segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

30 Melhores Discos Nacionais de 2022

Devo admitir a vocês que tenho um carinho especial pela lista de Melhores Discos Nacionais - a última que lançamos por aqui nesse 2022 tão importante. Esse é o momento de reescutar artistas, entrar em contato com trabalhos que possam ter passado "batido" e mergulhar nessa pluralidade tão democrática do nosso cancioneiro (algo que é evidenciado nessa relação em que estilos variados se cruzam). A impressão que temos, também, é de que muita coisa estava represada nesses anos de pandemia - e de reclusão - e que nesse ano os artistas finalmente se sentiram à vontade para soltar novos materiais. De retorno inesperados como o do Planet Hemp, passando por bandas queridas e aguardadas como Maglore, até chegar a estreias como a da Natália Xavier, aqui temos um recorte bastante democrático de uma parte pequena do que conseguimos acompanhar. Sim, porque certamente tem muito mais por aí do que essa simples listinha. Basta ter paciência pra garimpar. Você será recompensando, pode ter certeza.


E se você gosta de listas, não deixe de conferir as nossas relações dos anos anteriores - 2021, 2020, 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015


30) Fernando Catatau (Fernando Catatau): em tempos tão urgentes, tão apressados, de consumo tão imediato, de tik tok, de vídeos curtos e de falta de tempo pra apreciar qualquer conteúdo cultural mais elaborado, parece até um contrassenso o vocalista do Cidadão Instigado, Fernando Catatau, lançar um disco - aliás, seu primeiro em carreira solo - que requer uma apreciação lenta, demorada. Evocativo, longo, o projeto de minúcias é daqueles que vai crescendo a cada audição, recompensando assim o ouvinte mais persistente. Nada de refrãos fáceis, melodias que seguem certa lógica ou estruturas convencionais: aqui o projeto se espalha em meio a fragmentos, confissões entortadas, percussão lenta e um sentimentalismo tão melancólico quanto visceral. Misturando cancioneiro brega, concretismo poético, teatralidade, sintetizadores enfumaçados e ambientações épicas, Catatau converte as 13 músicas do disco em pequenas peças nostálgicas, intimistas, repletas de divagações cotidianas, de romances esquisitos e de angústias existenciais. Um bom exemplo desse conjunto de ideias pode ser encontrado na filosófica Não Há Mais Nada a Dizer (Meus espinhos enganchados nos teus braços / E eu sozinho procurando entender). Pra quem andava com saudade da Cidadão Instigado, o álbum é recompensador.

29) Bala Desejo (SIM SIM SIM): vamos combinar que ser detentor de um coração pulsante pelo indie não é sinônimo de ser uma pessoa taciturna ou introspectiva. Sim, os alternativos também querem festejar, com suas bermudinhas coloridas e acessórios neon - afinal de contas não é só de Lana Del Rey de fone de ouvido, no escurinho do quarto, que se vive a vida, né? Nesse sentido, o Bala Desejo despontaria, ainda em abril do ano passado, como uma espécie de "boa nova (ainda que meio tardia) do verão", como apontaria o Estado de Minas. Inspirado no cancioneiro carnavalesco e festivo dos anos 60 e 70 o coletivo carioca parece encontrar um certo "equilíbrio no desequilíbrio", apostando num caos multicolorido que parte da multiplicidade de olhares dos artistas  - e que resultará em canções tão divertidas quanto políticas, românticas, tropicalistas ou psicodélicas. De Novos Baianos a Gilberto Gil, passando por Mutantes e Tom Zé o grupo formado por Julia Mestre, Dora Morelenbaum, Zé Ibarra e Lucas Nunes condensa referências, mas sem jamais perder a originalidade ou a personalidade - o que é comprovado pelas imperdíveis Passarinha, Baile de Máscaras (Recarnaval), Dourado Dourado e Lua Comanche. Vale descobrir.

28) Ratos de Porão (Necropolítica): Alerta Antifascista, Guilhotinado em Cristo, Neonazi Gratiluz, Bostanágua, Entubado. Não é preciso ir muito além dos títulos das canções do décimo terceiro disco de estúdio de João Gordo e companhia pra perceber como os anos de Bolsonaro deixaram a clássica banda de punk hardcore furiosa. Assim como no caso do Planet Hemp, os paulistas saíram de um hiato de oito anos para entregar um álbum que reflete à perfeição a degradação política e social que foram a marca do governo do "mito". "Em cada letra narro o que está acontecendo de 2018 para cá", resumiria o vocalista, em entrevista à Carta Capital. Na mesma conversa, Gordo explica que o título do álbum - que alude a um conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe, que faz referência ao uso do poder político e social para definir quem deve viver e quem deve morrer - resume de forma exemplar a época em que estamos vivendo. "É um disco fúnebre porque morreram muitas pessoas. Metade delas poderia ter sido salva se não fosse o negacionismo retardado", salientou. Musicalmente, a produção é uma porradaria que já nasce clássica, como comprovam os versos da nervosa Aglomeração (Negando a realidade / Neopentec antivacina / Ozônio vai no cu / Não esqueça a cloroquina).

27) Andrezza Santos (EUTRÓPICA): existe um quezinho nostálgico, um sentimento de familiaridade que nos invade desde os instantes iniciais de Sem DDD - canção que abre o segundo trabalho da paulista Andrezza Santos. É algo que está ali no meio da melodia convidativa, que se une a letra despojada (Eu acabei de chegar / Em mais um novo lar / Que não é meu / Caixas espalhadas no chão / Feito essa canção) e ao refrão solar e que, conforme o desenrolar, se espalhará entre dedos estalados, vocais esticados e efeitos eletrônicos que brilham em cada curva. Fugindo do clima mais denso, contemplativo que marcaria trabalhos como o EP Sapopemba, a artista radicada na Bahia mescla estilos em uma "simbiose musical de tantos Brasis que coexistem nesse imenso País e a vasta herança da música nordestina, experimentada [...] através do xote, ciranda, axé, samba de coco e brega funk, sem deixar de fora sua grande inspiração no rock" - como resume o material de divulgação. O resultado é um coletivo de canções homogêneas, espontâneas, que utilizam a delicada voz de Andrezza como uma espécie de direcionamento natural - como atestam as envolventes A Gente ia Longe, Vagão Vazio, Eu Vou, Você Não Vem?, Cheganças e Sair Sozinha.

26) Wado e o Bloco dos Bairros Distantes, em (O Disco Mais Feliz do Mundo, Vol. 1): vamos combinar que, se existe um artista versátil no País, esse é o catarinense Wado. Permanentemente prestando homenagem à música periférica, o artista converte cada um de seus trabalhos em um exercício musical de exaltação à canção nacional - podendo essa ser a MPB (Cinema Auditivo, 2002), o samba (Samba 808, 2011) ou mesmo o axé (Ivete, 2016). Em seu décimo primeiro disco, o cantor deixa para trás o clima introspectivo e intimista que marcava o ótimo A Beleza que Deriva do Mundo (2020) - nosso sétimo colocado na lista daquele ano -, para entregar um registro de essência festiva, carnavalesca, como o próprio título sugere. Apostando em releituras que recebem aquele verniz de modernidade - como é o caso de Zanzibar, clássico oitentista do coletivo A Cor do Som, ou mesmo Meia Lua Inteira composta por Carlinhos Brown e que ficaria famosa na voz de Caetano Veloso - Wado traz para o estúdio um projeto de carnaval que já existe há mais de dez anos. "A ideia é convidar o ouvinte para uma folia dançante e solar", resumiria o artista no material de divulgação. Bom, 2023 está aí e não dá pra negar: finalmente teremos motivos de sobra para celebrar depois da tragédia dos últimos anos.

25) Molho Negro (ESTRANHO): a rotação do power trio paraense pode até ter reduzido nesse quarto trabalho - bem como o deboche a ironia que sempre marcaram as suas letras. Reflexo dos tempos? Mais sérios? Menos engraçados? Talvez. Com melodias mais minimalistas e menos expansivas do que aquelas que marcaram o divertidíssimo Normal (2018), o trabalho anterior - que continha canções imperdíveis como Novo Rosto e Ego - aqui o coletivo fala mais sério com seu público deixando o barulho (e uma parte do sarcasmo) para trás. "Foi uma coisa natural de amadurecer, de pandemia, de mundo acabando mesmo e acho que gradualmente as coisas foram tomando outras formas", explicou o vocalista João Lemos, em entrevista ao site Headbangers News. Num comparativo, seria como pegar o Supergrass da fase I Should Coco (1995), comparando-o com o da época do Life On Other Planets (2002). O resultado são canções que falam de temas mais difíceis, mais complexos, como é o caso do rock classição Não Nasceu Para Brilhar (Eu acordo e a angústia dá bom dia / Levanta a persiana e me serve um café / É mais um dia com o peito apertado / E calado porque eu não sei explicar o que é).

24) Vitor Ramil (Avenida Angélica): O estilo invernal do sempre ótimo Vitor Ramil ganha uma roupagem ainda mais poética com este décimo segundo trabalho de "estúdio". E o estúdio nesse caso é realmente entre aspas, já que o registro é resultado de duas noites de gravação realizadas em agosto do ano passado, no Teatro Sete de Abril em Pelotas. Para o disco, o artista utilizou como base dois livros escritos pela conterrânea Angélica Freitas - no caso, Rilke Shake e Um Útero É do Tamanho de um Punho - extraindo de seus versos uma coleção de canções envolventes, pontuadas pelo sempre presente violão de Ramil. "A poesia da Angélica é cult, é pop, é tocante, é divertida, é crítica, é amorosa e, acima de tudo, é muito musical", salientou o músico no material de divulgação do álbum. Nesse sentido, poemas como Rilke Shake recebem uma roupagem intimista, capaz de transformar versos enigmáticos em uma experiência semicatártica que mistura cotidiano, referências culturais diversas e sentimentos palpáveis e abstratos em igual medida (Nada bate um Rilke shake / No quesito anti-heartache / Nada supera a batida / De um Rilke com sorvete). Ao cabo, o trabalho comprova que poemas musicados podem ter ritmo, serem melodiosos e até conter refrões pegajosos. 

23) Moons (Best Kept Secret): Os arranjos sofisticados somados ao vocal esteticamente limpo - quase como um Simply Red em um encontro com o Destroyer - convertem os mineiros do Moons em um dos mais agradáveis coletivos da atualidade. Da delicadeza do dedilhado de violão da inaugural The Will To Change até chegar ao climinha folk contemporâneo da favorita do público Childlike Wisdon, tudo aqui remete a algum tipo de economia elegante, que costura a poesia e os elementos instrumentais de forma fluída e nunca expansiva. Ainda assim, se engana quem pensa que o minimalismo signifique menos força. Muito pelo contrário. Em apresentação ocorrida no meio do ano, em Belo Horizonte, o grupo formado por André Travassos (violão, guitarra e voz), Bernardo Bauer (voz e baixo), Digo Leite (guitarra), Felipe D’Angelo (voz, piano, guitarra barítona e sintetizadores), Jennifer Souza (voz, guitarra e percussão) e Pedro Hamdan (bateria e percussão) comoveu o público com seu repertório imersivo, enquanto marcava posição sobre assuntos políticos e sociais do atual momento no País - com a exibição de fotos de ativistas e de uma frase que lamentava o assassinato de lideranças como Bruno e Dom. A música funciona como um clamor por calmaria. Especialmente em tempos tão brutos.
 
