Vamos combinar que, se não foi fácil elaborar a lista dos discos internacionais, com os nacionais a situação não é diferente. Nossa música, afinal, nunca foi tão plural e diversificada - e eu admito que é simplesmente impossível conseguir acompanhar todos os lançamentos. Muita coisa fica fora do radar e tenho a mais absoluta certeza de que, ali adiante, vou escutar algum disco que poderia integrar essa lista (mas que não entrou a tempo porque simplesmente a coisa foi atropelada e não deu). Um levantamento desse tipo é, em muitos casos, um recorte do momento. Daquilo que foi possível. Ou que mesmo furou a bolha.
Claro que, como responsável por um site sobre música e cinema, cabe a mim escavar, tentando sair do óbvio. Pesquisar bastante. Ver o que outras páginas estão comentando. Ou o que os selos nacionais estão lançando. E o caso é que, de fato, foi um ano muito bom - e talvez um dos melhores da safra recente. Foi tempo de refinamento e de indie pop mais cabeçudo (como no caso de Mateus Moura), mas também foi tempo de festa, celebração e brasilidade (sendo um dos maiores exemplos o álbum da Gaby Amarantos). Mas tem pra todos os gostos - rock, emo, R&B, MPB, jazz, rap, latinidade e até conga (você já ouviram falar do Congadar?). Enfim, a lista é longa, espero que gostem, comentem e compartilhem!
30) Jonas Sá (_MNSTR_): Um Jonas Sá bem menos debochado do que aquele visto, por exemplo, no divertido BLAM BLAM! (2015). Assim podemos considerar a experiência com o recente _MNSTR_, um álbum mais introspectivo, de atmosfera estranha e de maior densidade emocional. Afinal, se no registro lançado há dez anos havia toda uma energia de programa de auditório dos anos 80 - com toda uma teatralidade reforçada por um conjunto de canções pop sarcásticas, de humor cínico, com títulos que meio que entregam a proposta (Gigolô, Perdidos na Noite, Sexy Savannah e Chat Roulette) -, aqui temos um artista que aposta num tom mais direto, confessional e menos performático. Um bom exemplo nesse sentido pode ser percebido na faixa Musa, um rock soul meio gospel, de alta carga dramática, e que abre espaço para discussões de gênero de forma sensível e criativa (Eu me chamo Maria mas sou João / O meu corpo sabia / Mas eu não). Em meio a instantes existencialistas, o disco também debate política de forma mais franca, como em Quanto + Idiota Melhor, um bolero indie em que o artista critica a falta de memória do brasileiro, em meio a citações à Damares e ao Carluxo (64 está escrito e não vai se apagar / Meus filhos vão crescer sabendo em quem acreditar).
29) Vitoria Faria (Vacas Exaustas): "Sou mulher, muito prazer / E esse prazer é só meu / [...] Hoje ninguém vai dizer 'se apanhou mereceu'". É quase na conclusão de Vacas Exaustas, que Vitoria Faria parece condensar o conceito do seu disco de estreia - uma experiência catártica, que mistura rock, música eletrônica, jazz, tango e manguebeat. Em linhas gerais as mulheres estão cansadas. Do machismo. Da violência. Da misoginia e do controle de corpos. Da falta de reconhecimento ou de espaço. De estar onde quiser. De decidir sobre sua vida, seu corpo ou sexualidade - com o "prazer" exaltado não como alegoria, mas como grito, como verdade, o que também ocorre em Asas à Cobra (Tem coisa mais perigosa / Que a mulher que fala e goza?). Em entrevistas, a artista chegou a mencionar as dificuldades em ser mulher e imigrante em um País colonizador como Portugal, onde residiu por quatro anos. "Naquele momento eu entendi na pele a construção da sociedade patriarcal e capitalista que a gente vive", resumiu em entrevista ao site O Grito. Não por acaso, canções como Elefante pelo cano (um forró esquisito), Zap de Família, uma valsa debochada que alude à escrotidão familiar, ou a faixa título (Minhas tetas estão exaustas / Pra cada menino mal educado / Caíram meio metro quadrado), são tão corrosivas .
28) Viridiana (Coisas Frágeis): Uma Viridiana muito mais expansiva é o que encontramos em Coisas Frágeis, o segundo registro de inéditas da gaúcha. Se Transfusão (2021) parecia uma experiência mais econômica, aqui temos um projeto que espalha uma energia pop, dançante e oitentista que flui de forma orgânica, natural. Bebendo na fonte de artistas diversos como Marina Lima, Madonna, Rita Lee e Pet Shop Boys, a cantora encontra o equilíbrio perfeito entre as canções bem-humoradas como Final Feliz (Gato / Desculpa te falar assim / Mas é que uma moça que nem eu / Que tem algo a mais / Eu preciso de alguém / Que me satisfaz), com instantes contemplativos e de coração partido, como no caso de Você Puxou Meu Tapete (Que vontade / De te bloquear / Em tudo que é rede social). Há um clima soturno que prevalece no todo, com a dança funcionando como veículo de resistência e de pertencimento, especialmente para a comunidade LGBTQIA+. "Venho sendo DJ desde 2022 em festas queer de Porto Alegre, e observar a forma como as pessoas se movem, se olham, se apaixonam na pista, e como a música que tá tocando ali rege tudo isso, me deixou instigada pra cada vez mais me apropriar dessa música que faz mexer", resumiu em entrevista à Noize.
