segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Cinema - Julieta (Julieta)

De: Pedro Almodóvar. Com Emma Suárez, Adriana Ugarte, Daniel Grao, Blanca Parés e Rossy De Palma. Drama, Espanha, 2016, 99 minutos.

Sou um grande fã do estilo transgressor de Pedro Almodóvar e de seu olhar todo especial para as pessoas à margem da sociedade - sejam elas os gays, as transexuais, as prostitutas ou os drogados que costumam compor o universo de suas histórias. Em muitos casos, especialmente em sua filmografia mais antiga, esses personagens vêm acompanhados de uma caracterização um tanto expansiva fazendo com que o resultado beire o teatral ou o farsesco - no melhor sentido de ambas as palavras. Assim sendo, não deixa de surpreender o clima de "novelão mexicano", estilo que o espanhol abraça de vez em Julieta (Julieta), seu mais recente trabalho - drama que fala de escolhas (e de perdas) no que diz respeito ao relacionamento familiar. E, esse contexto, é preciso que se diga, de forma alguma se constitui em um demérito, já que o estilo elegante do formato certamente cairá no gosto até mesmo daquela fatia do público que costuma ser mais conservadora - e portanto avessa aos acontecimentos vistos em obras essenciais como Má Educação (2003) ou A Pele Que Habito (2011).

Existe um lugar-comum que diz que "família não se escolhe, simplesmente acontece", e, num sentido mais amplo, pode-se dizer que a frase combina bem com o que se vê no filme. No começo da película, somos apresentadas a uma Julieta (Emma Suárez) já na meia-idade, disposta a abandonar Madri para morar em Portugal ao lado do namorado Lorenzo (Dario Grandinetti). Em sua expressão ao mesmo tempo doce e melancólica parece haver também um tanto de amargura, que aflorará ainda mais após um encontro fortuito com a jovem Bea (Michelle Jenner), uma antiga amiga de sua filha. Pois esse encontro de poucos segundos e de, aparentemente, inexpressivas trocas de palavras, será o suficiente para que Julieta mude de ideia, não apenas permanecendo na capital espanhola, como se mudando para o antigo apartamento em que morava. O encontro com o passado recheado de pendências e de casos mal resolvidos, será feito por meio de uma carta, destinada a sua filha Antía (Bianca Parés).



Revelar mais do que isto seria estragar algumas das boas surpresas que o diretor - que toma por base textos da canadense Alice Munro, vencedora do Nobel de Literatura em 2013 - entrega ao espectador, com toda a calma do mundo, aludindo ainda a um clima de suspense à Hitchcock, visto também em outras obras, casos de Volver (2005) e Abraços Partidos (2009). Na carta de Julieta, agora jovem (e vivida por Adriana Ugarte), há, entre outras, as memórias relacionadas ao seu primeiro marido, o pescador Xoan (Daniel Grao), que ela conhece em uma viagem de trem. Ainda que o primeiro encontro, com o rapaz ainda casado, represente o início de uma paixão tórrida, parece haver mistério em cada curva que fazemos no acompanhamento da obra. Sentimento acentuado pela trilha sonora propositalmente sufocante de Alberto Iglesias ou mesmo por acontecimentos curiosos, como o aparente suicídio de um excêntrico sujeito de meia-idade que estava no mesmo trem de Julieta e Xoan e que, anteriormente, tentara puxar conversa com ela.

O sentimento de tensão - não apenas sexual (com a presença da sexy artista plástica Ava, amiga de Xoan), mas também em relação a rotina do casal - comporão um quadro em que tragédias familiares serão praticamente inevitáveis. O que fará com que a jovem Antía tome uma decisão que modificará para sempre o relacionamento com a sua mãe. Como se fosse um artesão das imagens, Almodóvar esquadrinha cada sequência utilizando-se de cores primárias fortes e saturadas (o vermelho já é um clássico), que, aparecendo de maneira contrastante, funcionam como metáfora perfeita para o relacionamento daqueles que vemos na tela. Da mesma forma, o espanhol filma objetos - como as esculturas compostas por Ava, muitas delas em formato de homens "despedaçados" - como forma de tornar palpável aquilo que está apenas no ar ou no campo das ideias.


Utilizando-se ainda de uma fotografia que ilustra de maneira inteligente (cortesia do diretor Jean Claude Larrieu) as variações de sentimento das personagens - repare como a paleta de cores é muito mais viva nas cenas da juventude de Julieta, por exemplo - o diretor ainda possibilita a atriz e amiga de longa data Rossy De Palma um dos mais instigantes, curiosos e divertidos papeis da obra - uma espécie de governanta de Xoan, que se mete em tudo que diz respeito a sua vida. É muito provável que Julieta não seja o melhor filme do espanhol. Mas sua melancolia sutil, sua sincera elegância, a grande quantidade de mulheres fortes e o arrebatador argumento, certamente apagam a má impressão deixada pelo inexplicável Os Amantes Passageiros (2013), seu trabalho anterior. E se serve como dica, levem a caixa de lenços junto. Ela pode ser necessária.

Nota: 8,3

Nenhum comentário:

Postar um comentário