sexta-feira, 17 de maio de 2024

Picanha.doc - Bobi Wine: O Presidente do Povo (Bobi Wine: The People's President)

De: Moses Bwayo. Documentário, Uganda / EUA / Reino Unido, 2022, 113 minutos.

"A verdadeira liberdade começa na mudança de mentalidade". Uma obra sobre o poder da arte como veículo de transformação social e como apoio da manutenção da democracia - especialmente diante de ameaça de sistemas políticos autoritários. Assim podemos considerar Bobi Wine: O Presidente do Povo (Bobi Wine: The People's President), filme disponível na plataforma Star+ e um dos cinco indicados ao Oscar desse ano na categoria Documentário. Aqui temos uma obra inspiradora, que mescla as letras poderosas de Wine, um carismático cantor de reggae que faz uma mistura saborosa de ritmos africanos, como o afrobeat e o dancehall, e que começa a chamar a atenção do público, especialmente pelas letras socialmente conscientes que refletem sobre direitos humanos, pobreza, saneamento básico, importância da educação, paternidade responsável e outros temas, sempre com um olhar atento às mazelas do povo de Uganda, seu País de origem.

Nesse sentido, essa é uma produção que nos captura de forma instantânea. Enquanto circula pelas ruas e becos arenosos e miseráveis de uma favela da capital Kampala, o artista passa a arrastar uma multidão de adeptos, que replicam suas músicas e imitam seu estilo. Com certa fama, Wine casa com a filantropa Barbie Kyagulanyi e amplia o olhar político em sua arte, especialmente a partir de meados dos anos 2000, quando a corrupção do governo do ditador conservador de direita Yoweri Musevini aflora. O que se soma ao desrespeito aos direitos humanos e também a tentativa de silenciar qualquer opositor - algo que sempre envolve um pesado aparato militar e uma disposição única para atos de truculência. Em um dos episódios mais traumáticos do País, um protesto que antecederia uma das tantas eleições livres - algo bastante recente, já que entre 1986 e 2005 era proibido o pluripartidarismo em Uganda - vencidas por Musevini, um grupo de civis é morto pelas forças militares, sob a desculpa de serem "terroristas" ou "insurgentes".


 

Enfim, a gente já viu o mesmo papo em ditaduras mundo afora - especialmente aquelas que desejam se manter no poder na base da força (e por mais que a situação do Brasil seja diferente, é simplesmente impossível não pensar no País quando vemos um presidente que utiliza absolutamente toda a máquina pública estatal para tentar permanecer no poder). A diferença é que aqui ainda temos uma democracia, e por mais que já existisse uma minuta do golpe e um bando de alucinados na frente de um quartel, tendo ainda como complemento o maior estelionato eleitoral da história, o projeto mambembe de ditador tropical foi deposto. Em Uganda essa aguardada primavera é mais complexa. E eternamente adiada. Com o voto impresso - sim, que surpresa! -, as chances de fraude aumentam progressivamente. E quando Wine resolve partir pro confronto com Musevini nas eleições de 2021, ele perde por 58% a 34%. Por mais que tudo indicasse o desejo do povo por oxigenar a sua política, depois de CINCO mandatos do déspota.

Com belas imagens de arquivo, a produção dirigida por Moses Bwayo acompanha os movimentos de Wine que, a cada ataque que sofre, dobra a aposta na tentativa de confrontar o poder tirano - e as repetidas fraudes que parecem ocorrer com anuência de um parlamento "comprado", que altera leis para que Musevini se perpetue no poder. Em uma cena chocante, o artista sofre uma frustrada tentativa de assassinato, que resulta na morte de seu motorista. O que não o impedirá de, mais adiante, ser preso por suposta desobediência. Com tudo costurado sempre pelas letras pungentes de Wine e pelos ritmos quentes, que permitem ao mesmo tempo a festa do povo e a consciência (um combo, muitas vezes, ideal). Se há um pequeno porém, acho que falta um pouquinho mais de profundidade a respeito do panorama político do País e sobre quais as plataformas defendidas por Wine, que tanto se dedica aos direitos humanos e às minorias. Um progressista que confronta um reacionário. Aliás, a tônica atual em muitas partes do mundo. Com a arte tendo papel central nesse debate.