22) Pelados (Foi Mal): uma pitada de Alvvays com outra de Real Estate e mais uma dose de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo e já dá pra ter uma ideia do pop perfumado e primaveril que é produzido pelo quinteto paulistano Pelados. Gravado em julho de 2021, o registro - o segundo da carreira - se espalha em meio a canções que se conectam umas nas outras por meio de áudios captados de interações, transições melódicas, fragmentos de diálogos, risadas e contagens de tempo, alternando entusiasmo, jovialidade, medos e melancolias. O resultado é um trabalho que vai no limite entre o experimental e o acessível, entre o lo-fi enfumaçado e o bedroom pop - sendo a capacidade de rir da própria vulnerabilidade e a ironia, uma das marcas registradas. Algo que pode ser percebido já nos títulos das canções, que recebem nomes sugestivos, como, Medo de Ficar Pelado, Coquinha Gelada After Sex, Yo La Tengo na Casa do Mancha e Ser Solteiro É Legal. " O lance é que não é para levar a sério, a gente não se leva a sério. Se alguém quiser levar, vai nessa, quem sou eu para falar. Tem muitas músicas que são uma grande piada e outras que são muito sérias. Normalmente, as mais sérias vão ser as maiores piadolas", resumiu o baterista Theo Ceccato em entrevista ao Monkeybuzz.

21) Baco Exú do Blues (QVVJFA?): "Quantas vezes você já foi amado?". A pergunta feita de forma enigmática pelo rapper Baco Exú do Blues no título de seu quarto trabalho parece rondar a obra como se fosse um espectro. Dos instantes iniciais com o lamento cheio de fúria verbalizado em Tenho Tanta Raiva... à conclusão com a urbana 4 da Manhã em Salvador tudo no álbum sugere a permanente busca por amor-próprio ou a aceitação como uma meta, em um Brasil em que a discussão de questões como racismo, objetificação de corpos negros e gordofobia seguem mais do que relevantes. "Usamos drogas pra esconder nossa dor / Diamantes nas correntes pra ofuscar nossa dor / Cravejamos o sorriso, não vão ver nossa dor", divaga o artista na suntuosa Autoestima, que traz ainda versos reveladores como "Foram vinte e cinco anos pra me achar lindo". O expediente se repete na sofisticada Mulheres Grandes (Mulheres grandes demais / Com desejos gigantes / Não servem pra ser amantes) que aposta na ambiguidade como matéria-prima, resultando em uma composição ao mesmo tempo romântica, lasciva e questionadora. "Embranqueceram o amor", lembraria o artista em uma ótima entrevista à Carta Capital, discutindo as possibilidades de afeto em um ambiente de preconceitos. Fundamental.

20) Josyara (ÀdeusdarÁ): subverter a própria produção para evitar se repetir. Incorporar novos elementos para fugir do óbvio. Evitar a acomodação decorrente do sucesso. Essas acabam sendo marcas registradas da cantora e compositora baiana Josyara que, em seu segundo trabalho, parece expandir as possibilidades para além do minimalismo plácido e da calmaria aconchegante dos versos que ditariam o ritmo no ótimo Mansa Fúria - nosso 14º melhor disco na lista de 2018. Aqui, a artista utiliza o tempo de isolamento forçado proporcionado pela pandemia para o exercício de experimentações com o uso de instrumentos distintos como pandeiro, atabaque e, claro, o violão, que se espalham em meio a sintetizadores mais encorpados, que exalam frescor. O resultado são canções cheias de personalidade, refinadas, pontuadas pela percussão e que parecem crescer a cada audição, abrindo espaço para uma cantora mais segura de si, mais madura e, claro, mais consciente. Indo no limite entre o lamento e a celebração, Josyara reverencia o futuro, sem ignorar o passado - algo que é evidenciado no cintilante samba Essa Cobiça (Como eu queria de volta / Mas não coisas mortas / Que já se foram / Eu quero as coisas nossas / Que a gente nem viveu). Luto e renascimento, memória e celebração. Tá tudo lá.

19) Dingo (A Vida É Uma Granada): o nome da banda até pode ter mudado, mas a mistura de soul music com pop luminoso segue inabalável - o mesmo valendo para as letras existencialistas e recheadas por divagações cotidianas, sempre dotadas de uma poética meio torta que foge do óbvio. Sim, os gaúchos podem até não se chamar mais Dingo Bells, mas as composições majestosas, marcadas por forte sentimentalismo continuam sendo a principal matéria-prima. Brincando com sonoridades e diferentes estilos, o coletivo formado por Rodrigo Fischmann (voz e bateria), Felipe Kautz (voz e baixo) e Fabricio Gambogi (voz e guitarra) surge amadurecido e até mais sofisticado. "Temos essa natureza de criar e de se preocupar com músicas que tenham melodias belas que inspiram, emocionam e arrepiam. Não queremos que a pessoa passe pelas canções e saia igual", comentou Fischmann, em entrevista ao site Música Pavê. Com uma personalidade já estabelecida, o grupo é daqueles que parece já possuir uma assinatura própria, um estilo que evolui de forma natural desde Maravilhas da Vida Moderna - nosso décimo sétimo colocado na lista de melhores de 2015. O que resulta em composições refinadíssimas e de grande lirismo, como A Desconstrução do Ser, A Vida É Uma Granada e Parabólicas.

18) Raidol (Mandinga): "Abre, abre, abre o caminho pra eu passar! Abre, abre, iluminando o meu cantar". Pode ter sido mero acaso que o artista paraense Raidol utilizou, na faixa inaugural de seu disco de estreia - o nome da canção é Abre Caminhos -, um recurso metalinguístico que parece funcionar como uma carta de apresentação ao público. Classificando o trabalho como uma "encantaria amazônica pronta para enfeitiçar o Brasil com muitas músicas de amor, trazendo a junção do antigo e do contemporâneo, do místico e o carnal", o cantor mescla ritmos como pisadinha, carimbó, pop amazônico, guitarrada, house, surf music e rap. O resultado chamaria a atenção da Associação Paulista de de Críticos de Arte (APCA) que incluiu Mandinga na lista dos 50 Melhores Discos do ano - sendo assim o único artista do Norte a alcançar tal feito. "Ser um artista da região Norte é enfrentar diversos apagamentos e desvalorização. Continuo lutando e acreditando que precisamos descentralizar e criar um novo eixo econômico baseado na produção cultural. A desigualdade acaba me trazendo essa inquietude que me faz desenvolver esse movimento", comentou em entrevista ao site O Liberal. Aqui no Picanha já estamos viciados nas ótimas Sagitário, Deixa Eu Te Perguntar e Rebola, Vai!

17) Jair Naves (Ofuscante a Beleza que Eu Vejo): "Em rota de colisão / Quem desvia primeiro?". Com sua voz de trovador que parece sempre pronto a anunciar o fim do mundo, o músico mineiro Jair Naves converte esse quarto trabalho em um veículo perfeito para divagações existencialistas, que se diluem em versos marcados pelo sofrimento, pelas tentativas de perdoar (e amar) e por discussões políticas que aludem aos tempos sombrios de flerte com a extrema direita no País. Gestado nos dois últimos anos, o álbum revela um artista furioso mas reflexivo, com o piano melodioso servindo como um respiro em meio a colagens, quebras de ritmo e ruídos - com esse aparato mais experimental sendo a metáfora para um olhar ao mesmo tempo de pesar para o passado e de aceno levemente esperançoso para o futuro. "Depois do 'Rente' (seu disco anterior) acho que a minha intenção era tentar algo mais abstrato, menos direto, buscando tratar outros tipos de conflito. [...] Acontece que considerando tudo o que aconteceu a partir de 2020 eu me vi empurrado nessa direção. Foi praticamente impossível ignorar tudo que aconteceu, o luto coletivo, a revolta, a incredulidade e a sensação de fim de uma forma de viver e começo de outra", resumiu Naves em entrevista ao site Hits Perdidos.

16) Luneta Mágica (No Paiz das Amazonas): Um mergulho em uma sonoridade que evoca o contraste entre o ancestral e o contemporâneo, o bucólico e o urbano, o antigo e o tecnológico. Resumir a experiência de ouvir No Paiz das Amazonas, o terceiro trabalho da banda manauara Luneta Mágica é trafegar num universo em que contradições se aproximam, em que as diferenças parecem somar, em que a distância é logo ali. Se afastando do pop mais comercial entregue no disco No Meu Peito - nosso quarto melhor álbum na lista de melhores nacionais de 2015 -, o coletivo se reaproxima do experimentalismo psicodélico que marcaria a estreia, com o esplêndido Amanhã Vai Ser o Melhor Dia da Sua Vida (2012). Diferente de tudo o que já foi feito pelo grupo, o registro imprime "uma visão conceitual, partindo de referências da própria floresta amazônica, que vão ao encontro de sons que ecoam pelo mundo inteiro", como resumiu a banda no material de divulgação. O resultado é uma espécie de caos organizado que conecta passado, presente e futuro de uma forma nunca óbvia, mas sempre instigante, provocativa (inclusive no que diz respeito às letras), como comprovam as faixas Águas Poluídas, Conduzido (haux, haux), Tuiuiú e Além das Fronteiras. Vale descobrir!

15) Djonga (O Dono do Lugar): Habituado a lançar seus discos sempre em março, o rapper mineiro Djonga alterou essa lógica já estabelecida com o O Dono do Mundo. Sexto álbum do artista, o projeto se apresenta com a potência habitual, alternando instantes políticos e de discussões sociais com outros que celebram as conquistas do povo preto - algo que, em muitos casos, pode ser percebido em uma mesma música, como no caso da essencial Até Sua Alma, que tem participação especial da dupla Tasha e Tracie (E pra quem já valeu trocado pra escravista branco / Tá bom receber uma milha pra postar um arroba / Rede social que eu gosto é o app do banco / E eu que atravessei a rua, lembrei qual povo que rouba / Sola do sapato nada gasta e isso me basta / No lugar das ferida no calcanhar). "É uma reflexão sobre contra quem estamos lutando, pelo que e se temos força pra isso. Essa representação já começa pela capa, uma referência a Don Quixote, de Miguel de Cervantes, que é uma grande alegoria sobre isso. Essa loucura, idealismo, confusão", comentou o rapper no material de divulgação. Recheado por reflexões cotidianas sobre masculinidade, LGBTfobia e religião, a obra possui produção refinada, funcionando ainda como veículo de luta contra o racismo estrutural.
 
14) Alaíde Costa (O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim): por mais estranho que possa parecer, a própria Alaíde Costa admitiu, em entrevista à Veja, que se sente no "auge da carreira" - mesmo estando com 86 anos. "Passei longos períodos sem gravar nada porque as gravadoras queriam que eu gravasse canções que não combinavam comigo, e eu não aceitava", admitiu na mesma entrevista. E talvez seja justamente esse comportamento de quem não se dobra a eventuais pressões externas - muitas delas fruto do racismo estrutural -, que faz com que ela pareça tão à vontade interpretando as composições do classudo O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim - trabalho produzido por Emicida, em parceria com Marcus Preto. Dona de uma voz única e afinadíssima, a artista adota a placidez como método, entoando cada verso de forma cadenciada, lânguida, sem pressa. O resultado é conjunto de oito canções que se espalham em meio a amores complicados (Tristonho), arrependimentos (Praga) e esperança por dias melhores (Aurorear). Fazer um álbum que sublinhasse a grandeza de Alaíde não apenas como intérprete ligada à bossa nova mas, sobretudo, como a voz que transitou quase sempre à margem do grande público. Esse era o objetivo. Que parece ter sido alcançado com sobras.

