Os filmes alemães que buscam a expiação dos fantasmas do passado relacionados ao nazismo funcionam quase como uma categoria à parte - não sendo diferente com o ótimo Lore (Lore), película disponível na Netflix. A trama da obra toma por base um contexto pouco explorado pelo cinema: o do que teria acontecido com as crianças e adolescentes que se tornaram órfãs frente ao colapso do exército alemão, a partir do momento em que as forças aliadas invadem a Alemanha e prendem os (pais) nazistas, que deixam para trás os seus filhos. Nesse sentido, a narrativa volta para a primavera do ano de 1945 para contar a história da Lore (Saskia Rosendahl) do título, uma jovem de 14 anos que se vê sozinha, tendo de cuidar dos outros quatro irmãos mais novos, a partir do momento em que os pais nazistas são capturados pelas tropas americanas.
Não bastasse o fato de terem de conviver com a fome, com as doenças e com a falta de uma moradia para chamar de sua, os jovens ainda serão, conforme a guerra se aproxima de sua conclusão, um alvo fácil daqueles que passaram os últimos seis anos combatendo o nazismo. À eles resta fugir, tentar encontrar uma casa e evitar ao máximo o contato com judeus ou com as tropas aliadas. E haja andanças pelo meio do mato e paradas em lugares com pessoas nada amistosas e ressentidas pelos anos de perseguição político/ideológica. Em uma dessas andanças, Lore e os meninos encontram o jovem Thomas (Kai Malina). Seus documentos pessoais revelam o fato de que ele talvez possa ser um judeu que, ainda assim, parece disposto a ajudar as crianças. Mas como aceitar ajuda de uma pessoa que eu considero inimiga do regime?
Esse é um dos tantos dilemas do filme. No seio familiar, Lore e as crianças cresceram aprendendo a respeitar o Terceiro Reich e a odiar as minorias - sabem de cor, inclusive, os cantos nacionalistas alemães assimilados por meio de audições via rádio dos programas estatais. Thomas está a margem da sociedade, e convive com o mesmo grau de vulnerabilidade dos demais. Erra, acerta, tem atitudes impensadas e exemplifica de forma magistral o fato de que, na guerra, só há perdedores. Ele se afeiçoa de Lore. Mas ambos estão em lados opostos nesse conflito. O que certamente causará uma grande confusão na mente da protagonista. Para piorar, ela vai percebendo que talvez o nazismo não fosse aquela "maravilha toda" que seus pais (ou os programas de rádio) vendiam. É ao "descobrir" na marra o mundo, que Lore se liberta, paradoxalmente, daquilo que lhe amarrava.
A cena de um cervo em miniatura sendo esmagado por Lore talvez seja a metáfora meio óbvia do processo de transformação - e de reconfiguração de seus paradigmas - que ela vivencia. O nazismo talvez fosse ruim (será?) e ela vai descobrindo isto nos gestos nada sutis da avó reacionária ou no comportamento exagerado de algum vizinho extremista. O próprio Thomas talvez não seja aquilo que aparente e o clima sombrio do filme é reforçado por uma câmera ostensiva, quase sempre grudada no rosto das personagens. A fotografia empalidecida, somada a um desenho de produção que reconstitui uma época opaca, sem vida, contribuem para uma sensação generalizada de melancolia que percorre a película. É filme europeu sem final feliz: oblíquo, dolorido, angustiante, mas cheio de significados. E que reflete um tempo que deveríamos DESEJAR que jamais retornasse. Mas que, no surpreendente Brasil do Golpe, pode retornar, pasme, por meio do voto.
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