27) Seu Jorge (Baile à Baiana): Se existe alguém versátil no mundo da música essa pessoa é o Seu Jorge. Capaz de trafegar por estilos brasileiros variados, o artista jamais ignora o poder da conexão com públicos estrangeiros e as possibilidades de levar a sua arte para além dos limites geográficos do País - e basta pensar nas versões de David Bowie para a trilha sonora de A Vida Marinha com Steve Zissou (2003), para que essa certeza só aumente. Só que, ainda assim, talvez faltasse em sua discografia aquele registro que condensasse todas as possibilidades da nossa música. E que fosse capaz de representar toda a nossa diversidade e riqueza culturais. De essência festiva, mas sem ignorar as questões sociais que costumam perpassar as suas músicas, o disco se converte rapidamente em uma experiência de altíssima voltagem. A inspiração, de acordo com o artista, teria vindo depois de uma visita ao espaço cultural Galpão Cheio de Assunto, em Salvador, um local que abrigava música, exposições e outras expressões de convergência criativa. O resultado é uma mistura de soul, funk, afropop, carimbó, MPB e samba rock, que resultam em uma sonoridade harmônica e enérgica, sendo impossível resistir à joias como Sábado à Noite, Batuque, Lasqueira, Gente Boa se Atrai e Sete Prazeres.
26) Raquel (Não Incendiei a Casa por Milagre): Ex-integrante do elogiado trio As Baías, Raquel não esconde as inspirações literárias e cinematográficas em sua estreia solo - o que pode ser percebido não apenas no título do trabalho, mas também em sua capa colorida, ambas influenciadas pelo livro de contos O Último Sonho, do diretor (e escritor) Pedro Almodóvar. Em linhas gerais há uma fúria teatral (no melhor sentido), que se espalha pelas sete faixas do registro - que se apoiam em um rock meio entortado, entre o indie, a MPB e o psicodélico, uma coisa meio Rita Lee com Ney Matogrosso -, pra tratar de paixões, dores e dilemas pessoais. "É um abismo, a gente fica em um limite psicológico e isso traz essas sensações de raiva, inveja e crises de comparação. Chega uma hora que da vontade de incendiar tudo. Por isso é um álbum de rock, porque só uma guitarra, uma bateria e um baixo bem rock são capazes de me esvaziar disso", explicou em entrevista à Rolling Stone. Um bom resumo desse contexto pode ser percebida na feroz Ao Vivo, um bolerão noventista sobre preconceitos, transfobia e relacionamentos "no sigilo" (Os beijos / Nas travestis são dados nos esconderijos, becos / Mas continuam ainda assim sendo deliciosos / Beijos).
25) Lucas Grill (Grill o Rei do Deprê Chic): "Imagine Ziggy Stardust protagonizando a ‘Ópera do Malandro’, de Chico Buarque; adicione as noites exageradas de Cazuza; a melancolia de Cartola; o existencialismo de Belchior; a boemia de Nelson Gonçalves; as baladas de Roberto; o wild side de Lou Reed; a trova cool de Julian Casablancas, a loucura dos Beatniks; as estrelas de Oscar Wilde; a rima torta dos poetas malditos; um toque de Almodóvar, luzes de Wong Kar Wai; a praia, as noites do Rio de Janeiro, as garrafas, os cigarros e, por fim, os amores e os desamores. Pronto, temos ‘Grill O Rei o Deprê Chic’." Vamos combinar que a explicação dada pelo próprio Lucas Grill ao site Tracklist sobre o conceito de seu disco de estreia poderia soar petulante (em meio a referências nada modestas), mas ela é apenas perfeita. Da capa de tintas violeta noir às melodias soturnas e enevoadas, passando ainda pelas letras existencialistas, esperançosas e melancólicas, tristes mas festivas, iluminadas porém sombrias, tudo no álbum grita esse caldeirão que mescla pós punk, gótico, dream pop, MPB, bares e caminhadas na orla à noite. Não por acaso, canções como O Terror de Tudo, Loser, Poesia na Chuva e Moldura Quebrada passeiam com fluidez por esse ambiente onírico e um tanto cinematográfico.
24) Ebony (KM2): Quem acompanha a carreira da rapper Ebony percebe as diferenças entre seu disco de estreia, Visão Periférica (2021), e o álbum lançado nesse ano. Se naquele a artista soava comedida - talvez por tentar se enquadrar em uma caixinha que envolvia grande gravadora e mesmo incertezas sobre o futuro -, aqui ela parece muito mais solta, falando de forma íntima e livre de rótulos, a respeito daquilo que ela quer, e do jeito que ela quer. Sem medo de falar palavrões ou mesmo de ser mais explícita em relação a temas como identidade, fé, traumas do passado, sexualidade, sonhos, família, vivência periférica e outros. "Esse álbum vem da minha vontade de parar de me esconder. Não é um disco feliz. Mas também não é triste", comentou em entrevista à Rolling Stone, utilizando a metáfora do chocolate meio amargo na busca por esse equilíbrio. O resultado é uma coletânea de canções que misturam trap, R&B, jazz, funk, gospel e MPB e que versa sobre feridas do passado (Não Lembro da Minha Infância), orgulho, autoconfiança e resistência (Extraordinária), superficialidade e padrões de beleza artificiais (Festas e Manequins) e autoestima e ascensão financeira (KIA). "Eu tinha algo a dizer para além do que esperam de mim como mulher negra", comentou em bate-papo com a Rádio Quatro.
