessa de fortalecimento econômico.
Em uma época em que a classe trabalhadora assiste entorpecida à políticos golpistas executarem à revelia reformas como a Trabalhista e a da Previdência (que surrupiam direitos há muito conquistados), Eles não Usam Black-Tie, como já dito, segue absurdamente atual. Especialmente em um cenário em que muitos brasileiros anseiam pelo retorno da ditadura, anseiam por intervenção militar e tratam o empresário (e o empregador) como espécies de semideuses benfeitores que estão na terra pra auxiliar o cidadão comum a ter o que comer. Vencedor de vários prêmios no Festival de Veneza, o filme, fotografado por Lauro Escorel e com trilha sonora de Adoniram Barbosa, se tornou, em 2015, o décimo quarto melhor da história em uma lista formulada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Uma obra fundamental, pungente, de grande relevância artística e que permanece como uma das preferidas de qualquer cinéfilo.
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