Pitaquinho Musical - Rachel Chinouriri (What a Devastating Turn of Events)

"Quando coisas ruins acontecem, as pessoas ao seu redor ficam tipo, ‘vai ficar tudo bem, lamento que isso tenha acontecido', E, na verdade, às vezes é bom dizer: ‘isso foi uma merda, foi horrível e é injusto'. Esse era o tipo de emoção que eu queria traduzir nessas músicas". Quem ouve o pop sofisticado, muitas vezes agridoce, e cantado com a voz aveludada da britânica Rachel Chinouriri, em sua estreia What a Devastating Turn of Events, talvez não imagine a densidade de suas letras e mesmo a relevância de seus temas. Em linhas gerais há uma leveza nostálgica que conduz o ouvinte entre palminhas, assobios e uma sonoridade que se equilibra bem entre o R&B, o soul e o indie rock, que fazem tudo soar acessível. É aquele disco gostoso, com pontes e refrãos que flanam com facilidade. Basta uma ou outra audição pra memorizar as canções. Como no caso, por exemplo, de Robber, balada sombria que tem como pano de fundo a história de um casal que perde um bebê. Coisas ruins acontecem. E são uma merda - como ela disse no material de divulgação.


 

Nascida em Londres, a artista de apenas 26 anos é filha de pais emigrados do Zimbábue. E ainda que pudesse ser convidativo em termos de "mercado", tornar sua música apenas uma excentricidade para um público médio e branco ávido por sons alternativos de fora dos grandes centros, Rachel cresceu ouvindo Kings of Leon, Phoenix e Coldplay - e é interessante notar como todas essas bandas aparecem salpicadas, aqui e ali, como influências não tão óbvias. Nas letras, as experiências pessoais se mesclam com narrativas familiares - o que resulta em um projeto complexo e heterogêneo em que guitarras mais velozes se misturam com sintetizadores econômicos, sempre prontos a explodir mais adiante. Canções sobre sensação de não pertencimento (o ótimo single The Hills), a respeito de amores não correspondidos (All I Ever Asked), sobre autoimagem e aceitação (I Hate Myself) ou mesmo suicídio (como na sombria faixa-título) se mesclam para formar um conjunto irresistível de uma das artistas mais promissoras de atualidade. Não deixe de ouvir.

Nota: 9,0

 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Cinema - Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (Love Lies Bleeding)

De: Rose Glass. Com Kristen Stewart, Katy M. O'Brian, Ed Harris, Jena Malone e Dave Franco. Suspense / Romance, EUA / Reino Unido, 2024, 104 minutos.

Quem assistiu Saint Maud (2019), o filme anterior da diretora Rose Glass, talvez se surpreenda com o estilo mais maximalista de Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (Love Lies Bleeding), obra que está em cartaz nos cinemas do País. Afinal tudo que o projeto anterior tinha de sutileza e de morosidade na hora de fazer a crítica a respeito dos problemas que decorremdo fanatismo religioso, este tem de exagerado em seu exame de uma sociedade ainda machista, individualista, com pendor pra violência e pouco paciente na hora de efetuar qualquer tipo de negociação. Sangue, suor, lágrimas, excrementos e gozo se misturam em um tipo de cinema que se convencionou chamar atualmente de "cinema do corpo", que é aquele tipo que, a partir de certo experimentalismo, arrasta o espectador para algo mais sensorial do que aquele que se vale apenas do olhar. Algo que, por exemplo, fazem com maestria realizadores como Julia Ducournau e David Cronenberg, com seus body horrors.