23) Guma (Virando Noite): Pode não ser tarefa fácil fazer aquele disco que tem um pé na música popular, outro no indie - e não deixa de ser interessante perceber como essa mistura flui de forma naturalmente orgânica, no trabalho do trio recifense Guma. Levemente empoeirado, mas de essência festiva, o segundo registro de inéditas da banda une tecnobrega, Jovem Guarda e sintetizadores oitentistas, com o dream pop, o jazz e o rock contemporâneo. Um bom exemplo nesse sentido, pode ser percebido na faixa Mozinho, em companhia da sempre ótima Bruna Alimonda - um roquinho de essência brega, com letra sobre encontros e desencontros amorosos e de como o afeto pode virar desapego e até certa decepção se, digamos, a coisa não bater (Se eu te descubro já não te amo, mozinho / Se você abre a boca já sofro um pouquinho / Se eu nadar nos teus olhos logo repenso, mozinho / Quando fico no raso tu é até bonitinho). A tentativa de fugir de certos sentimentos (Virando Noite), das dúvidas sobre o futuro (Tarde Demais) ou mesmo de inseguranças e desencontros (Se Eu Der Sorte) surgem aqui e ali, em disco que parece ter como lema o fato de que "amar dá trabalho, mas vale a pena". Divertida, romântica, kitsch, debochada. Essa é daquelas bandas que não tem erro.
22) Julia Mestre (Maravilhosamente Bem): "Por debaixo da pele / Sou loba, sou fera / Olhar de felina / Poder de pantera". Vamos combinar que, se ainda estivesse entre nós - ao menos do ponto de vista material (e não simbólico) -, Rita Lee estaria orgulhosa de ver onde chegou a sua "pupila". Sim, Julia Mestre nunca escondeu o fato de a ex-Mutantes ser uma das grandes inspirações de sua carreira e não são necessárias nem duas músicas do seu mais recente álbum para que adentremos novamente naquele espaço de paixões sensuais, de tesão misterioso, de desejo carnal e noturno, tão bem construído por Rita. Aliás, uma simples olhada nos títulos das canções - Vampira, Pra Lua, Veneno da Serpente, Sou Fera -, já parece evidenciar esse ideal que nunca descamba para a mera homenagem protocolar, já que a artista, ex-integrante do Bala Desejo, imprime personalidade em cada fragmento da obra. Sombrio, mas divertido, sexy mas onírico, esse é aquele tipo de registro que é direto, mas que vai crescendo a cada nova audição. Os refrãos estão lá, assim como as melodias sofisticadas, aconchegantes, havendo sempre um detalhezinho da produção polida que pode ser descoberto a cada reencontro - até mesmo pela força vocal da artista, que parece ser mais central (ainda) neste disco.
21) Jadsa (Big Buraco): Vamos combinar que a figura da coisa grande, de tamanho maior (ou big), meio que funciona como um espectro onipresente no último registro da baiana Jadsa. Em meio à emanações oníricas e sofisticadas que fundem jazz, samba rock e MPB e que sempre foram marca de sua carreira, não são poucas as menções ao enorme, ao gigante - nem que seja um gigante simbólico, uma alegoria para tempos de grandes expectativas, especialmente no que diz respeito à arte e seu imediatismo. Dos títulos das canções - Big Luv, Big Bang, 1000 Sensations, Big Mama, Big Buraco (que também nomeia o disco), às letras provocativas e enigmáticas que parecem até maiores em sua simplicidade (As coisas acontecem quando querem / Quando crescem todo mundo vê / Não o caminho traçado a navalha / Mas o tamanho do bicho que é) - tudo remete a essa representação de profundidade, de intensidade. Talvez uma audição descompromissada não resulte nessa percepção de imediato, mas em meio a sopros bem encaixados, efeitos que se espalham e percussão levemente experimental, o que se tem é um trabalho caloroso, o que pode ser comprovado em faixas envolventes e brasileiríssimas como Tremedêra e Sob a Pele.
20) Jonathan Ferr (LAR): O simbolismo do lar como um espaço de afeto, segurança e pertencimento - de memórias e de identidades pra chamar de suas - é quase óbvio no registro lançado neste ano pelo músico e pianista brasileiro Jonathan Ferr. Em entrevistas, o artista chegou a afirmar que, para ele, o conceito de lar vai para além do físico, "sendo um espaço ancestral e cultural de onde nós viemos, um local que se expande e que é feito de memórias que se formam ao longo da vida". À página Pretessências ele chegou a comentar que o álbum nasceu após a morte do seu pai, enquanto ele estava em turnê - o que intensificaria suas reflexões sobre identidade, pertencimento, perda e o que significa retornar para casa. Mas não necessariamente como um lugar, mas sim um sentimento de acolhimento e reconexão com raízes. Não é por acaso que as canções do disco - sofisticadas, minimalistas - se expandem criando uma atmosfera que vai ao encontro dessa ideia de coletividade e de afeto. Mesclando urban jazz, neosoul, hip hop e MPB, Ferr acerta ainda ao usar a sua voz, em detrimento de canções majoritariamente instrumentais, como na época do Cura (2021). O que faz com que o ouvinte se conecte mais, tornando as excelentes Tô Apaixonado, Casa e Infinito ainda melhores.