13) Johnny Hooker (ØRGIA): Se divertir, mas sem perder a capacidade de indignação. Dançar e refletir. Sentir ternura, amar, mas sem abandonar as questões que incomodam. É dessa dualidade que emerge esse ótimo ØRGIA. Em entrevista concedida ao UOL ainda em 2021, o artista afirmou que o Brasil precisava voltar a beijar na boca. "Voltar a ser feliz, ter desejo, se apaixonar", resumiu. Pois essa espécie de expiação parece combinar ainda mais com esse 2022 que foi tão duro - o que talvez explique a facilidade com que abrimos um largo sorriso diante de canções como, Amante de Aluguel, Larga Esse Boy, Nos Braços de Um Estranho e Nhac! Misturando estilos variados que vão do tecnobrega, passando pelo samba, até chegar à música eletrônica, Hooker converte o registro em uma celebração à vida, que se apoia na tríade noite, sexo e política. Exemplo central desse expediente está em CUBA, que joga o ouvinte para um reggaetown improvisado e lânguido, enquanto o refrão faz um convite que funciona tanto como como carta de amor, quanto como resposta ao bolsominion que deseja enviar qualquer um que não vote no "mito" à ilha da América Central. Ao cabo, é um disco debochado, cheio de calor humano, e que nos faz lembrar de que, em meio ao caos, a arte pode nos divertir.

12) Natália Xavier (Eu Também Sou Teus Rios): "Coco de roda, maracatu, baião, afoxé, canto-rezo e o espírito dos tambores são pontos de partida deste rio que desemboca, já com a própria seiva, no mar. E o verbo jamais abandona a potência revolucionária do símbolo e da fabulação". É dessa forma que a cantora e compositora paulista Natália Xavier resume seu álbum de estreia, produzido por meio de financiamento coletivo. Filha de pai baiano e mãe pernambucana, a artista já estabelece na percussão sinuosa da inaugural Não Morra de Sede, Meu Amor um diálogo íntimo e autoral com a sua ancestralidade nordestina, conectando o ouvinte com um tipo de música que vai no limite entre o teatral e o poético, o primitivo e o contemporâneo. Com cada verso se espalhando em meio a melodias que pulsam simbolismo, lutas e descobertas sobre questões de corpo, de identidades e de tempos políticos, Natália converte cada uma das oito canções em pequenos fragmentos confessionais, que apostam no potencial imagético da palavra - o que podemos perceber em belas composições, como é o caso da intimista Confios (Quando me aquieto / Sou recebida no seio do mundo / Minha natureza de chuva / Já não pode mais se ocultar).

11) Bruno Berle (No Reino dos Afetos): batidas minimalistas, melodias que se espalham sem pressa, uma economia de tudo que também é evidenciada pelas letras entoadas de forma vagarosa, ainda que com uma fluidez própria. Nada no terceiro disco do cantor e compositor alagoano Bruno Berle parece dialogar com a urgência maximalista e excessivamente apressada dos tempos que vivemos. Como se fizesse um convite para um mergulho em um universo de calmaria e de introspecção, o artista converte as 12 composições de No Reino dos Afetos em um veículo para expressar pequenas alegrias, romances tortos e devaneios cotidianos em uma mescla que vai do samba, passando pelo lofi, fazendo ainda uma parada no R&B contemporâneo e no afrobeat. "O álbum foi feito com a busca de uma coisa maior, uma coisa bonita, um lugar bonito para se estar. É meu primeiro álbum que eu acho feliz, que é para cima, que não é melancólico e eu tô muito empolgado com isso", comentou o músico em entrevista ao site Música Pavê. Um bom exemplo dessas características pode ser encontrado no single Quero Dizer que, com letra envolvente (Pois um dia com você dentro da noite / É como o vento / Como o sol a me aquecer) e sonoridade convidativa, é daquelas que aconchega facilmente o ouvinte. Lindo demais.

10) Joyce Moreno (Brasileiras Canções): com mais de cinquenta anos de carreira e mais de quarenta discos lançados, não deixa de impressionar o fato de a compositora, escritora, arranjadora, cantora e instrumentista Joyce Moreno seguir entregando álbuns com uma naturalidade - e uma brasilidade - única. "Como passarinho num céu de urubus, as doze canções do novo trabalho de inéditas surgem exatamente como essas imagens poéticas tão simples, mas tão poderosas", indica o material de divulgação - que estabelece diálogo direto com a faixa-título. O que introduz, de alguma maneira, os elementos que guiam a estética do trabalho - que vai no limite entre o bucólico e o travesso, o cristalino e o classudo. Acompanhada do talentoso trio formado por Hélio Alves (piano), Jorge Helder (baixo) e Tutty Moreno (bateria), a artista burla os limites entre o samba, o jazz e a bossa nova, utilizando a própria atmosfera do álbum como elemento norteador de suas delicadas criações. Um bom exemplo desse aspecto luminoso da obra pode ser observado na ótima Tantas Vidas que, com sua letra sutilmente divertida (Não há mulher, por mais feia / Que não veja como é linda / Quando se sente bem-vinda / No coração que ela adora) afaga o ouvinte, conquistando-o já na primeira audição. Um feito e tanto.

9) Mulamba (Será Só Aos Ares): "Não se ofenda tanto com o meu canto / Não se afete com o afeto / Não calarei meu gemido / Pro pudor dos teus ouvidos". Quem acompanha a carreira do coletivo curitibano Mulamba certamente não se surpreenderá com os versos acima - que abrem o segundo trabalho do grupo e que integram a ótima canção Phoda. Discutindo questões de gênero, empoderamento feminino, violência contra a mulher e outros preconceitos, a banda utiliza suas canções como veículo para reflexão - mas sem abrir mão de celebrar as conquistas e avanços da sociedade (ainda que estes, eventualmente, emerjam da tragédia). Um bom exemplo desse expediente pode ser encontrado na faixa Dandara, que homenageia a travesti Dandara Kettley que, em 2017, foi brutalmente torturada, espancada e assassinada em Fortaleza. "Mulher que deu a cara a tapa, Dandara bem fresca resistiu / Sambou na cara da sociedade, contra a hipocrisia do Brasil" entoa a vocalista Amanda Pacífico, em meio à sinuosa melodia que mescla MPB com samba. Com participações especiais de Luedji Luna, BNegão e Kaê Gajara a mulherada - agora ainda mais posicionada politicamente e amadurecida - prova que segue emb*cetada. É imperdível.

8) Tim Bernardes (Mil Coisas Invisíveis): Vamos combinar: talvez Tim Bernardes tenha inaugurado algum tipo de nova vertente musical, algo como um "indie filosófico", que mescla sofrimento, afeto e otimismo em iguais medidas. Mas esse combo de sensações é muito menos turbulento e muito mais resignado - onde se reconhecem as dores, os lutos e as aflições da alma, mas também se reaprende a amadurecer, a prosseguir, a encontrar motivo para algum tipo de contemplação diante do mundo. Nesse sentido, a mescla de melodias homogêneas, econômicas e pontualmente ensolaradas não gerariam nenhum tipo de estranhamento se este segundo trabalho solo do vocalista d'O Terno se chamasse Recomeçar 2 - e não Mil Coisas InvisíveisEm entrevista ao site Papel Pop, o artista afirmou que desde <atrás/além> se permitiu "fazer algumas canções com letras mais longas, em que eu ia desabafando e discorrendo sobre coisas de maneira meio ensaística, meio poética, meio objetiva, meio abstrata". Assim, o álbum se apresenta como mais um daqueles trabalhos que requerem uma apreciação mais calma, onde se possa assimilar detalhes, encaixes, referências e orquestrações que se desdobram entre a economia e a expansão, a verborragia e a sutileza. Beleza aqui é a ordem do dia.

7) Anelis Assumpção (Sal): Luedji Luna, Céu, Mahmundi, Iara Rennó, Thalma de Freitas, Jadsa, Josyara. Basta dar uma olhada no seleto time de colaboradoras que integra o quarto disco da paulista Anelis Assumpção, pra se ter uma ideia da envergadura do projeto. Todas mulheres negras que a artista admira muito. "Depois de girar algumas lâmpadas e visões morfológicas, entendi que cada faixa seria co-produzida por uma pessoa diferente. [...] Já ouvindo as manifestações profundas que o disco enviava, eis que elas vão chegando e com elas, toda uma falange de ideias, sons e suas ancestralidades.", filosofou a cantora e compositora no material de apresentação do trabalho. De alguma forma, essa pluralidade pode ser percebida na mescla de estilos, que vão do afrobeat e do reggae, passando pelo samba e pela música de vanguarda - navegando no limite entre o contestador e o provocante, o político e o sensual. Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na metafórica Sangue Mioma, que se espalha em versos enigmáticos e cheios de significados (Nas vias, nas veias / Canção de sangue tingindo a lua cheia) enquanto efeitos eletrônicos minimalistas e texturas mais experimentais elevam à composição ao sexy e ao etéreo em igual medida. É algo único.

6) Maglore (V): "Há que se manter esperançoso, mas sem esquecer da luta". Da inaugural e ensolarada A Vida É Uma Aventura aos instantes finais com Maio, 1968 nunca deixa de impressionar a capacidade do Maglore de converter seu novo trabalho em um veículo que expressa a verdadeira fé em dias melhores, mas sem deixar de lado os romances ensolarados, as dores cotidianas e as crônicas sociais. Como se fosse uma espécie de pacote musical completo, a banda intercala estilos, indo do power pop ao rock alternativo, passando pelo tropicalismo e pelo reggae. Tudo sem perder a personalidade e a coesão que apaixonariam os fãs - eu entre eles! Um bom exemplo desse expediente de idas e vindas, de passagem do tempo, de utopia e de celebração da vida pode ser encontrada na maravilhosa Espírito Selvagem que, com seu refrão grudento, melodia primaveril e letra zombeteira, cheia de ironia (Não vim aqui pra debochar / Nem boto o dedo na ferida de ninguém / Mas não consigo fingir graça / Pra essa gente que é uma farsa de doer) expressa com senso de humor o contexto de retrocessos, de extremismo e de pós-pandemia. Mas há mais, muito mais nesse registro que posiciona os baianos entre as grandes bandas brasileiras da atualidade.

5) Criolo (Sobre Viver): Desigualdade social, violência, pandemia, extremismo religioso, racismo, milícia, destruição da natureza. Tudo ao mesmo tempo e agora - e nesse sentido a impressão que fica é a de que nunca foi tão necessário um novo disco de rap do Criolo. Aliás, há todo um quê de literalidade na obra, a quinta de estúdio, já que o artista perdeu a irmã precocemente para o covid-19 há pouco mais de um ano. "Como a gente se fortalece, como a gente segue em frente? A música consegue tirar o que a gente tem de melhor, a música sempre nos dá uma segunda oportunidade" refletiu, em entrevista recente ao site Tracklist, citando o episódio, que aparece na soberba canção Pequenina (Cuidar da minha irmã, agora só em prece / Ela não tá mais aqui é que esse mundo não te merece). A propósito, o canto vigoroso e poético de Criolo, um verdadeiro mestre em misturar (e até recriar) estilos, surge com contundência em meio ao caos perpetrado por esse atual momento que vivemos - e canções de títulos autoexplicativos como Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais, Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer e Diário do Kaos funcionam quase um diário de nossos tempos. Com participação de convidados como Milton Nascimento e Liniker, o paulistano mostra que está em ótima forma.
 