Ainda assim o cinema do corpo, lembra a autora Linda Williams, não é apenas o do terror, da palpitação e dos sustos. Sim, em Love Lies Bleeding a gente encontra isso. Mas ele é também o do choro e o tesão, que mobilizam nossos fluídos, que movimentam nossas vísceras. E é preciso que se diga aqui temos a experiência completa nesse sentido. Ao cabo essa é uma obra de closes em corpos, com todo o seu esplendor - como no caso de Jackie (Katy M. O'Brian), que talvez materialize justamente a transformação irracional que sofremos quando nos apaixonamos -, e em rostos, que é onde entra Lou (Kristen Stewart em mais um grande papel), que, de cabelo seboso, se utiliza de seu olhar sempre penetrante e capaz de preencher espaços, para transmitir toda a ansiedade e a angústia diante de uma violência que lhe rodeia, e que talvez esteja pronta a explodir a qualquer momento.


 

Lou herdou uma academia de ginástica da família e é lá que ela conhece e começa a se relacionar com a forasteira Jackie, após um encontro improvisado, ainda que jamais fortuito entre as duas. Jackie, com seu corpo vigoroso, está vindo de Oklahoma, se prepara para um torneio de fisiculturismo, e encontra abrigo no local. Por uma daquelas coincidências, ela arruma um emprego em um clube de tiro chefiado justamente pelo pai de Lou (Ed Harris) - um sujeito tão repulsivamente palpável em sua combinação de caipira norte-americano reacionário com idoso decadente que votaria facilmente no Trump (ou em Bush), que é quase impossível não sentir asco. O que é reforçado pela sua aparência de tiozão acampado na frente do exército com sua cara oleosa e cabelos longos, mesmo sendo calvo, e a grande propensão para golpes no mercado negro de armas. Esse ambiente "família" é completado pelo violento JJ (Dave Franco), o cunhado de Lou, que tem o hábito agredir a irmã Beth (Jena Malone). É claro que em um cenário tão cáustico que mistura violência doméstica, clubes de tiro, academias anabolizadas, amor lésbico e tentativas de fuga a chance de a coisa sair do controle é grande. Pra alegria do espectador. 

Em linhas gerais Rose Glass não se intimida na hora de evidenciar seu ponto. Lou pai e JJ, por exemplo, são apresentados como os machos torpes e misóginos que, atualmente, ocupariam com tranquilidade os fóruns online de redpills ou os 4chans da vida - e o fato de o cenário ser alguma pequena cidade do Novo México rural e conservador, ajuda nessa composição. Só que aqui estamos nos anos 80 e, é preciso que se diga, esse aspecto também fornece certo charme à parte técnica, com sua fotografia levemente saturada, as cores vivas e figurino de roupas meio antiquadas. É um conjunto saboroso que olha para o passado para falar do presente de forma alegórica: afinal para que o mundo avance em toda a sua plenitude, talvez seja necessário extinguir certos sujeitos (ou ideias, vá lá) que representem certo atraso na sociedade. Pode parecer meio over em alguns momentos: mas é sexy, divertido e macabro. O odor pestilento parece saltar da tela. E ainda assim não resistimos.

Nota: 8,5


terça-feira, 14 de maio de 2024

Pitaquinho Musical - Jessica Pratt (Here in the Pitch)

Uma bossa nova enevoada, cantada em um filme cult dos anos 80. Um folk espacial que emerge em uma série de TV distópica e existencialista. Uma melodia que martela sutilmente em um bar enfumaçado, ocupado por figuras niilistas e silenciosas. Tentar converter em "imagens" a música feita por Jessica Pratt pode não ser tarefa tão fácil - uma vez que ela parece trafegar com facilidade entre a nostalgia onírica e a modernidade borbulhante. Em alguma medida é possível afirmar que as possibilidades são muitas e mesmo um disco pequeno como Here in the Pitch - o quarto da carreira da norte-americana -, permite ao ouvinte uma viagem pop psicodélica por ambientes tão variados, que tudo parece ser maior do que é (a despeito das apenas nove músicas distribuídas em 27 minutos). Lúdico, sensorial, evocativo, esse é daqueles trabalhos que ressoam de forma hipnotizante em uma rota intimista e agridoce.