19) Ana Spalter (Coisas Vêm e Vão): Um registro que parece um pequeno tratado sobre vida em movimento, perda da inocência, idas e vindas emocionais e as complexidades que envolvem o ato de amadurecer. Assim pode ser percebido o primeiro registro de inéditas da cantora, arranjadora e multi-instrumentista paulista Ana Spalter. E basta um passeio pelas letras ao mesmo tempo nostálgicas, poéticas e existencialistas ("Me deixa só viver / Sou jovem vou aprender", "Ah quando eu era criança eu era tão mais velha / Dona lua aparecia sempre pra puxar conversa", "As crianças se abraçam sem saber o quão especial é viver"), para que essa impressão se amplie. Perfumado por melodias que unem jazz, samba, MPB, folk e até uma psicodelia suave, esse é um disco que estabelece uma ponte direta com o passado e com o trabalho de artistas diversos, como, Elis Regina, Aldir Blanc e Milton Nascimento, mas sem jamais parecer uma mera cópia sem personalidade. Lúdico, imaginativo, quase circense em certos momentos, o álbum tem um frescor reforçado pela voz de Ana - o que pode ser percebido em canções irresistíveis, como, Privilégio Meu, Café, Criança Poeta e Acrobata - esta última uma joia fantasiosa, descrita à perfeição pelo site Pop Fantasma como um "desenho animado musicado".
18) Bella e o Olmo da Bruxa (Afeto e Outros Esportes de Contato): Uma analogia perfeita entre a ternura e a luta, entre a afeição e o embate. É mais ou menos dessa forma que os gaúchos da Bella e o Olmo da Bruxa resumem a experiência com o segundo disco. Ao cabo, os "esportes de contato" podem estabelecer um paralelo direto entre as o sentimentalismo e a vulnerabilidade que emergem das relações afetivas, com a fisicalidade e a violência da queda - mais ou menos como naquele momento em que a gente se ferra emocionalmente, e precisa recolher os cacos para continuar. Mais maduros do que na estreia de 2020, o coletivo continua apostando na mistura de shoegaze, emo e indie pop, com um pouco mais de experimentação. Um bom exemplo nesse sentido, pode ser percebido em faixas como Nova Paixão, que fala de recomeços e de esperança (E eu sei / Que você vai falar / Que a gente tava mais amigo / No meio do ano passado), até mesmo como um contraste em relação à Bem no Seu Aniversário (a canção de abertura). Um outro belo instante é Mesmo Assim, em parceria com os simpáticos da Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, que serve como espécie de peça central no equilíbrio entre melancolia e honestidade. Ainda é uma banda nova, mas que vale conferir.
17) Joyce Moreno (O Mar é Mulher): A água como metáfora, como alegoria de placidez e de calmaria não parece estar apenas na capa acinzentada à beira de um cais repleto de embarcações e que marca o 44º registro da veterana Joyce Moreno. Está também nas letras inundadas - com o perdão do trocadilho - de referências sobre praias e mares e de outros elementos da natureza, que se conectam com a feminilidade de forma quase mitológica. Há uma fluidez de torrente que se espalha em faixas que unem jazz, samba e bossa nova de forma sofisticada, como que aludindo ao singrar das ondas e a sua alternância entre calmaria e tempestade, delicadeza e força. E talvez não seja por acaso que a faixa título, que abre o disco, com seu lirismo ao mesmo tempo suave e misterioso, seja justamente aquela que personifica o mar como mulher (Algum mistério pra quem se arriscar / E os que acreditam saber navegar / Podem até naufragar / O tempo dirá): refinado, cheio de camadas, evocativo. Essas ideias ressurgem em outros momentos como em Canção de Búzios, inspirada em poema de Ronaldo Bastos, com direito a recriação bucólica dos barulhos de uma praia deserta (Se eu passar por você e falar de estrelas / Não ligue não / São estrelas do mar), em um álbum recheado de participações especiais de nomes como Jards Macalé e João Donato.
16) Baianasystem (O Mundo Dá Voltas): O ano mal havia começado e, como se fosse uma prévia para o carnaval, o Baianasystem soltou O Mundo Dá Voltas, o quinto registro de estúdio de Russo Passapusso e companhia. Em linhas gerais, para quem acompanha de perto a carreira dos baianos, não há grandes mudanças, com a sonoridade encontrando um equilíbrio perfeito entre latinidade, batucada africana, manguebeat, reggae, samba, afoxé e dub. Um conjunto que, aliás, forma a base para as letras políticas a respeito de questões sociais, que se cruzam com temas ligados à ancestralidade, preconceitos (especialmente as raciais), lutas e identidade. Um bom exemplo dessa mescla pode ser percebido em A Laje, com participação de Emicida, em que os contrastes urbanos são, simbolicamente, vistos de cima da laje, reforçando críticas sobre desigualdade na distribuição de renda e falta de oportunidades (Quem vai vingar os oprimidos é o planeta / Sampa estampa quanta anta a pampa nessa treta / Quem leva as crianças não é o boi da cara preta, é o estado / Ouvindo: Vai pra Cuba, dos pateta). O expediente se repete em outros instantes de impacto, como Praia do Futuro, Balacobaco (com Anitta) e Porta-Retrato da Família Brasileira, levando ao limite a marca do coletivo.