4) Xênia França (Em Nome da Estrela): "Tem vezes que eu espero / Outras vezes me desespero /Quando nada mais faz sentido / Só confio na força / Que trago comigo / Então sigo reexistindo / E renascer é preciso". Quase como se funcionassem como uma carta de apresentação, os versos da inaugural - e classuda e elegante e utópica e sincera e potente - Renascer servem como uma linda porta de entrada para o segundo trabalho da baiana Xênia França. A melodia pegajosa que se espalha, mas se conecta, será uma espécie de padrão ainda que, aqui e ali, cada faixa funcione como um ato em si - o que não retira jamais o aspecto homogêneo do disco. Interestelar, por exemplo, é invadida por uma percussão tribal mais vigorosa, ao passo que Futurível, regravação de Gilberto Gil, aposta em uma eletrônica levemente minimalista em torno dos versos existencialistas sobre transmutação de energia, humanoides, teletransportes, mutantes e outras dimensões. Obviamente esse mergulho em outros "planos" não reduz a conexão com a brasilidade, com movimentos ritualísticos e com a ancestralidade - o que é comprovado ao se escutar a soberba e ondulante Dádiva, composta por Luiza Lian, ou mesmo a luminosa Ancestral Infinito.

3) Planet Hemp (JARDINEIROS): Sim, acreditem: a mistura de evangelistão, fetiche armamentista e agropop que compõe o bolsonarismo é tão bizarra que este foi um dos motivos para que o Planet Hemp saísse de um hiato de vinte e dois anos sem lançar um novo trabalho. Era tudo mato quando Marcelo D2 entregou ao mundo o agora distante A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000) e, ouvindo as canções de JARDINEIROS, é praticamente impossível não pensar no mal-estar completo de nossa nação, que funciona como pano de fundo para versos potentes que jogam luz a todo o absurdo atual. "A gente achou que nunca mais iria fazer um disco, porque estávamos satisfeitos com nossas obras, até o Brasil nos obrigar a sair desse lugar de conforto", comentou Marcelo D2 em entrevista para o portal O Dia. Nesse sentido, não deixa de ser interessante notar como a banda ressurge com todo o vigor, entregando uma série de músicas marcadas pelo forte caráter político, sem medo de enfiar o dedo na ferida. Um bom exemplo disso está na visceral TACA FOGO ("Vivem em seus condomínios, malditos minions fazendo arminha com a mão / Tem coisa mais cafona, rico roubando em nome de Deus cristão?"). E, como não poderia deixar de ser, o tema favorito da banda não fica de fora, vide a ondulante faixa-título.

2) Tulipa Ruiz (Habilidades Extraordinárias): "qual a sua 'habilidade extraordinária'?". A história curiosa por trás do título do quinto trabalho da cantora e compositora santista pode ser apenas isso: uma história. Curiosa. Ainda que, inegavelmente, ela tenha levantado a importante questão sobre o que é produzir arte em um País que massacrou a cultura nos anos Bolsonaro. Em termos mais "práticos", se pararmos pra pensar na habilidade extraordinária da própria Tulipa, para além do Grammy, acho que está a capacidade de saber que, em time que está ganhando não se mexe. E isso não significa se repetir em cada disco e sim utilizar os mesmos conceitos testados anteriormente para ampliá-los, engrandecê-los. Afinal de contas a MPB da artista nunca é óbvia - com cada álbum surgindo envernizado pela modernidade, ainda que as inspirações sejam a vanguarda paulistana, o funk setentista ou o tropicalismo. Equilibrando balanço, brasileirismo, sensualidade, natureza e ancestralidade, Tulipa, uma mestre nos jogos de palavras e nas artimanhas da poesia, das idas e vindas e dos encontros e desencontros de consoantes e vogais, jamais ignora a importância de temas como violência contra a mulher (Kamikaze Total), resistência em meio a distopia brasileira (Novelos) e abusos no uso da tecnologia (Não Pira) ou no universo do trabalho (Vou Te Botar no Pau). Já nasceu clássico.

1) Terno Rei (Gêmeos): O final de tarde na cidade, os dias cinzas de outono, a escadaria do colégio, a mistura de sensações que nos invade em meio a divagações cotidianas. Definir a música feita pelos paulistas do Terno Rei é colocar uma série de referências no liquidificador, para extrair de lá uma sonoridade cheia de personalidade, de vigor. No limite entre a urgência dos tempos atuais e a nostalgia oitentista, o coletivo percorre cenários palpáveis, eventualmente melancólicos, em que dilemas afetivos e existenciais colidem com uma estética vibrante, pop e quase juvenil. Em seu mais recente trabalho, esse tipo de expediente pode ser percebido já no saboroso single Dias de Juventude - com sua melodia curvilínea e letra que não faria feio na abertura daquele seriado adolescente que, agora, parece deslocado no tempo (Eu quero te lembrar / Dos dias da juventude / Da noite legal, viagem sem fim / Da boca no ouvido e a cabeça na Lua). Outras canções como Sorte Ainda, Brutal e Olha Só reforçam esse conceito - que, aliás, é reforçado pela capa de tintas desbotadas, esmaecidas -, representando ainda um avanço em relação aos primeiros e enfumaçados álbuns (caso de Essa Noite Bateu Como Um Sonho). Apenas não dava pra ignorar: é o melhor disco nacional do ano.

A meu ver, penso que ficou uma lista bem equilibrada e que dá ao menos uma parte da dimensão daquilo que tem sido produzido no nosso País atualmente. Outros projetos, como, os do Tatá Aeroplano (Não Dá Pra Agarrar), do Qinhones (Centelha), do Gabriel Ventura (Tarde), do Bruno Morais (Poder Supremo), da Gloria Groove (Lady Leste) ou da Deize Tigrona (Foi Eu Que Fiz) bem poderiam ter entrado na nossa relação - e talvez se eu refizesse essa lista já na semana que vem, muita coisa já estaria mudada.

E pra vocês? O que faltou aqui? Quais foram os grandes registros desse ótimo ano musical? Deixem seus comentários!

domingo, 18 de dezembro de 2022

10 Melhores Leituras de 2022

Devo confessar a vocês que 2022 foi um ano de poucas leituras - ou em menor quantidade do que gostaria. Mas as poucas que fiz foram excelentes, sendo este um período muito proveitoso, em meio a clássicos modernos como Hibisco Roxo, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, até lançamentos deste ano, como é o caso de A Metade Fantasma, do argentino Alan Pauls. Resumo da ópera: tem muita coisa legal pra adicionar ao Skoob e, com a chegada do período de férias, colocar em dia as leituras. Eis a nossa relação!



10) Um Cântico Para Leibowitz (Walter M. Miller Jr.): único romance lançado pelo norte-americano Walter M. Miller Jr., esse clássico da ficção científica narra uma história de reconstrução, após um desastre nuclear mergulhar a humanidade em isolamento, desolação e obscurantismo - resultado de anos de loucura e violência que se seguiram ao Dilúvio de Fogo, que viria a arrasar o conhecimento humano construído por milênios. Tida como a causadora de todos os males, a ciência encontrará abrigo nos escombros de uma das tantas abadias da Ordem Albertina de São Leibowitz, cujos monges se dedicam, como arqueólogos improvisados, a a recolher e preservar os vestígios de uma cultura agora esquecida. Cobrindo mais de mil e oitocentos anos de história entre passado, presente e futuro, a narrativa envolvente do autor conta a obstinada epopeia de uma ordem religiosa que tem o objetivo de salvar o conhecimento humano, catalogando-o e organizando-o. Mas como lidar com esse conhecimento? O que fazer dele? Marco da literatura distópica e pós-apocalíptica, esse clássico atemporal coloca ciência e religião como antagonistas em um embate entre poderes em que o resultado pode levar a humanidade a um ciclo eterno de colapsos. Algo não tão distante da realidade atual.


9) Querida Kombini (Sayara Murata): livro premiadíssimo e com mais de 700 mil exemplares comercializados só no Japão, Querida Kombini conta a história de Keiko Furukura que, aos trinta e seis anos nunca teve um envolvimento romântico. Trabalhando desde os dezoito anos em uma kombini - espécie de loja de conveniência típica do País asiático -, a protagonista sofre com as pressões do entorno para que não apenas arrume um trabalho "de verdade", como também arranje um marido. Vivendo à margem desde a infância, Keiko encontra justamente no universo milimetricamente organizado do seu emprego, a lógica de funcionamento de um mundo que, fora dali, parece não existir para ela. E será justamente a chegada de um jovem funcionário, de nome Shihara, que abalará essa sólida estrutura que envolve a protagonista. Utilizando o espaço da loja de conveniência como uma espécie de microcosmo que reflete a própria sociedade contemporânea japonesa - individualista, desinteressada, sem vontade de se relacionar (ou mesmo de transar) -, a autora nos faz refletir sobre o que, afinal, é se sentir plenamente realizado nos dias de hoje. Ou, mais do que isso, o que é "ser normal"? 

8) O Negociante de Inícios de Romance (Matéi Visniec): "Ele era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo e saíra havia já oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe". A primeira frase de o Velho e o Mar, clássico de Ernest Hemingway, é daquelas que faz com que o leitor sequer saiba onde exatamente está a gravidade da situação. "No fato de o personagem estar sozinho? Ou no de ser velho? Ou de pescar numa zona por onde passa a famosa Corrente do Golfo, conhecida por seus redemoinhos? Ou ainda, no fato de não apanhar peixe já há quase três meses?" É por meio de um conjunto de divagações bem humoradas como estas, que Matéi Visniec converte o divertidamente cínico O Negociante de Inícios de Romance em uma experiência caleidoscópica sobre contemporaneidade, indústria cultural e sociedade de consumo, apresentando a urgência da busca pelos "eternos começos" em uma metáfora absurdamente mundana a respeito de fuga de responsabilidades, superficialidade da vida e completa evasão de profundidade de pensamentos. Cômica e metalinguística, a obra cruza questões relativas à pós-modernidade se conectando à literatura como veículo de enfrentamento ao totalitarismo, nos conduzindo por um passeio onírico, excêntrico e metalinguístico. Leia a resenha completa.


7) O Parque das Irmãs Magníficas (Camila Sosa Villada):
 Mistura de rito de iniciação, conto de fadas e história de terror, a obra da escritora argentina Camila Sosa Villada é um manifesto explosivo que faz emergir de suas páginas duas faces convergentes da comunidade trans, as quais fascinam e repelem sociedades do mundo inteiro: a fúria travesti e a festa que há em ser travesti. Inspirada em memórias da própria autora, a obra mescla magia, violência e ternura sendo narrada com uma sinceridade brutal. Na trama, acompanhamos a jovem Camila que estuda durante o dia e se prostitui à noite, no Parque Sarmiento, em Córdoba. Em certa madrugada, ela e outras travestis resgatam um bebê abandonado, levando-o até a Tia Encarna - cafetina do grupo. Esses acontecimentos convergem para que a história das envolvidas seja aos poucos revelada, tendo como pano de fundo justamente esse universo dominado pela incerteza. Para além de discutir as dificuldades e da falta de oportunidades para as trans em um mundo tão hipocritamente preconceituoso, a obra destaca a rede de apoio que costuma envolver essas mulheres. Há na narrativa vigorosa espaço para o riso e para o choro, que ajudam aquelas meninas a enfrentar a complexa realidade de apagamento que, em certa medida, estão inseridas.