 

Um bom exemplo disso tudo pode ser percebido no single lo-fi World on a String - com sua musicalidade flutuante e elevada. Pratt tem um estilo de cantar que consegue soar ao mesmo tempo doloroso e acolhedor e, por causa disso, versos como "E você ganhou tudo, mas seu sorriso vai embora / Quando, ao final, você é notícia de ontem" (na bossa nova Better Hate) soam ousados e irônicos. Há um pouco mais de expansão no todo, especialmente se compararmos com a sutileza dilacerante do anterior Quiet Songs (2019). E talvez aí esteja parte do magnetismo: o que antes era apenas um violão mais discreto, que vinha acompanhado de um pianinho sutil, aqui fica mais amplo, mais preenchido, com mais camadas. Inclusive vocais. É o tipo de combinação que faz com que retornemos várias vezes para o disco.

Nota: 8,5

 

Cine Baú - Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb)

De: Stanley Kubrick. Com Peter Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden. Comédia / Ficção Científica / Guerra, EUA / Reino Unido, 1964, 94 minutos.

Em uma das mais divertidas sequências de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), um grupo de líderes norte-americanos - entre eles diplomatas, militares e conselheiros - debate, em uma sala do Pentágono, o futuro da humanidade. Após uma ligação do presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (um dos três papeis de Peter Sellers) ao premier soviético (um certo Kissoff, que parece estar bêbado do outro lado da linha), tem início uma briga acalorada entre o general Turgidson (George C. Scott) - um sujeito que tem aquele tipo de arrogância militar, que esconde sua mais completa mediocridade sob o véu da suposta liderança - e o embaixador russo (um Peter Bull abusando do estereótipo). Após uma discussão quase infantil, um cai sobre o colo do outro, sendo repreendidos na sequência por Muffley: "senhores, vocês não podem brigar aqui, este é o salão de guerra".

Olhando em perspectiva essa pode parecer, atualmente, uma piada apenas boba. Mas também foi a forma que Stanley Kubrick escolheu para debochar da relação quase pornográfica entre esses homens - no caso, esses militares sempre prontos a vestir a farda e atirar para salvar a sua Pátria, nem que para isso morram 20 milhões de pessoas desnecessariamente (imagina, poderiam ser 150 milhões) - e a guerra. Sim, em 1963 já decorriam quase 20 anos da Guerra Fria, que colocava frente à frente o Ocidente e o bloco soviético - um impasse entre duas superpotências que mediam forças no abstrato e em estratégias como a de colocar o medo na cabeça do "inimigo" como forma de desencorajá-lo a atacar. Em uma época em que o escárnio (e o meme) estavam bem longe de pautar o debate, não dá pra negar que foi uma jogada ousada. Que talvez tenha assustado as plateias, especialmente pela cara de pau descarada em tirar sarro de paranoias comunistas (sim, sempre elas) e de outros delírios bélicos.


 

Aliás, nesse sentido, alguns temas parecem tão atuais, que mais parecem saídos de algum zap bolsonarista, ou fruto de alguma teoria conspiratória aleatória propagada por incels de extrema direita que passam o dia nas profundezas da web. Em certa altura o general que leva o sugestivo nome de Jack D. Ripper (Sterling Hayden) explica ao capitão Mandrake (o segundo papel de Sellers), seu colega em uma base militar, sobre como os soviéticos estão utilizando a fluoretação da água como uma estratégia bélica em seu favor. "Esta é a trama comunista mais perigosa que já tivemos de enfrentar", vaticina Jack a um incrédulo Mandrake, dando a entender que todos os seus problemas, desde a sensação de cansaço (e de falta de apetite sexual), até um certo vazio existencial, são efeitos da água batizada. "Você já percebeu que eles não tomam água, somente vodca?", pergunta. Sim, se hoje em dia um delírio do tipo não faria feio em meio a blocos de debates sobre agenda globalista, sósias do Lula, chip chinês na vacina, mamadeira de piroca e antenas Haarp, talvez não seja por acaso.