15) Thiago Amud (Enseada Perdida): Quando ouvimos os acordes carnavalescos de Baía de Janeiro faixa que abre o quinto trabalho de inéditas do carioca Thiago Amud, é difícil não olhar com carinho para o passado. Para uma MPB mais esperançosa, de confete e de serpentina e de fim de ditadura, como em Vai Passar, de Chico Buarque. E isso não é por acaso, já que as referências não ficam apenas na homenagem, já que não apenas Chico gravou com o artista a festiva Cidade Possessa, como ainda Caetano Veloso participou da derradeira Cantiga de Ninar o Mar. "Aliás, foi o próprio Zeca Veloso (o filho de Caê), quem se movimentou pra que o disco acontecesse", explicou Amud no material de divulgação. E ainda que estabeleça diálogo com as tradições, a história e os ritmos brasileiros - do frevo à música ancestral, passando pelo jazz e pelo pop sofisticado -, o cantor, arranjador e compositor nunca deixa de imprimir a sua marca, a sua personalidade. O que pode ser comprovado, por exemplo, na sofisticada e bucólica Oração à Cobra Grande ou mesmo em Penteu, um samba estranho, de letra vertiginosa, inspirada na peça As Bacantes, de Eurípedes. Thiago Amud precisa furar a bolha. Esse disco pode ser o caminho.
14) Josyara (AVIA): Um disco sobre o mais universal dos assuntos e que nunca parece se esgotar: o amor. Assim é o terceiro registro de inéditas da sempre ótima Josyara. Sedutor, enigmático, minimalista mas intenso, esse é um álbum que trafega com naturalidade por todas as etapas da paixão, indo do fascínio inicial ao desencanto, passando no meio do caminho pelas possibilidades da solitude e, mais adiante, pelo entusiasmo de um novo amor. Nesse sentido, basta ouvir os versos que se encadeiam de forma homogênea em canções como Eu Gosto Assim (Sou bem fácil de acessar) - releitura de Anelis Assunção -, Festa Nada a Ver (Como pode me deixar / Nessa festa nada a ver), Corredeiras (Não, não preciso dessa mágoa) e De Samba em Samba (Não tem mais amor que te faça ficar / Não há mais nada que eu possa fazer), pra perceber como se estabelece esse conceito. Peça central do trabalho, a sensualíssima Seiva tem um violãozinho cadenciado, que se espalha em efeitos eletrônicos econômicos, que culminam em um dos melhores refrãos da temporada (Pra te beber em taça cheia / Aluar / Sonho teu sabor cereja / Quero provar / Dança mansa / Pé na areia / Te embalar / Me lambuzar na tua seiva / Quero gozar). Contemporâneo, mas sem perder a conexão com suas raízes ancestrais, este é um projeto que parece delicado em sua sonoridade, mas que é potente em suas entranhas.
13) Gaby Amarantos (Rock Doido): "Eu vou sair para dançar / Eu vou curtir, e vou beber / Botar meu short beira cu / Um top, cropped, I love you". Vinte e duas faixas curtas, frenéticas, distribuídas em apenas 36 minutos de duração. A ordem em Rock Doido, quinto álbum de estúdio de Gaby Amarantos é direta: o negócio é curtir, farrear, se mexer até não poder mais. "Esse disco nasceu na batida frenética das periferias de Belém do Pará. É o som das festas de aparelhagem que me criaram, das batalhas de treme, da moda de quem não espera tendência, cria. É fogo, suor, brilho e cerveja voadora", resumiu a artista, no material de divulgação. O resultado é um projeto que surge meio que como uma extensão natural da trajetória de Gaby, em sua busca por explorar e valorizar suas raízes culturais, em eventos musicais de rua na região Norte. Divertido, caótico, sensual, vibrante e cheio de participações especiais (de Lauana Prado a Gang do Eletro), esse é um trabalho de celebração, e essencialmente brasileiro - sendo meio que impossível resistir à canções como Te Amo Fudido, Foguinho e Short Beira Cu (citada na abertura desse texto), que mesclam o tecnobrega, os ritmos latinos, o carimbó e as batidas eletrônicas levando o clima de rua, de suor e de paixão para o fone de ouvido.
12) Mateus Moura (A Imitação do Vento): Bastam os primeiros versos de Orelha de Pau, faixa que inaugura a estreia do ex-integrante do coletivo Les Rita Pavone (que também lançou disco neste ano), para que sejamos transportados para um universo psicodélico, meditativo, folclórico, poético e existencial. Definida pelo artista como uma bossa nova um tanto mântrica, a canção de abertura parece fazer a conexão com outros ecossistemas ou ambientes, ao mesmo tempo em que presta homenagem ao pai marceneiro (Quando eu olho pra orelha de pau / Eu vejo uma invenção humana / Doce invenção humana), em uma metáfora mais do que perfeita para o violão tocado de forma plácida pelo artista. Esse é o ponto de partida de uma jornada de peregrinação de uma série de composições essencialmente poéticas, muitas delas cantadas em primeira pessoas, em um estilo musical que poderia ser chamado de MPB espiritual, dado seu apelo à memórias, infância e viagens nostálgicas. Simples mas sofisticado, o registro mistura baião celestial (Estrela D'Alva), salsa cintilante (Manhãzinha), samba cigano (Celeste) e xote ibérico (na ótima Marujo de Alto-Mar) - tudo concebido de forma coesa, com o violão, os sopros e percussão delicadas, fluindo de forma a permitir a música (e o ouvinte) o respiro.