6) Poeta Chileno (Alejandro Zambra): Já dizia Pablo Neruda que "é tão difícil as pessoas razoáveis se tornarem poetas, quanto os poetas se tornarem pessoas razoáveis". Não sei dizer se Neruda estava certo, mas no universo bastante íntimo retratado por Alejandro Zambra no ótimo romance Poeta Chileno, o que temos é um verdadeiro mergulho nesse ambiente quase mitológico dos poetas chilenos. "Somos bicampeões na Copa do Mundo de poesia" afirma em certa altura da narrativa, num tom que vai no limite entre o orgulho e o deboche, um certo Pato, amigo de Vicente, jovem recém-saído da adolescência, que sonha seguir os passos de Gabriela Mistral, Nicanor Parra, Armando Uribe, além do próprio Neruda. Aliás, Mistral e Neruda atestam a eficiência da poesia saída do País de Salvador Allende, afinal, venceram o prestigioso Prêmio Nobel de Literatura. Mas há espaço para esse tipo de leitura nos tempos atuais? Fora os clássicos, as pessoas se interessam por esse tipo de material curto, meio formulaico e excessivamente subjetivo, ainda que invariavelmente provocativo? Divagando sobre esses temas, o autor narra a história do aspirante a escritor Gonzalo, em uma saborosa análise metalinguística do fazer literário. Leia a resenha completa.

5) Herdeiras do Mar (Mary Lynn Bracht): O contraste entre a beleza poética da escrita e o argumento comovente é uma das marcas da imperdível obra de Mary Lynn Bracht. Trata-se de um livro duro, quase indigesto, mas que apresenta uma história que é, para muitas pessoas, desconhecida - no caso, sobre as jovens coreanas que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram enviadas para regiões longínquas para servirem como "mulheres de consolo" para soldados japoneses. Sim, essa experiência repugnante é vivida por Hana, que é conduzida à região da Manchúria por Morimoto - um soldado japonês linha dura que sequestra a jovem quando ela tinha apenas 16 anos. Sob ocupação japonesa Hana é considerada, em sua Coreia natal, uma cidadã de segunda classe, com pouquíssimos direitos. Ainda assim ela orgulha-se em ser uma haenyeo, como são conhecidas as mulheres que trabalham no mar como mergulhadoras marinhas - atividade tão perigosa quanto lucrativa. Ao cabo, Herdeiras do Mar é uma experiência envolvente, inquietante, aflitiva e sensorial, um verdadeiro documento histórico que evidencia a misoginia, especialmente em tempos de guerra, em meio a outros absurdos do processo de colonização. Leia a resenha completa.

4) Véspera (Carla Madeira): Vamos combinar: existem escritores que possuem uma capacidade única de se conectar com os leitores e, a meu ver, esse é justamente o caso da mineira Carla Madeira. Com personagens cheios de ambiguidades que, em muitos casos, tomam atitudes extremas, a obra mergulha em um universo bastante particular, em que temas como masculinidade tóxica, opressão sexual, hipocrisia e violências cotidianas chegam no formato de torrentes - caudalosas, vigorosas, imprevisíveis. Em Véspera, Vedina toma uma atitude impensada que modificará sua vida pra sempre ao passo que seu marido Abel, irmão gêmeo de Caim e que vive à sombra desse, guarda uma série de segredos obscuros, íntimos, que remetem à juventude e que, em meio a tragédias familiares grandes ou pequenas, parecem sempre prontos para vir à tona. Em linhas gerais estamos diante de uma narrativa que é costurada em dois tempos que correm paralelamente - com passado e presente se encontrando e se recombinando, como uma espécie de elipse que alude a vésperas e contemporaneidades. O que torna Véspera, assim como Tudo É Rio, uma obra magnética, daquelas que reverbera por muito tempo depois, em sua irrepreensível análise sobre a condição humana. Leia a resenha completa.


3) Hibisco Roxo (Chimamanda Ngozi Adichie): Devo admitir que fiquei impactado pelo microcosmo apresentado pela escritora nigeriana em seu livro de estreia que, ao mesmo tempo que propõe um mergulho lateral em um País pós-colonial militarizado, também evidencia as consequências do sincretismo religioso que coloca frente à frente as tradições mais primitivas dos povos africanos - suas crenças, seu folclore, sua cultura -, em contraste com o catolicismo branco, colonizador e, de alguma forma, opressivo. Sim, pode parecer bastante complexo, mas todos esses componentes são apresentados a partir da história de um pequeno núcleo familiar com a narradora, a adolescente Kambili Achike, sendo confrontada com uma série de eventos que ocorrem no entorno - e que envolvem outras figuras, como o pai Eugene (um empresário conservador/cristão), o padre progressista Amadi e, especialmente, a tia de Kambili, a professora universitária Ifeoma. De escrita saborosa, vertiginosa, esta é uma obra de formação que funciona como uma poética aula de história e de geopolítica da Nigéria - mas sem soar excessivamente acadêmica. E tudo isso nos apresentando uma coleção de personagens complexas, cheias de ambiguidades e nada maniqueístas. Simplesmente essencial. Leia a resenha completa.

2) A Velocidade da Luz (Javier Cercas): O passado que reverbera no presente. As escolhas de vida nem sempre acertadas. Objetivos, sonhos, decisões e frustrações. Arrependimentos espalhados, trajetórias dentro daquilo que é possível. Tudo aquilo que, afinal, parece dotar a nossa realidade de sentido - ou mesmo de beleza, mesmo quando na dor -, é possível encontrar nessa maravilhosa obra do espanhol Javier Cercas. Pegando uma coleção de temas aparentemente simples, que envolvem desde um autor recém aclamado em busca de uma nova história pra contar, passando pelos traumas de guerra, até chegar aos dramas domésticos nunca solucionados, tudo é narrado com fluidez desconcertante, por meio de uma prosa riquíssima, poética. Daquelas que vai recompensando o leitor com pequenas surpresas que, aqui e ali, formarão uma verdadeira colcha de retalhos a respeito da ruína do ideal de força que evoca dos conflitos bélicos, ao passo em que avança para a completa deterioração do sonho americano. "Existem duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer. A outra é conseguir". A frase de Oscar Wilde parece ser fundamental para todos os personagens trágicos que acompanhamos. Impossível não se envolver. Leia a resenha completa.


1) A Metade Fantasma (Alan Pauls): Savoy, o protagonista do novo romance do argentino Alan Pauls, possui um hábito excêntrico: visitar casas e apartamentos para alugar pelo simples prazer de adentrar o espaço alheio. A intenção não é de fechar negócio: ao conhecer corretores e negociar encontros, esse cinquentão anacrônico que sequer possui um aparelho celular decente, funciona como um intruso fugaz da vida dos outros, enquanto contempla a singularidade dos moradores da capital Buenos Aires. E em meio a entradas aleatórias no chatroulette e às perdas de tempo sucessivas em sites de compras de objetos meio inúteis, ele conhecerá Carla, uma mulher mais jovem que, se comparada a Savoy, parece saída de outra dimensão. Carla é o completo oposto: conectada, tecnológica, participante ativa de uma geração em que a internet move a vida, as relações, os hábitos e os comportamentos. Trabalhando como house sitter, a jovem é a Geração Z desenhada. Não cria laços. Não estabelece vínculos afetivos intensos. Suas "raízes" são o mundo. E será dessa relação entre duas pessoas tão diametralmente opostas que emergirá uma narrativa vigorosa, que discute o amor (ou algo perto disso) em tempos cibernéticos, conectados, urgentes. Espetacular é pouco. Leia a resenha completa.


E então, curtiram a lista? Mandem seus comentários, sugestões críticas! Ou apenas digam quais foram as grandes leituras que marcaram vocês em 2022!

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

30 Grandes Filmes Lançados no Cinema ou no Streaming em 2022

Se escrever a lista de Melhores Discos Internacionais do ano já foi tarefa dura, a dos Grandes Filmes Lançados em 2022 não fica atrás. O período foi de grande produtividade, com uma verdadeira coleção de excelentes produções. E, para além dos limites de Hollywood, na nossa relação procuramos contemplar também obras de outros países, que, de alguma forma, possam se constituir em uma espécie de panorama de temas políticos, sociais, culturais e religiosos de nossos tempos. Nesse sentido, aqui a gente procura te lembrar que também existe cinema em locais como o Butão, o Uruguai, a Costa Rica, o México, a Romênia e o Brasil - a despeito do massacre à cultura perpetrado pelo pior presidente que já tivemos em nossa história. Bom, ainda está em tempo de colocar o cinema em dia. As eleições passaram, a Copa já está indo pra fim, o ano vai virar e a vida continua. Então, nada melhor do que dar o play e relaxar.

E se você gosta desse tipo de lista, antes de continuar a leitura não deixe de conferir as nossas relações dos anos anteriores - 2021, 2020, 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015.


30) O Empregado e O Patrão (El Empleado y el Patrón): Muito mais do que um filme de teor político sobre questões que envolvem o universo do trabalho, essa é uma obra sobre relações humanas e seus pormenores. Isso não quer dizer que os contrastes sociais que colocam em lados opostos as duas famílias que acompanhamos em cena não estejam lá. Basta ver a moradia opulenta dos proprietários das lavouras de soja em contraponto a casa de pau a pique da família daquele que será contratado para trabalhar na safra. De um lado o maquinário agrícola que, em muitos casos, avaliza a riqueza. De outro, o cavalo solitário que simboliza um pouco de tudo ao mesmo tempo. O cenário é o Norte do Uruguai, na divisa com o Brasil - um local tão bucólico quanto inóspito. É nele que o jovem Rodrigo procurará alguém que possa auxiliar a família na colheita de grãos - o que ele conseguirá ao contatar Carlos, um rapaz de 18 anos que é filho de um antigo funcionário de seu pai. Tudo corre mais ou menos bem até o dia em que o o jovem empregado sofre um grave acidente de trabalho - o que resultará num verdadeiro jogo de xadrez que coloca frente a frente ambos os lados. É, ao cabo, um filme pequeno, incômodo, cheio de camadas. E que vale conferir. Leia a resenha completa.


29) Os Primeiros Soldados: Em uma das tantas cenas comoventes desse ótimo filme nacional, um homem magro, pálido, de aparência enfraquecida, entra em uma boate com um punhado de fotografias na mão. Ao fundo, a canção Linda Juventude, do 14 Bis, embala os sonhos coloridos da comunidade LGBTQIA+ em meio a danças, beijos e sorrisos. É um paradoxo assistir aquele sujeito fragilizado - ele tosse muito e se locomove com dificuldade no ambiente -, enquanto os versos primaveris, bucólicos, de Flávio Venturini ecoam pelo inferninho. É um momento tenso, triste. O personagem das fotos - retratos de si próprio com manchas na pele típicas de quem está com a imunidade baixa - é Suzano, que estava há oito meses desaparecido. E que retorna ao ambiente de festa como uma medida desesperada. É lá que ele tem um último contato com seu sobrinho Muriel. Falar dos primeiros casos de AIDS no Brasil - entre 1982 e 1984 - é o que diretor Rodrigo de Oliveira faz apostando em sutilezas, com um refinamento único e  ainda evitando a pieguice. A proposta visa o resgate dessas pessoas, desses corpos, desses indivíduos. Sim, não é tarefa fácil um filme sobre esse tema sem uma cena sequer de hospital. Ou da transmissão da doença em si. Oliveira consegue. E nos comove. Leia a resenha completa.


28) Não! Não Olhe! (Nope): Uma obra sobre a natureza exploratória da indústria do entretenimento? Uma alegoria sobre apagamento de vidas negras e outras questões raciais? Uma análise social sobre o voyeurismo em tempos tecnológicos? Ou apenas um filme clássico de invasão alienígena? Definir Não! Não Olhe! não é tarefa fácil e, vamos combinar, está tudo bem. Aqui nada é definitivo mas tudo é envolvente, sensorial. E bastam os primeiros minutos para que já saibamos haver mais camadas por baixo da superfície. E mais outras. Como já se tornou uma tradição em sua curta filmografia, Peele discute uma série de temas, mas sempre apostando no dito pelo não dito, naquilo que fica nas entrelinhas. O resultado é uma experiência de muitas perguntas e poucas respostas. De uma aposta na alegoria, na metáfora como elemento norteador (o que vai da citação bíblica à conclusão que beira o delírio e o fascínio midiático).Os limites entre a razão e a imprudência, entre a calmaria e a fúria, parecem sempre próximos de serem ultrapassados aqui. A gente vai ficar intrigado até o final. Fascinado em alguma medida. E é isso que o cinema de Peele faz conosco. Vai pelos cantos, nos envolve e nos derruba. E, no fim, resta o sorriso (e até as lágrimas) no rosto. Leia a resenha completa.