Porque o caso é que talvez só rindo pra gente conseguir dar conta. Já era assim na década de 60 e segue sendo hoje em dia e, em tempos tão nervosos como os que vivemos - de iminência de Terceira Guerra, de crise de refugiados, de desastres climáticos, de ascensão da extrema direita, de tecnologia desenfreada e de pandemia -, não deixa de ser interessante notar como a comédia de Kubrick segue irresistivelmente atual. "A paz é a nossa profissão" é a frase que se vê em um cartaz fixado nas paredes de uma base militar que é atacada por aqueles que deveriam estar do mesmo lado das trincheiras. Para o sinistro Dr. Strangelove do título (novamente Sellers) as disputas por poder que podem levar a explosão de uma Máquina do Juízo Final - uma ogiva nuclear de ativação automática - podem ser o caminho para a solução eugenista. Na teoria do cientista, que parece ter um certo pendor para o nazismo, a perspectiva de explodir o mundo pode abrir a brecha para um plano de supremacia branca em que cada homem teria direito à dez mulheres ("mas elas terão que ser bem escolhidas", lembra um dos idosos decrépitos da Sala de Guerra). 

 

 

Enquanto esses ineptos decidem sobre o que acontecerá no século seguinte - e que pode estar ao alcance de um botão -, um grupo de caipiras, com direito a sotaque sulista e tudo e uma Bíblia minúscula que também conta com expressões russas, é literalmente enviado pra morte. Tudo isso depois de um equívoco de Ripper que subverte os protocolos enviando aviões para um ataque aéreo aos "vermelhos". Há uma história interessante que está n'O Livro do Cinema sobre a intenção que Kubrick tinha de que a cena final fosse uma guerra de tortas entre aqueles homens, no estilo pastelão. Mas ele mudou de ideia e substituiu a sequência pela da explosão das ogivas nucleares. "Era importante que o público soubesse que, por mais caricatos e palhaços que aqueles sujeitos parecessem, eles eram de fato perigosos". O resultado dessa poderosa combinação conferiria ao projeto três indicações ao Oscar - Filme, Diretor, Roteiro e Ator (Sellers). E pavimentaria ainda o caminho para que Kubrick alcançasse grande fama entre os fãs de cinema, com obras-primas, como, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) e Nascido Para Matar (1987) - que, em alguma medida, revisitariam os mesmos temas. Fundamental.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Cinema - O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant)

De: Anh Hung Tran. Com Juliette Binoche, Benoit Magimel, Galatea Bellugi e Bonnie Chagneau-Ravoire. Drama, França, 2023, 135 minutos.

"Em casa eu sirvo o tipo de comida que conheço a história por trás". (Michael Pollan)

Vamos combinar que em tempos de IFood, de comida congelada e industrializada, de alimentação apressada (e sem graça) e de paladar infantil que via de regra é baseado em Nutella e leite ninho, assistir a um filme afetuoso e poético como O Sabor da Vida (Le Passion de Dodin Bouffant) é uma espécie de alento. Uma frase atribuída ao escrito Mia Couto nos lembra que "cozinhar não é um serviço e sim uma forma de amar os outros". E na obra de Anh Hung Tran - do ótimo O Cheiro do Papaia Verde (1993) - essa expressão parece elevada à máxima potência, especialmente ao nos fazer lembrar da importância da comida feita em casa, em toda a sua glória. Sim, aqui e ali pode haver um aspecto meio elitista nesse combo que envolve alta gastronomia luxuriante e cenários deslumbrantes, como aqueles que vemos na obra. Mas, honestamente, é meio difícil resistir.