11) Stefanie (BUNMI): De Mahmundi à Rodrigo Ogi, passando ainda por Daniel Ganjaman, Rashid, Luedji Luna, Emicida e Jonathan Ferr - basta uma olhada na riquíssima lista de participações do disco BUNMI, a "estreia" da rapper Stefanie, para se ter uma dimensão de sua relevância na cena. Com duas décadas de estrada, as aspas na palavra estreia não são por acaso, dada a trajetória da artista, um dos nomes mais relevantes do estilo, a potência de suas rimas e a impetuosidade de seu canto (que se alterna entre momentos de vulnerabilidade e de delicadeza, com instantes de pura crueza, visceralidade e de conexão com temas diversos, como, violência de gênero, racismo estrutural, luta de classes e desigualdades sociais). Um bom exemplo dessa tapeçaria que une rap e boom bap clássico (aquele estilo famoso nos anos 90), com algumas pitadas de soul, R&B e jazz, é o single Desconforto - um poderoso relato sobre preconceitos e violências (Nos tratam sempre como subalternos / Difícil aceitar ver um preto / Ocupando um cargo de liderança / Meu mano NP doutor / Evita usar terno no shopping / Pois sempre acham que ele é o segurança). Resistência, dor, perda, autocuidado, memórias, feridas, vitórias - tudo transformado em arte neste belo registro, que merece encontrar um público maior.
10) Congadar (Aprendi Com Meus Antepassados): "Dá licença sinhô / Com sua licença sinhá / Que o povo de Angola e de fé / Quer entrar na roda pra sambar / Peço pra chegar / Venho pisando devagar / Nesse terreiro de fé / Peço licença pra chegar". Como se fosse uma carta de apresentação, a comovente Dá licença, que abre o terceiro registro de inéditas dos mineiros do Congadar, resume o que encontraremos dali para frente no álbum. Espécie de manifesto cultural que une rock, psicodelia, samba e congada, a banda reforça, seja nas melodias, corais de vozes, batucadas ou nas letras, temas ligados à ancestralidade, afrofuturismo e espiritualidade. Melhor produzido do que o anterior, e mais cru, Chora N'Goma (2022), o disco valoriza as raízes negras e do terreiro, sem deixar de celebrar as conquistas. Especialmente em um cenário atual, de permanente luta e resistência. "E se a gente não pode falar, quem vai poder? É a gente que está com o microfone na mão e não é simplesmente levar um som pros outros. Não, não. A gente está com o microfone na mão para trazer todo mundo para perto", comentou Marcão Avellar em entrevista ao Scream & Yell. É música que não é só pra ouvir, mas também pra sentir - como comprovam as lindas Semente Raiz e Promessa ao Gantois.
9) YMA (Sentimental Palace): "Quero que as pessoas sintam o Sentimental Palace enquanto um lugar: a decadência do hotel, a umidade, as cortinas, os detalhes". A frase dita à Revista Noize pela paulistana YMA, resume o sentimento geral trazido pelo segundo registro de inéditas da artista. "É como no cinema: você está no escuro, diante de uma tela enorme, e de repente está vivendo aquela história. Por isso, penso o disco quase como uma espécie de filme sonoro", afirmaria na mesma entrevista. E basta dar play na faixa-título, que abre o álbum, para que sejamos transportados pra esse universo onírico, enfumaçado, de certa estranheza teatral - uma coisa meio de filme alternativo -, com a mistura de dream pop, psicodelia, eletrônica minimalista e rock experimental formando a imagem ideal para essa narrativa visual. Nada é óbvio aqui, com os estilos se alternando, bem como as melodias - guiadas por sopros, cordas, sintetizadores e efeitos diversos. Mágico (Fritar na Areia), suave (2001), vulnerável (Passageira S.), etéreo (Dentro de Mim), esse é aquele tipo de registro que, ao misturar Cate Le Bon, Mercury Rev, Kate Bush e David Bowie, desafia o ouvinte, ainda que fale com profunda sensibilidade de sentimentos demasiadamente humanos.
8) Vanguart (Estação Liberdade): Vamos combinar que existem algumas bandas que nos acolhem de forma tão afetuosa, que parecem um velho amigo que já não vemos há algum tempo, mas que a gente sabe que estará ali para quando precisar. E esse parece ser o caso do Vanguart que, com mais de vinte anos de carreira, retornou após uma pausa pós-pandêmica para entregar aquilo que eles fazem melhor: uma coleção de canções pop, indie e folk de refrãos assobiáveis, unindo passado e futuro, e propondo reflexões existencialistas sobre amores (bem ou mal resolvidos), luto, amizades, recomeços, sonhos e a complexidade do dia a dia. Pode parecer simples, mas uma música como a comovente faixa-título, que abre o registro, funciona não apenas como a clássica história de paixão, dor e cura, mas como uma experiência nostálgica e primaveril sobre idas e vindas, começos e fins e chegadas e partidas (um tipo de alegoria que permeia todo o disco) - o que conecta o ouvinte de imediato, transformando feridas e inquietações em uma ponte para o movimento. O resultado são canções maduras e de títulos quase autoexplicativos, como, A Vida É Um Trem Cheio de Gente Dizendo Tchau, Rodo o Mundo Todo no Meu Quarto, Rua do Passado e Se Quiser Seguir Comigo. Todas ótimas, aliás.