27) Amor, Sublime Amor (West Side Story): Quem assistiu e gosta da versão clássica desse querido musical talvez considere meio desnecessária essa refilmagem produzida por Steven Spielberg. Mas, ao mesmo tempo em que a essência da história permanece a mesma, não deixa de ser curioso perceber como, neste caso, uma nova adaptação faz muito bem. Sim, eu tendo a ser meio ranzinza quando o assunto é a falta de originalidade de alguns roteiros, afinal, será que precisa? Mas aqui a desconfiança vai pro saco já na primeira e grandiosa tomada aérea do bairro de Upper West Side, em um plano sequência de uma Nova York meio em ruínas, que passa por um processo de gentrificação. É nesse local que duas gangues, os Jets, o grupo dos branquelos liderados por Riff, e os Sharks, os porto-riquenhos comandados por Bernardo, disputam o território, sendo incapazes de conviver de forma pacífica. E tudo piora quando, durante um baile, os dois grupos se encontram e organizam uma briga de rua que promete decidir o futuro de todos. Sim, Amor, Sublime Amor é a história shakespereana por excelência e o resultado aqui é experiência artística imersiva, vibrante, colorida e musical - mas sem deixar de lado os aspectos mais sombrios de sua história. Leia a resenha completa.


26) Elvis (Elvis): "Caímos em uma armadilha. Não posso escapar". Em uma das tantas grandes sequências dessa superprodução, o Rei do Rock está em uma espécie de recomeço musical no início dos anos 70, após a sua fracassada incursão por Hollywood. Na ocasião, todo um aparato foi montado para uma apresentação no International Hotel, em Las Vegas, com a presença de um público seleto e uma banda de apoio de altíssima qualidade. Enquanto o artista entoa os sinuosos versos de Suspicious Minds, o Coronel Tom Parker se ocupa de fechar um contrato de cinco anos para que o astro se apresente no local, com um salário milionário - e, muito provavelmente, um esgotamento físico e mental que decorreria dos mais de 500 shows no período. Encarnado de forma magnética por Austin Butler, Elvis Presley caía em (mais) uma armadilha. Da qual não podia escapar. E, sim, muito mais do que uma obra sobre a ascensão e a queda de um dos grandes artistas da nossa história, Elvis é uma obra sobre o controverso relacionamento de Parker com o cantor, com cada sequência da cronologia estabelecendo diálogo com eventos políticos, culturais e sociais históricos. É, ao cabo, uma experiência elétrica, cheia de entusiasmo e de licenças poéticas mais do que justas. Leia a resenha completa.


25) Clara Sola: Existe uma cena perturbadora desse filme costarriquenho que dá conta de como o fanatismo religioso se apropria do corpo alheio como forma de exercer opressão. Nela, Clara está em uma consulta médica acompanhada de sua mãe. A intenção é estabelecer o diagnóstico para a curvatura das costas de Clara, o que lhe confere uma espécie de corcunda. O médico explica que a solução está em uma cirurgia. A mãe recusa o apoio da ciência: "foi assim que Deus me deu ela", responde. Para a enferma não é dada a oportunidade de escolher. Aliás, no vilarejo distante em que a protagonista habita há quase 40 anos, ela é uma espécie de não mulher em corpo de adulta. Infantilizada, é tratada pela mãe com cuidado excessivo, o que lhe confere um ar ao mesmo tempo místico e ingênuo. Sim, estamos diante de uma casa em que prevalece o fanatismo religioso. Em que a culpa católica percorre as frestas, em meio a imagens de santas, de sacristias improvisadas, de velas e de terços. Clara habita esse local com uma resignação taciturna, encontrando refúgio na simbiose com a natureza - a mata, os riachos, as montanhas, os animais e os fenômenos da natureza estão no entorno. É onde ela encontrará forças para sobreviver. E para, aos poucos, despertar. Leia a resenha completa.


24) Spencer (Spencer): Existe uma sequência do recente filme de Pablo Larraín que é bastante didática na hora de mostrar o tipo de conflito vivido pela princesa Diana junto à Família Real britânica. É uma cena prosaica. Mas repleta de significados. Nela um grupo de empregados assiste a uma aparição pública de Diana às vésperas do Natal. Só que para surpresa de um dos encarregados, a princesa não está com o vestido que havia sido designado para aquele evento. Por conta própria, sua alteza opta pelo traje que deveria ser usado no dia 26 de dezembro. É o suficiente para que uma crise se estabeleça. Era mal o começo dos anos 90 e Diana já se sentia presa em um casamento de fachada em que, a despeito do luxo, da fartura, da pompa e da elegância, reinavam também rumores de traições, de conspirações e de mentiras, com Diana se sentindo a cada dia mais isolada. Filantropa e atenta a causas sociais, Lady Di se tornaria uma personalidade influente nos anos 90 - e seu comportamento levemente iconoclasta, provocativo, dá conta justamente de sua espontaneidade, de sua vontade de viver, de querer mais. E nesse jornada pessoal temos uma obra completa e cheia de nuances que ainda evidencia a hipocrisia reinante na aristocracia inglesa. Leia a resenha completa.


23) Top Gun: Maverick (Top Gun: Maverick): muito mais do que as imagens impressionantes e bem coreografadas dos caças em ação ou de todo o apelo militar que possa haver por trás, o que faz essa sequência do clássico kitsch de 1986 funcionar é a ótima história sobre relações humanas, família, memória, luto e ciclos que se iniciam ao passo que outros se encerram. Engraçada, sedutora, melancólica e nostálgica, a obra do diretor Joseph Kosinski ainda é um prato cheio para que Tom Cruise possa despejar todo o seu carisma, fazendo com que a gente torça o tempo para que as coisas saiam da melhor maneira possível. Veterano da Marinha, o capitão Pet Maverick Mitchell é chamado para ser instrutor de um grupo de jovens oficiais, que devem desmantelar um plano para instalação de uma usina ilegal de enriquecimento de urânio - aliás, uma missão quase impossível (com o perdão do trocadilho). Só que entre seus alunos estará justamente o jovem Rooster, filho de seu antigo parceiro Goose, que teve um destino trágico no primeiro filme, vindo a falecer nos braços de Maverick após uma ação frustrada. Não pensei que fosse possível ir as lágrimas tão facilmente em um filme de Ação. Chorei fácil. Mas também me diverti à beça. É, ao cabo, a experiência completa.



22) Licorice Pizza (Licorice Pizza): Assim que subiam os créditos finais do mais recente filme de Paul Thomas Anderson me dei conta de que ele parecia ser sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo. Bom, tentando explicar é sobre tudo porque é a obra de amadurecimento por excelência, que nos apresenta a persistente geração baby boomer que se aproxima da idade adulta em meio a incertezas, inseguranças, anseios e desejos. Desejos de tudo: sexuais, de bonança financeira, de constituir família, de ter uma estabilidade. Mas é também um filme sobre o nada - um "nada" meio à moda Seinfeld - porque se constitui de uma série de acontecimentos que mais parecem uma sequência de esquetes aleatórias, meio imprevisíveis, em que assistimos jovens vivendo, sobrevivendo, tentando. Se frustrando, mas sem deixar a peteca cair. Somos, afinal, seres que parecem sempre insatisfeitos. E Licorice Pizza leva essa questão até o limite do aceitável, na relação cheia de ambiguidades de Alana e Gary, que possuem dez anos de diferença. Uma década que, não demorará, se diluirá em meio a experiências mútuas, paixões secretas, decepções. Prisões. Eventos sociopolíticos. Imprevisibilidade. Um monte de encontros e desencontros, numa enxurrada deliciosa de assistir. Leia a resenha completa.


21) Pureza: Mais de 57 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas às de escravo pelo Estado brasileiro desde maio de 1995. CINQUENTA E SETE MIL. Os números impressionam porque não estamos falando do Brasil Colônia ou do Ciclo do Café, em meados do Século 19. É a atualidade. É agora. Em algum canto bem escondido desse País continental que insiste, dia após a dia, em emular o passado. E que retira de milhares de pessoas o direito básico à dignidade. E não é preciso ser nenhum especialista para compreender que, em tempos de Bolsonaro - e de supressão permanente de direitos trabalhistas - o cenário não melhorou. E, nesse sentido, o timing de uma obra como esta do diretor Renato Barbieri, não poderia ser melhor. O filme, afinal, se inspira na história real de Pureza Lopes Leal que, no começo dos anos 90 empreendeu uma verdadeira via crúcis para tentar localizar o seu filho que, meses antes, partira do interior do Maranhão para tentar a sorte no garimpo. O resultado é uma obra comovente de caráter semidocumental, sobre uma personagem obstinada (encarnada com paixão por Dira Paes), que enche a tela com um senso único de humanidade e empatia. Sim, aqui e ali pode ser meio piegas. Mas é importantíssimo que um filme assim exista. Leia a resenha completa.


20) Great Freedom (Große Freiheit): Pode parecer meio estranho pensar que uma Lei tão hedionda como aquela que ficou conhecida como Parágrafo 175 tenha sido revogada somente em 1994 na Alemanha. Instituída em 1871 pelo Código Criminal Germânico, ela criminalizava os atos homossexuais entre homens. Ampliada na época do nazismo, a medida passaria por diversas emendas no transcorrer dos anos, condenando dezenas de milhares de homens, num tipo de perseguição que ainda parece bastante presente, especialmente nos meios mais reacionários. E é justamente essa abominação jurídica que serve como pano de fundo para o ótimo Great Freedom, filme enviado pela Áustria à última edição do Oscar. A trama revoltante nos apresenta a Hans, um sujeito que é preso diversas vezes após a Segunda Guerra Mundial por cometer o "crime" de ser homossexual. Pouco preocupado em mostrar os bastidores ou mesmo o lado burocrático desses encarceramentos, o diretor Sebastien Meise centra a narrativa no interior da prisão e na completa falta de sentido dessas detenções. O resultado é uma obra sutil sobre empatia, amor e respeito ao outro, que ainda denuncia o absurdo do preconceito. Leia a resenha completa.


19) A Filha Perdida (The Lost Daughter): Nos últimos anos não foram poucas as obras que ousaram discutir - ou até desconstruir - o ideal romântico da maternidade, como é o caso do ensaio literário como Contra os Filhos da chilena Lina Meruane. Sim, o tema é tabu, é complexo, e certamente vale ser debatido. Afinal de contas, como afirma Leda, a protagonista de A Filha Perdida, "as crianças são uma esmagadora responsabilidade". É uma resposta que ela dá a outra personagem que está achando meio inacreditável o fato de Leda estar em uma bela praia grega sozinha. Sem a família, no caso. Sem outras companhias físicas. Sem marido xarope, em criançada gritando, sem adolescente azucrinando. E por mais que a sociedade tenha evoluído, ver uma jovem senhora de quase cinquenta anos, acompanhada de seus livros, fazendo anotações, saboreando uma boa bebida, desejando usufruir de um pouco de silêncio, ainda gera estranheza. Em linhas gerais essa é uma obra incômoda, ruidosa, ainda que cheia de sutilezas, que discute de forma elegante e envolvente temas como solitude, memória, afeto, escolhas pessoais, machismo na sociedade e, claro, maternidade. E ainda tem Olivia Colman em uma soberba interpretação. Leia a resenha completa.


