Fruto do preconceito e da discriminação que são resultado da mais completa ignorância humana, o racismo já foi retratado dezenas de vezes no cinema. Talvez como forma de (tentar) exorcizar o seu passado sombrio no que diz respeito ao tema, Hollywood se tornou - inclusive em sua filmografia recente - especialista em contar histórias que debatem a conquista de direitos civis dos negros, a superação do período escravista e o respeito a igualdade entre raças, deixando de lado, ainda, e salvo algumas lamentáveis exceções, qualquer tipo de estereótipo que possa estar vinculado a sua presença na sociedade. E por mais que a vitória de Donald Trump na terra do Tio Sam represente um enorme retrocesso - que, inclusive "legitima" o discurso de ódio contra as minorias - não se pode negar a importância do poder transformador da sétima arte que, por meio de obras como Doze Anos de Escravidão (2013), Amistad (1997), A Cor Púrpura (1986) e Conduzindo Miss Daisy (1989), nos apresenta uma dura realidade não tão distante assim.
Bom, mas o racismo, como sabemos todos nós, não é exclusividade dos Estados Unidos, como mostra o singelo, simpático e envolvente Bem-Vindo a Marly-Gomont (Bienvenue à Marly-Gomont), essa pequena pérola do cinema francês, presente na plataforma de streaming Netflix. Diferentemente dos filmes mais sérios e, naturalmente, mais engajados sobre o assunto, o diretor Julien Rambaldi opta por uma abordagem mais leve ao retratar o preconceito sofrido pela família Zantoko, nascida no Congo, em um pequeno povoado provinciano do interior da França. O chefe da família, Seyolo (Marc Zinga), recém se formou em medicina em Kinshasa e recebe a oportunidade de mudar de vida com a mulher e os dois filhos para trabalhar na tal Marly-Gomont do título, como o médico do posto de saúde local. Só que na comunidade, em grande parte formada por pessoas brancas, idosas e altamente católicas, nunca na vida se viu um negro. E, evidentemente, quebrar esse paradigma não será fácil, já que a hostilidade diante daquilo que se desconhece muitas vezes está na raiz do problema.
Já na chegada a família experiencia o preconceito em todos os seus movimentos, que são espionados pelas frestas, pelos cantos de cada quadra da aldeia, sendo exacerbados até mesmo no silêncio dos demais moradores, que sequer são capazes de dirigir a palavra aos novos vizinhos. Uma simples ida a feira pode ser desastrosa, denunciando uma discriminação que está enraizada no íntimo de todos dali. Na escola as crianças são chamadas por termos preconceituosos e, no fim das contas, a família toda fica desencantada com a sua nova morada, especialmente a esposa Anne (Aïssa Maïga) que, a despeito da simpatia que tenta transmitir, encontra na comunidade absolutamente conservadora e fechada apenas a inapelável distância. O único que mantém certo otimismo e esperança é Seyolo. Ainda que não consiga pacientes inicialmente - os moradores preferem viajar 15 quilômetros para a cidade vizinha para serem atendidos pelo médico branco -, o jovem se aproxima dos moradores que frequentam o bar, fazendo amizade e ganhando, aos poucos, alguma confiança. Não que seja o suficiente para qualquer tipo de transformação imediata em suas vidas.
Por mais que o tema seja sério - e por vezes até mesmo revoltante, ainda mais sabendo do fato de que o filme é baseado em história real, ocorrida no ano de 1975 - o diretor perfuma todos as sequências com certa "tristeza graciosa" (se isso é possível), sem deixar de chamar a atenção do espectador para a importância do respeito as diferenças - ainda que, aqui e ali, isso não signifique necessariamente profundidade de argumento. E conforme os desconfiados moradores de Marly-Gomont vão descobrindo que a cor da pele de uma pessoa nada tem a ver com o seu caráter ou com a qualidade do trabalho que ela exerce, o filme vai sendo iluminado por um clima de esperança que culmina em um dos mais tocantes finais de filme do cinema recente. Ainda que as tentativas da filha Sivi (Médina Diarra) de jogar futebol com os meninos, a presença da animada e barulhenta família congolesa - que transforma uma pálida canção religiosa em uma efervescente apresentação gospel - e mesmo um ponto de vista político sobre o assunto, também se configurem como barreiras a ser superadas.
Em uma época em que, no Brasil, nos acostumamos a ver os preconceitos de todos os tipos travestidos de "liberdade de expressão" - alguém se esqueceu sobre como foram tratados os médicos cubanos do Programa Mais Médicos do Governo Federal, que não seriam tão "qualificados" como os daqui? - assistir a uma obra como Bem-Vindo à Marly-Gomont serve, sim, para nos fazer sorrir, mas também para nos alertar para o fato de que a discriminação racial existe, não foi superada e deve ser combatida por todos nós todos os dias. Um médico não será pior ou melhor por ser preto - ou não será um "curandeiro", como chega a mencionar um dos personagens da obra, em meio a sua argumentação. Ou mesmo um bandido, como imagina outro. O mesmo vale para um advogado. Um jornalista. Um empresário. Os moradores daquele povoado perdido no tempo em alguma época da "Idade Média" custaram um tanto para compreender isso. E quando perceberam, passaram a ser um povo mais empático, mais gentil, mais generoso. Enfim, mais feliz.
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