7) Marina Sena (Coisas Naturais): Menos autotunes enfadonhos, efeitos eletrônicos previsíveis, forçação tiktoker e latinidade plastificada e mais brasilidade, mais bucolismo, mais interior e mais vida real. Vento batendo no rosto, estrelas nítidas no céu, uma varanda e o retorno às origens. Sim, desde o cru De Primeira (2021), Marina Sena nunca deixou de ser uma das mais autênticas artistas da atualidade, por mais que o trabalho seguinte, Vício Inerente (2023) parecesse um registro menos criativo. Só que qualquer incerteza se apaga no ótimo Coisas Naturais. Em entrevistas, a cantora explicou ter sentido falta dessa Marina mais sangue no olho, mais destemida, mais corajosa. Levando em conta o conceito de Florestania, cunhado por Ailton Krenak, a artista converte o disco em uma verdadeira coletânea de canções que mesclam estilos diversos, como MPB setentista, funk, reggae, brega, bedroom pop e reggaeton, preservando o contato com a natureza e com o místico. Peça central do trabalho, o single Numa Ilha, parece resumir a ideia já na abertura, com uma experiência sensorial de sonoridade misteriosa e letra calorosa (Descalça numa ilha, é tão mágico / Você dizendo que me ama / A Lua refletindo o mar, o seu cheiro / A gente junto na minha canga). Claro, há outros grandes instantes, como em Anjo, Mágico e Lua Cheia. Marina está na melhor fase.
6) Terno Rei (Nenhuma Estrela): Quem acompanha a carreira do Terno Rei já se acostumou com a sua música de ambientação urbana, cinzenta, de final de tarde em meio aos prédios altos e as calçadas ásperas - o tipo de sentimento palpável, que emana da sonoridade nostálgica e melancólica. Sim, a impressão que dá é a de já termos ouvido essas músicas antes - nas madrugadas das rádios alternativas ou em algum lugar na transição dos anos 80 e 90, pra quem viveu ali a juventude. As referências são quase óbvias, indo de Smiths e The Cure a Phil Collins e Radiohead -, sempre com uma guitarrinha pulsante e letras urgentes a respeito de dores cotidianas ou sofrimentos mal curados -, o que jamais significa falta de personalidade. Com um conjunto de canções perfumadas por sintetizadores enevoados, bateria frontal e refrãos nunca óbvios, o quarteto paulistano capitaneado por Ale Sater mostra maturidade e segurança neste quinto registro de inéditas, o que pode ser comprovado nas ótimas Nada Igual, Próxima Parada e Programação Normal. Já Casa Vazia brinca com a ideia por trás da solidão de um bicho de estimação - no caso um cãozinho e seu eterno estado de espera (Dessa casa vazia / Sou protetor / Isso é tudo que tenha pra dar). "Fico muito feliz em ver como nossa música consegue tocar as pessoas e acompanhar fases da vida delas", afirmou Ale. Os fãs agradecem.
5) FBC (Assaltos e Batidas): "Está no ar, está no ar! A Voz da revolução!" É na quarta faixa de Assaltos e Batidas, o celebrado retorno de FBC ao rap, que parece estar parte da centralidade das ideias do disco. Sim, ainda que não haja nada em O Capital que verse sobre "realizar um boombap potente sobre luta armada, clandestinidade e resistência" a canção funciona não apenas como uma câmara de eco do atual momento político brasileiro - com a extrema direita sempre espreitando pelas frestas -, mas como uma lembrança de que as vozes marginalizadas ainda precisam brigar para serem ouvidas (Trabalhadores lutem!). As ideias sobre desigualdade social e de exploração se espalham por outros instantes do registro, e até na mesma música (A classe dominante no poder quer nos matar / Mas não vamos morrer, não vamos correr / Trabalhadores, o que vamos fazer? / Vamos tomar o poder!), com as batidas pesadas e secas, que foram marcantes na década de 90, formando a base perfeita para as rimas vigorosas e para o flow cheio de cadência. Os comentários sobre adoecimento no trabalho (Você Pra Mim É Lucro), vigilância constante (Estamos Te Vendo) e violência policial na "guerra às drogas" (Me Diga Quem Ganha) tornam o registro um manifesto urgente sobre exploração, alienação e crítica ao capitalismo.