18) Memória (Memoria): Nunca é fácil interpretar com exatidão a semiologia por trás dos filmes do diretor Apichatpong Weerasethakul. Aqui, novamente, temos uma experiência sensorial, sinestésica, daquelas que parece deixar o espectador meio entorpecido enquanto tenta, aqui e ali, costurar os pedaços que formarão o todo. Do barulho que acorda Jessica no susto em meio ao silêncio de madrugada avançada para um outro plano em que carros parados em um estacionamento têm seus alarmes acionados inexplicavelmente, o que temos aqui é uma engenhosa narrativa sobre como somos assombrados por fenômenos aleatórios que podem (ou não) estar apenas nas nossas cabeças. A protagonista voltará a ouvir o barulho que a desperta em outras circunstâncias. Solitário ou soterrado em meio a outros ruídos. O que será? Ao cabo, o que vale aqui é a dança - no sentido metafórico - que envolve um aparato técnico impressionante, com destaque para a edição e a mixagem de som. Pode parecer difícil, hermético. Mas quem insistir certamente será enfeitiçado por um rico trabalho - complexo, cheio de simbolismos, sedutor em alguma medida e absolutamente hipnótico. Leia a resenha completa.


17) O Acontecimento (L’évènement): Se nos dias atuais, quando o assunto é a descriminalização do aborto, o pânico moral e o conservadorismo freestyle já costumam nivelar o debate por baixo, imagina há 60 anos. Ou mais. Na França, a legalização do aborto entraria em vigor em 1975. Antes disso, tal qual os países mais atrasados, cessar uma gestação de forma voluntária poderia ser considerado crime. Aliás, a proibição era tanta, que algumas mulheres foram condenadas à pena de morte por esse simples desejo de decidir sobre o próprio corpo. Nesse contexto, o impactante O Acontecimento nos apresenta à jovem Anne, uma estudante promissora que resolve esconder uma gravidez inesperada às vésperas do vestibular. Afinal, um filho, ainda no começo da vida adulta, poderia representar a interrupção do sonho de seguir uma carreira na área de Letras, de ter independência, liberdade e autonomia. Só que, em 1963, a visão da sociedade patriarcal é apenas uma: abortar é se tornar, automaticamente, uma criminosa. Para os familiares, para os médicos, para a Igreja, até para alguns amigos. O que tornará a jornada de Anne absolutamente solitária. Uma experiência dura, quase exasperante, mas que tem, entre tantos méritos, o de chamar a atenção para um assunto que segue atualíssimo. Leia a resenha completa.


16) Aftersun: Existe uma sequência do filme de estreia de Charlotte Wells que, assim como muitas, parece apenas prosaica. Mas que, ao cabo, é cheia de significados. Significados que estão por trás, fora do quadro, para além daquilo que a gente enxerga de forma mais palpável. Nela, a jovem Sophie convida seu pai Calum para uma sessão de karaokê - que ele recusa. Os dois estão em um hotel de baixo orçamento para curtir o feriado. Calum fará aniversário dali um ou dois dias - trinta e alguma coisa. O passeio talvez simbolize a busca por algum tipo de celebração - um fiapo de alegria para quem recém se separou. Alguém que tem claras limitações financeiras, mas que fará o possível para que a sua filha seja feliz naquele microcosmo. Ainda que, para isso, seja necessário deixar os demônios interiores bem guardados. E, ao cabo, a obra se consistirá em uma série de pequenos eventos como este do karaokê, sempre construídos de forma afetuosa e emocionalmente febril que, por mais sutiis que sejam, nos permitirão refletir sobre memória, perda, tensões emocionais, saudade, indo no limite entre o real e o onírico, o concreto e o abstrato. Aftersun foi eleito o melhor filme do ano no Metacritic, que condensa notas da crítica. Certamente não foi por acaso. Leia a resenha completa.

 

15) Marte Um: Não sei se fui eu que enxerguei significado demais no enviado do Brasil ao Oscar, mas a meu ver parece haver na narrativa um sentido que vai além da alegoria da habitação, da busca por um lugar pra chamar de seu. Uma casa, um apartamento, um País. Outro planeta, vá lá. E não deixa de ser interessante assistir ao filme justamente agora, quando Bolsonaro está saindo do poder. O sentimento geral da nação parece ser o de termos sido, nos últimos quatro anos, devassados. Subtraídos. Invadidos. De que tudo piorou e de que esse Brasil que tanto amamos se tornou outro: mais complicado, mais violento, mais individualista. O que talvez explique melhor a metáfora da busca por restabelecer esse espaço de segurança simbolizado pela moradia, como algo que está ao nosso alcance. Nos perdemos pelo caminho, mas desejamos o tempo todo nos reencontrar. O que certamente não será fácil. Na trama, acompanhamos a jornada do pequeno Deivinho, morador da periferia de Minas Gerais que sonha em ser astrofísico, para integrar uma expedição de colonização à Marte, em 2030. O País mergulharia no caos, sonhos seriam destroçados. Mas o brasileiro não desiste, como comprova essa experiência vigorosa, naturalista e pontuada por uma série de instantes comoventes. Leia a resenha completa.

 

14) Reze Pelas Mulheres Roubadas (Noche de Fuego): Há uma cena aparentemente prosaica no enviado do México ao Oscar do ano passado, em que mãe e filha fazem uma espécie de jogo em que devem adivinhar os sons que vêm da vizinhança da comunidade rural em que residem. Um cachorro que late, uma vaca que muge distante. Insetos ou sons do mato. Parece apenas um passatempo de final de noite, enfim. Só que não demora para que percebamos o significado maior daquilo. Em um pequeno povoado do interior serrano do México, ocupado por um cartel de tráfico de drogas, saber ouvir é muito importante. E essa é uma das formas que a pequena Ana aprende a identificar eventuais perigos. Protegida pela mãe, a jovem se torna invisível, com o corpo sempre coberto por vestes largas, de cabelo curto e sem qualquer tipo de maquiagem. É preciso esconder a sua existência, num processo de quebra de inocência doloroso e forçado. Tradicional no cinema latino, esse recorte mais árido vai ganhando sustentação aos poucos, sem pressa, em meio a instantes repletos de significados, de simbolismos que, algumas vezes, parecem saltar da tela. O desconforto é crescente e palpável. E a dor e o sofrimento surgem de forma discreta, sem apelação. É um filmaço. Leia a resenha completa.

 

13) Flee: Nenhum Lugar Para Chamar de Lar (Flee): Revoltante. Comovente. Perturbador. Sombrio. Definir com adjetivos uma obra completa e complexa como Flee não é tarefa fácil. Esse é um filme que me fez chorar em mais de um momento, por motivos variados. Ainda que nos deixe de estômago embrulhado é uma experiência necessária em tempos em que o tema "crise de refugiados" segue em alta - e não é demais lembrar que o País mais perigoso do mundo, o Afeganistão, é o que mais "produz" solicitantes de asilo no mundo. Na trama baseada em uma história real, um intelectual faz um relato comovente ao diretor Jonas Poher Rasmussen sobre como tenta recomeçar a sua vida na Europa após conseguir, a muito custo, fugir do País dominado pelo talibã. Para se tornar, inicialmente, uma "não pessoa" - sem família, sem passado, sem documentos. E, na realidade é meio inconcebível pensar que estamos em um mundo em que esse tipo de barbárie ocorra. Em que violência, sangue, tortura e morte seja resultado da necessidade de se aniquilar o diferente. Mesclando documentário com animação, essa obra que teve três indicações ao Oscar é uma experiência rara, complexa, atual. E que PRECISA chegar ao máximo possível de pessoas. Leia a resenha completa.

 

12) Mães Paralelas (Madres Paralelas): Vamos combinar que se tem um diretor que sabe olhar para o íntimo dos personagens mas sem ignorar o contexto - social, político, cultural - este é o Pedro Almodóvar. Sim, suas obras podem ser novelescas, anárquicas, ousadas, debochadas. Mas também sabem ser comoventes, sutis, humanas. Almodóvar é, ao cabo, o diretor completo que, assim como outros realizadores, possui uma assinatura própria, sendo praticamente impossível olhar para a paleta normalmente quente de cores, para os cenários cheios de elementos e para os figurinos vibrantes sem pensar "bom, está aí um Almodóvar raiz". E talvez seja a soma desses ingredientes - a história que emerge do microcosmo, a estética que vai no limite da ambiguidade, o olhar carinhoso para o passado - justamente aquilo que torna possível a existência de pequenas joias como esta. O "assunto" das mães costuma se repetir nos filmes do espanhol, como uma espécie de metáfora geradora do todo, da continuidade da vida e da superação em uma sociedade patriarcal. Aqui, esses elementos ganham força a partir da história que une duas mulheres de personalidade opostas que se aproximam na maternidade. Almodóvar está na sua melhor forma. E quem ganha é o espectador. Leia a resenha completa.


11) A Felicidade das Pequenas Coisas (Lunana: A Yak in the Classroom): Sinceramente eu terminei esse afetuoso projeto já achando uma pena o fato de que, muito provavelmente, poucas pessoas se interessarão pela obra - ainda que a indicação ao Oscar (foi o representante do Butão na categoria Filme em Língua Estrangeira) talvez possa ter dado um upgrade. Por que o caso é que esse é o tipo de experiência que ilumina, que aconchega, que olha para as coisas simples da vida com ternura, com reverência. Para a natureza. Para as artes. Para a cultura e para o ensino. Para o poder do aprendizado. Ou para a mera importância do professor. O que em um mundo tão impessoal, tão individualista, tão tecnológico, tão conectado mas tão distante, parece tornar tudo ainda mais paradoxal. Hoje em dia parece que o olho no olho perdeu espaço. Tudo é tecla, bit, aplicativo, rede social. Nesse sentido, essa pequena joia resgata essa leveza perdida, a partir da história de um professor do ensino público que é enviado para a aldeia mais remota do planeta para dar aula. Cativante, essa é daquelas obras que a gente nunca desejaria que terminassem. É como um afago daqueles generosos vindo de quem a gente ama. O que faz renovar as esperanças nesse mundo tão duro. Leia a resenha completa.


10) Blue Bayou: Ok, a gente até sabe que indicação ao Oscar não depende apenas da qualidade de um filme, já que é preciso uma ampla campanha de marketing por trás da produção. Mas ao final da projeção de Blue Bayou, considerei meio inacreditável essa obra ter passado completamente batida na principal premiação do cinema. O projeto, afinal, tem todos os elementos que costumam agradar a Academia - indo desde o drama dilacerante, passando pela temática relevante, até chegar às incríveis interpretações do elenco principal. A trama versa sobre o processo de deportação tardio que é vivido por milhares de estrangeiros adotados nos anos 80 e 90 por famílias americanas, que descobrem não possuir cidadania. Uma situação dramática, que deixa vulnerável uma boa parcela da população de outros países que cresceu nos Estados Unidos - aliás, uma matéria estima que até 2033 mais de 60 mil estrangeiros possam estar em risco de deportação, por conta de alguma irregularidade. E é essa a realidade de Antonio, coreano adotado por uma família americana aos três anos de idade e que, por conta de um episódio de abuso de autoridade envolvendo a polícia, passa a correr riscos de deportação. Preparem os lenços. Serão necessários. Leia a resenha completa.


