terça-feira, 22 de março de 2022

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Um Homem Que Grita (Chade)

De: Mahamet-Saleh Haroun. Com Youssouf Djaoro, Diouc Koma e Djénéba Kone. Drama, Chade / Bélgica / França, 2010, 95 minutos.

Um dos países mais pobres do mundo - com 80% da população vivendo na miséria - e que, ainda por cima, é assolado por constantes conflitos civis internos: essa é a República do Chade, que serve de pano de fundo para o melancólico Um Homem Que Grita (Un Homme Qui Crie), filme vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2010 e que pode ser conferido na plataforma Mubi. Na trama acompanhamos o microcosmo de um hotel de luxo que está sendo adquirido por investidores chineses. A chegada dos orientais fará com que Adam (Youssouf Djaoro), um senhor de sessenta anos, perca o emprego como gerente da piscina do hotel para o próprio filho, Abdel (Diouc Koma). Ao veterano resta aceitar uma recolocação como porteiro da hospedagem - um posto menor para quem, por tantos anos, se dedicou ao seu ofício e que tem em seu currículo uma série de campeonatos nacionais de natação.

E como se perder o posto de trabalho para o próprio filho já não fosse dolorido o suficiente, Adam passa a ser cobrado por representantes governistas para que possa contribuir financeiramente com a guerra, que busca coibir às ações de rebeldes que atacam à Pátria. Sem dinheiro, resta ao homem enviar o próprio filho para a batalha, como espécie de "moeda de troca". O que talvez também lhe permita reaver a posição perdida no hotel. Mas o que é o trabalho perto da vida daqueles que a gente ama? Dirigido com elegância por Mahamet-Saleh Haroun, Um Homem Que Grita é conduzido a partir de sutilezas que mostram como o ambiente (e a saúde) familiar pode ser diretamente influenciado pelo contexto político e social de uma nação. Integrante da classe média chadiana, Adam toma decisões questionáveis como forma de livrar a família de outras punições. Mas a que preço?


Direto, naturalista, sem espaço para firulas, o filme transforma a árida e quente capital N'Djamena em um cenário desalentador em que o hotel se converte em um espaço idílico, de respiro (e não é por acaso o desespero de um outro empregado, no caso um cozinheiro, quando este se vê diante da demissão iminente). E ainda que a obra aborde o absurdo da guerra e a sua influência na população, o filme também é sobre a insegurança do trabalho em empresas privadas, sobre os efeitos da colonização em países pobres e até mesmo sobre a efemeridade do tempo (o que talvez explique a persistência de Abdel em fotografar as coisas, em capturar instantes). As questões relacionadas à masculinidade também aparecem de forma sutil - como no caso da primeira sequência, em que Adam é derrotado por Abdel em uma prosaica competição que pretende ver quem permanece mais tempo embaixo da água.

Contemplativo, o filme aposta no silêncio até mesmo nos momentos mais movimentados, adotando também ângulos de câmera pouco convencionais, mas que são recheados de significados - e aqui vale destacar a longa e comovente sequência em que Abdel é levado na marra por agentes do governo, enquanto o pai (que é também o responsável por enviar o filho para o conflito) chora no quarto. Com boas surpresas, a obra também passa raspando por temas religiosos, por vida e morte, por fins e recomeços, pela capacidade de persistir e de encontrar alento nas coisas simples. As escolhas são difíceis, as decisões são moralmente ambíguas. Mas todos que ali acompanhamos são humanos, cheios de falhas, de defeitos, de frustrações e, principalmente, de arrependimentos. Emocionante é pouco.


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