quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Lado B Classe A - Spiritualized (Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space)

Difícil definir o sentimento que nos invade a cada audição do superclássico Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space dos ingleses do Spiritualized mas, de forma geral, ele poderia ser resumido como uma possível entrada em uma igreja renascentista localizada no espaço sideral - por efeito de drogas ou não. Nada é óbvio na coleção de canções que arranja os 70 minutos do trabalho, que é permeado por uma série de emanações etéreas que, agregadas a uma psicodelia multicolorida, subversiva e juvenil, transforma o disco em um dos mais fascinantes lançados não apenas em 1997, mas naquela década (pra não dizer do milênio). E isso que 1997 foi o ano de Ok Computer, do Radiohead e de Urban Hymns, do The Verve, isso só pra citar dois discos importantes daquele ano. E tão roqueiros, heterogêneos, ambíguos e multifacetados quanto este.

O álbum já abre com a música-título - espécie de tour de force alienígena, amplificado por efeitos eletrônicos oníricos, que não faria feio na trilha sonora de algum filme de ficção científica dirigido por Terrence Mallick (bom, a canção faz parte do filme Vanilla Sky, façamos justiça). Nela, o vocal sussurrado e inviolavelmente discreto demais de Pierce esbanja sentimento ao afirmar que "tudo o que quer na vida é um pouco de amor, para se libertar da dor". Parece óbvio, parece simples e talvez até seja. Mas poucas vezes as dores passionais, o sentimento de isolamento, a ansiedade generalizada e o caos interior foram tão bem traduzidos. Come Together é um rockão setentista com direito a vocalzinho gospel no final - cortesia do London Gospel Choir que, ao lado de uma dúzia de músicos convidados integra o time responsável por dar vida ao trabalho. Já I Think I'm In Love - que finaliza a trinca inicial de canções - equilibra bem o ar interiorano de baladinha rock country de filme alternativo, com um piano, baixo e sopros bem pontuados e uma letra lisérgica sobre a paixão que alucina em meio a uma tarde de calor pestilento. Parece literatura beat em forma de música.



Até a insuperável Cop Shoot Cop - canção desalentadora que encerra o trabalho e que versa sobre um mundo individualista em que o que importa é viver a qualquer custo - o disco alternará caos e placidez, desordem e tranquilidade. All Of My Thoughts, por exemplo, começa como uma canção de ninar extraterrestre em que a voz lânguida e propositalmente "preguiçosa" do vocalista conduz os versos, que explodirão em uma balbúrdia trovejante e jazzística. É o exagero e a economia convivendo em harmonia e sendo fundamentais para o bem da canção. Stay With Me emula aquilo que o Blur tanto tentou fazer no final dos anos 90 - uma balada de amor sincero sobre querer estar perto a todo o custo (e que faz com que o ouvinte se identifique de imediato). Já Electricity, com aquele clima de boate flamejante talvez seja aquilo que mais poderia se aproximar de um hit - com direito a refrão (e guitarras) grudentas. Home Of The Brave, The Individual, Broken Heart e No God Only Religion, mantém a "régua" em alta (e também o clima ora místico, ora espacial, ora alucinógeno e SEMPRE muito provocativo e roqueiro). E há ainda Cool Waves, disparada a melhor faixa do disco.

Não bastasse ser um disco absolutamente inesquecível e importante do ponto de vista musical, Ladies and Gentlemen ainda se diferenciava por trabalhar com um conceito que apresentava a arte visual do registro como se este fosse uma bula - com indicações para o consumo de, no máximo, duas vezes ao dia (o que será muito difícil para quem ingressar pelas curvas surpreendentes e atmosféricas do álbum). Absolutamente viciante, o registro nos fará extrapolar a bula. Nos fará ter uma overdose que a persistência dos sintomas não será capaz de aplacar. O disco era apenas o terceiro do Spiritualized, que lançaria mais quatro trabalhos mais tarde - Let It Come Down (2001), Amazing Grace (2003), Songs In A&E (2008) e Sweet Heart Sweet Light (2012). Todos com qualidade superior. Todos com aquele clima espiritualizado, de variações roqueiras e de reflexões pautadas pelo caos interior. Mas nenhum deles como Ladies and Gentlemen. Pouco vendido na época - até mesmo esquisito para alguns - o trabalho se mantém até hoje como um dos pontos altos do mercado fonográfico dos anos 90. Recebeu uma rara nota 10 do Pitchfork. Foi disco do ano no New Musical Express. Aparece na lista de 1001 discos para ouvir antes de morrer naquele livro. E segue intocável nos corações dos fãs mais ardorosos - que já aguardam com as mãos para o céu (como se tocados por uma espécie elegíaca de deus musical) pelo novo disco da banda, de nome And Nothing Hurt, que chega às "lojas" no próximo dia 07 de setembro.



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