9) A Pior Pessoa do Mundo (Verdens Verste Manneske): Acho que um dos aspectos mais interessantes do indicado da Noruega ao último Oscar é a forma como nos identificamos com a protagonista. Julie é, afinal, aquela pessoa caótica, imatura e cheia de incertezas a respeito do futuro - como costumam ser os jovens que ainda não chegaram aos trinta. Quem nunca, né? O filme do diretor Joachim Trier já inicia com a jovem divagando sobre qual profissão ela gostaria de seguir, saltando da medicina, passando pela psicologia, até chegar a fotografia. Nos relacionamentos, a desordem é semelhante, com saltos de um casinho a outro sem muito critério. Essa fragmentação, que o pensador Zygmunt Bauman chamaria de "modernidade líquida" - que nada mais é do que a "crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente, ao passo que a incerteza é a única certeza" -, parece ser o que rege parte da narrativa. Dividido em doze capítulos que contam com títulos meio autoexplicativos como "sexo oral na era #metoo", ou "o circulo narcisista de Julie", o filme nos conduz em uma espiral de incertezas em que, qualquer que seja a decisão, será inevitável o arrependimento. Julie é gente como a gente. E isso torna a experiência não menos do que adorável. Leia a resenha completa.


8) Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (Babardeala cu Bucluc Sau Porno Balamuc): Talvez seja meio irônico pensar que esse filme só poderia ser feito em um contexto de pandemia. E isso porque não deixa de ser uma espécie de "rima" impressionante ver uma população inteira usando máscaras - no caso os habitantes de Bucareste, a capital da Romênia -, e perceber como, aos poucos, essas peças de pano vão começar a cair. Não literalmente, mas como uma metáfora mais do que perfeita para a hipocrisia da sociedade atual. Essa sociedade quadrada, machista, atrasada, apegada a valores e convenções que mais parecem saídas de algum ponto da Idade Média. Dirigida por Radu Jude a obra, originalíssima, foi a grande vencedora do Urso de Ouro no último Festival de Berlim. Na trama, uma professora de um educandário tipicamente tradicional, religioso, tem um vídeo íntimo vazado - o que deixará as "famílias de bem" em choque. Uma reunião é marcada para que a educadora seja demitida por ter cometido o crime de ter transado com o próprio marido. Bom, não é preciso dizer que, ao cabo, trata-se de uma experiência inventiva, que aponta o conservadorismo de fachada como uma espécie de bizarrice de nossos tempos. É divertido, corrosivo e imperdível! Leia a resenha completa.


7) Um Heroi (قهرمان): Quem acompanha a carreira do cineasta iraniano Asghar Farhadi sabe que a deterioração das relações humanas a partir de eventos cotidianos, quase prosaicos, costuma ser a matéria-prima para as suas obras que, ao mesmo tempo, também costumam traçar um panorama político, cultural, social e religioso de seu País de origem. Nesse sentido parte-se do microcosmo muitas vezes doméstico para uma análise do todo, de questões maiores - ainda que poucas vezes o espectro seja ampliado para além do dia a dia daqueles que acompanhamos. Foi assim nos ótimos e premiadíssimos A Separação (2011) e O Apartamento (2016). É assim também com o mais recente trabalho do realizador. Aqui temos a história de um sujeito desesperado que aposta em uma mentira para tentar se livrar da cadeia. Na trama um homem preso por não pagar as suas dívidas empreende uma verdadeira via crúcis pra tentar fazer com que seu credor retire a queixa, quando ele recebe um indulto. Cheio de idas e vindas, de tomadas de decisão moralmente duvidosas, de ações corretas e incorretas em cascata e de pessoas entrando no modo sobrevivência a qualquer custo, esse é daqueles filmes que faz com que a gente altere a nossa percepção a todo momento. Vale demais. Leia a resenha completa.


6) Argentina, 1985: "Senhores juízes: nunca mais." É marcante a frase dita pelo promotor Júlio César Strassera, em um dos instantes mais comoventes da obra que representará os nossos hermanos no próximo Oscar e que está disponível na plataforma da Amazon Prime. Encarregado do julgamento contra a junta militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983, Strassera (vivido por Ricardo Darín com a habitual competência) concluía naquele instante a leitura do documento histórico que denunciava publicamente nove comandantes militares que governaram o País durante o chamado Processo de Reorganização Nacional (nome mais "pomposo" pra Ditadura). Cinco seriam condenados. Dois a prisão perpétua. Algo histórico, já que desde os Julgamentos em Nuremberg, que perpetraram assassinatos em massa de civis pelos nazistas, não acontecia algo parecido. Evidentemente que nada tirará a dor das famílias argentinas que tiveram parentes e amigos mortos e torturados durante o regime - estima-se que 30 mil pessoas possam ter desaparecido à época. Mas os nossos vizinhos civis tiveram a coragem de, de alguma forma, tentar amenizar essa dor. E esse esforço resulta em uma das mais impactantes experiências cinematográficas da temporada. Leia a resenha completa.


5) O Homem do Norte (The Northman): Existem filmes que, para além da história em si, são uma verdadeira experiência - sensorial, magnética, auditiva e visual. Daquelas capazes de ativar todos os nossos sentidos. Talvez até de alguma forma aguçá-los, ampliá-los. E esse é justamente o caso desse terceiro filme de Robert Eggers - de A Bruxa (2015) e O Farol (2019) - e que o consolida como um dos grandes realizadores da atualidade. A trama em si é a clássica história de vingança, de um jovem príncipe que presencia o assassinato do próprio pai pelas mãos do tio - que usurpa o trono. Cenários, objetos, símbolos, vestimentas, pinturas, cânticos, religiões, ritos, profecias, superstições, guerra, honra e destino. São muitas as palavras que se confundem, que se misturam, formando um todo coeso, enquanto nós espectadores acompanhamos o desenrolar de olhos meio arregalados, com o desejo de não perder um segundo sequer. Em resumo, é tudo muito perfeito aqui. É preciso, ao cabo, um esforço homérico para encontrar qualquer desvio, uma incerteza ou algum tipo de excesso. É um tipo de arte soberba, visceral, grandiosa. E que merece a nossa quinta colocação. Leia a resenha completa.


4) Nada de Novo no Front (Im Westen Nichts Neues): Quem der play no enviado da Alemanha ao Oscar esperando uma história de heroísmo e patriotismo em tempos de guerra, certamente vai se decepcionar. Aliás, talvez seja algo meio óbvio imaginar que não há nada de glorioso em batalhas do tipo. E muito menos na Primeira Guerra Mundial, talvez um dos mais inúteis conflitos bélicos da história (e o número de mortos dá conta da tragédia sem precedentes que foi a guerra, que durou de 1914 a 1918). Aqui não há mocinhos ou bandidos, não há bem contra o mal. Bom, talvez a exceção sejam os líderes de nações belicistas que, a distância, assistem seus soldados caminhando em direção a boca escancarada da morte enquanto, encastelados, postulam sobre possíveis cessar-fogo de mentirinha, ou armistícios de faz de conta. Vilões reais. Nesse sentido, Edward Berger atualiza o clássico de Lewis Milestone proporcionando ao espectador um mergulho no que de mais tenebroso pode haver em uma guerra, com suas trincheiras acinzentadas, repletas de ferro retorcido, de arame farpado, de madeira podre, de entulho, de água suja, de lama, de sangue e de morte. A sensação de caos e de desorientação é palpável e a experiência com a obra, inesquecível. Leia a resenha completa.


3) O Bom Patrão (El Buen Patrón):"Bom todos vocês sabem que minha mulher e eu não temos filhos, e nem precisamos deles, porque vocês são nossos filhos." A frase dita pelo senhor Blanco (Javier Barden) ainda no começo do enviado da Espanha ao Oscar desse ano já evidencia uma certa semiótica desse ideal supostamente paternalista que costuma reger algumas empresas. Do alto de uma estrutura elevada, o sujeito - o dono de uma bem conceituada fábrica de balanças - discursa à seus funcionários, que estão ao nível do solo (uma imagem de peso e contrapeso que serve de metáfora não apenas para o tipo de segmento daquela indústria, mas também para a hierarquia ali vista). Em meio a comentários sobre compromissos e estratégias, o senhor Blanco alerta a todos ali que, naquela semana, deverá visitá-los uma comissão que concede uma premiação de excelência entre empresas regionais e que eles estão entre os finalistas. E é claro que a coisa vai desandar e a tentativa de preservar a boa imagem será paulatinamente arruinada por empregados insatisfeitos, problemas familiares, assédios e outros problemas. O tema é sério, mas o resultado é absurdamente debochado! Leia a resenha completa.


2) Drive My Car (Doraibu Mai Ka): se o grande vencedor do Oscar de Filme em Língua Estrangeira desse ano fosse uma torta daquelas bem vistosas que vemos nos balcões de padarias, certamente poderíamos compara-la com aquele doce coberto de merengue. E por mais que a gente não saiba exatamente o quê vai encontrar no recheio, vai saboreando com gosto cada garfada. Com calma, sem pressa. Sentindo a textura, tentando desvendar os ingredientes ou quais os sabores que aquela mistura evoca. Nas aparências, a obra do diretor Ryusuke Hamaguchi - vencedora do Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira nesse ano e que está disponível na plataforma Mubi -, é "apenas" mais uma grande reflexão existencialista que é salpicada por temas que envolvem arrependimentos, memórias, luto, persistência, destino e envelhecimento. Já em seu cerne, em suas vísceras, trata-se de um amplo tratado sobre a complexidade humana, sobre dores, anseios, desejos e frustrações. É, ao cabo, uma experiência cheia de nuances, de detalhes e de encaixes que mal parecem caber nas suas elásticas três horas de duração. Mas que recompensarão o espectador que se dedicar a ela. Leia a resenha completa.


1) Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once): E se fôssemos mais gentis? Mais amáveis? E se fôssemos mais afetuosos? E se levássemos a vida com mais leveza, com mais graça? E se o mundo fosse um lugar melhor? São muitas as perguntas. E poucas as respostas oferecidas por essa joia que mistura comédia, ficção científica e fantasia em igual medida. O objetivo aqui não é necessariamente esclarecer. E sim oferecer uma experiência em que, sob a desculpa da existência de um multiverso em que cada decisão tomada forma uma nova ramificação em nossos destinos, possamos refletir sobre tudo isso. Sobre esse conjunto de aspectos filosóficos. Divertida, anárquica, existencialista, a narrativa acompanha uma mulher que é a "pior versão de si própria" e que deve utilizar as habilidades das outras milhares dela mesma para tentar restabelecer algum tipo de ordem em uma espécie de realidade alternativa. É um tipo de mistura tecnicamente impecável e de difícil definição, que discute escolhas, coisas que ficam pelo caminho e como as nossas decisões definem a pessoa que seremos mais adiante. Certamente uma obra que será lembrada e reverenciada pelos próximos anos. Com justiça. Leia a resenha completa.


E então, gostaram da lista? Sim, assim como ocorre com as demais relações publicadas aqui vale destacar que esses são Grandes Filmes entre os que conseguimos assistir. Tem muito filme entrando em cartaz - alguns cotados para o próximo Oscar, inclusive, que ainda não conseguimos conferir (casos de Ela Disse, A Mulher Rei ou Ruído Branco, por exemplo, e que devem figurar em outras listas - e que mais adiante certamente terão resenha por aqui). Ótimos projetos como A Mão de DeusRoda do DestinoPequena MamãeAzor, Lingui, Miss França, Fruto da Memória, Cha Cha: Real Smooth, A Garota e a Aranha, Red: Crescer É Uma FeraVortex e Concorrência Oficial poderiam muito bem estar na relação. Mas fazer esse tipo de seleção é assim mesmo. Sempre vai parecer que não contemplamos tudo a contento!