4) Luedji Luna (Um Mar Pra Cada Um,): Vamos combinar que não é preciso nem concluir a audição da instrumental Gênesis - que abre o quarto disco da baiana Luedji Luna -, para que saibamos estar diante de algo que não é apenas música. A cacofonia que aparenta ser excessivamente caótica e que une de forma meio torta sopros, piano e baixo revela um paradoxo, já que reserva ao ouvinte um tipo de acolhimento - por mais estranha que a canção soe. Uma experiência sensorial que faz com que adentremos de forma lenta nesse universo complexo, sofisticado e íntimo, que nos absorverá pelos próximos quarenta e poucos minutos. "Eu percebi que o som é potente. O som mobiliza a gente de várias maneiras. Ele é transformador, ele é curativo, ele altera a consciência, ele altera a nossa psique. Ele, enfim, altera até questões mesmo físicas", explicou em entrevista para o Tenho Mais Discos Que Amigos, como que resumido o conceito do registro. O resultado são músicas preenchidas por metáforas oceânicas, aquáticas, em que memórias, encontros e lugares se espalham em instantes de vulnerabilidade, mas também de força. O que pode ser percebido em joias como Kyoto (Meu coração é uma bussola, me diz onde é que te encontro) ou na irresistível Harém (Na boca da noite o vento me trouxe notícia velha), que tem participação de Liniker. Pra colocar no repeat até dizer chega.
3) Teago Oliveira (Canções do Velho Mundo): Que o Maglore é uma das melhores bandas nacionais da atualidade, não chega a ser novidade. Portanto, não há surpresa no fato de a carreira solo do vocalista Teago Oliveira preservar a capacidade de fazer música pop de qualidade, perfumada por melodias ensolaradas e um clima geral otimista. Mesmo quando as letras conectam passado e futuro, soando profundas, reflexivas, melancólicas ou nostálgicas, Canções do Velho Mundo funciona quase como um respiro em tempos tão apressados, tão tecnológicos e tão pautados por likes ou cliques. Caloroso e de sonoridade primaveril - às vezes soft rock, noutras MPB e eventualmente indie folk -, o álbum parece contemplativo em alguns instantes, como na sofisticada Desencontros, Despedidas (Diga que o tempo não volta e não dá pra parar / Diga que sente minha falta e não vai aguentar) e mais urgentes em outros, como na contemporânea e romântica Eu Nasci Pra Você (Os nossos chefes hoje são computadores / A ignorância está ficando imbatível). Há uma clara evolução em relação à estreia com Boa Sorte (2019). O leque parece mais amplo, ainda que artesanal, com o resultado sendo um sem fim de canções irresistíveis, como Spaceships, Vida de Bicho e Não Se Demore.
2) Negra Li (O Silêncio Que Grita): Basta uma passada de olhos não apenas na imagem de capa, mas também no título do álbum mais recente de Negra Li, para que saibamos: esse é mais um registro que busca dar voz a quem, muitas vezes, é silenciado. Aliás, esse costuma ser também parte do papel de artistas do gênero: o de ecoar vozes vulneráveis, marginalizadas, especialmente nesse caso o de mulheres pretas, pobres, de periferia. Em entrevistas, a própria paulistana afirmou que precisou se reinventar para buscar sua essência. O resultado é um conjunto de músicas de temas diversos, como, violência policial (Olha o Menino 2.0); hipocrisia e vidas de faz de conta (Fake); estupro, aborto e outros tipos de agressões sexuais (Uma Menina) e trabalho e direito ao lazer (Sambando). Claro que, para além dos assuntos políticos e sociais, o álbum também abre espaço para a celebração, como no caso de Abençoada, um afrobeat saboroso a respeito do poder da fé e da superação ou mesmo Amor Preto, essa com a participação da Liniker, e que também é embalada por ritmos africanos. Aliás, curioso notar como a segunda metade do registro é justamente aquela de tintas mais festivas, como no caso, por exemplo, de África, um reggae ondulante, de refrão pegajoso e cheio de referências culturais e de orgulho racial, que fecha com perfeição um dos grandes discos desse ano.
1) Don L (Caro Vapor II - Qual a Forma de Pagamento?): Em entrevistas, Don L chegou à dizer que uma de suas influências é o cinema do diretor Wong Kar-Wai. E, por mais estranha que possa parecer essa referência frente a um som tão culturalmente diverso e brasileiro como o do artista, o estilo do realizador de Amores Expressos (1994) e Felizes Juntos (1997) - entre o urbano e o onírico, entre a dureza do concreto e o corre do dia em meio a sonhos cintilantes, distópicos, românticos e sensuais - parece fazer todo o sentido quando ouvimos canções engenhosas como saudade do Mar. Feita em parceria com Alice Caymmi e Iuri Rio Branco, a música evolui de forma ondulante, unindo rap com pitadas de reggae e MPB, enquanto a letra que contrasta cotidiano e desejo de fuga parece saída de algum filme exibido em festivais alternativos (A fumaça sangra pelas persianas contra a luz vermelha / Como num submarino em chamas / Entre um cabaré na estiva e a neblina de um céu alugado / Eu quero dizer te amo e no teu sonho ser canção de rádio). Recheando o registro de um sem fim de referências culturais, samples pouco conhecidos, participações, interpolações e uma energia enfumaçada, Don L constroi um mosaico tropical, que mescla samba, funk, soul e R&B de de forma inventiva, entre o profundo e o acessível, o original e o nostálgico. É música orgânica, real, um verdadeiro manifesto contra a mesmice, como atesta para Kendrick e Kanye. Pra ouvir várias vezes até conseguir assimilar tudo. De preferência com a aba "pesquisar" aberta.































Nenhum comentário:
Postar um comentário