Tanto é que a primeira meia hora do filme quase se assemelha a um documentário sobre as origens da alimentação, filmado em algum ponto da Europa. Claro, não fosse o fato de estarmos diante de uma Juliette Binoche sempre magnética - aqui ela vive a cozinheira Eugenie, que trabalha há mais de 20 anos para o chef gourmet Dodin Bouffant (Benoit Magimel), em seu belo casarão da França rural do fim do século 19. De forma quase ritualística, Eugenie e Dodin preparam, na companhia da assistente de cozinha Violette (Galatea Bellugi) e da aprendiz Pauline (Bonnie Chagneau-Ravoire), uma lauta refeição com peixes, carnes vermelhas, molhos, vegetais frescos e sobremesas pornograficamente vistosas - tudo encenado de forma viva, aproveitando da melhor forma as cores contrastantes da madeira e das matérias-primas elaboradas. Como se fosse um coletivo de dança com coreografias bem demarcadas, o quarteto de reveza pelo ambiente, num tipo de preparação exaustiva, mas prazerosa, que mais tarde será oferecida para um grupo de amigos de Dodin.


 

É tudo bonito e elegante, requintado em sua simplicidade, seja nos móveis rústicos, nos fogões campesinos, nos utensílios rudimentares  - tudo de forma a mexer com absolutamente todos os nossos sentidos. Não se trata apenas de uma experiência visual. Os sons nos conectam, os aromas e sabores parecem saltar da tela - aliás, nos fóruns de internet, vi vários fãs da obra afirmando que não era uma boa ideia ir para a sessão com fome. Ainda mais em shoppings, onde muitas vezes as opções gastronômicas se baseiam em fast foods e alternativa rápidas (ou pré-prontas). Lá pelas tantas, chega à propriedade de Dodin, um jovem com um recado: há um príncipe das redondezas, que gostaria de lhe convidar para um jantar. Dodin, contra todas as possibilidades, aceita o convite. Ainda que precise lidar com questões internas, como a paixão secreta por Eugenie (que o homem tem dificuldade em formalizar, ainda que ambos se gostem muito) e a falta de apoio dos pais de Pauline, que acabam chamando ela de volta para a casa, após um período.

Em linhas gerais esse é um filme simplíssimo, mas de uma beleza quase ecumênica, elegíaca. Nesse sentido, outras artes parecem se mesclar como forma de fortalecer a metáfora para o amor, para o afeto. Quando Dodin cria coragem pra pedir Eugenie em casamento, ele brinca sobre o fato de ambos estarem casando no "outono de suas vidas", o que é a deixa para uma série de frase belíssimas e alegóricas sobre a vida em si - e de como saímos da primavera de nossas almas quando nascemos, para o inverno do fim quando nos aproximamos do ocaso. Eugenie nega tudo isso, e quer que sua vida seja um "verão permanente", mesmo que ambos estejam na casa dos cinquenta anos. É difícil não se emocionar - e de pensar como a paixão e a lealdade a alguém podem fornecer um sustento semelhante ao proporcionado pela alimentação. Com ambas fazendo conexões entre nossos órgãos - do coração ao cérebro, passando pelo estômago, pelo esôfago e outros. Fazer um filme simples mas que nos conecte não deixa de ser uma arte. Assim como sempre será uma refeição bem feita, bem elaborada - por mais modesta que seja.

Nota: 8,5


quinta-feira, 9 de maio de 2024

Lado B Classe A - Keane (Hopes ans Fears)

Sim, a gente sabe que hoje em dia Somewhere Only We Know virou sinônimo de cover de banda folk de branquelo que toca em formaturas e casamentos. Ou mesmo de trilha sonora de comercial de TV de gosto duvidoso. Mas, acredite, essa canção que ainda surge aqui e ali na programação da rádio light que parece meio parada no tempo, foi lançada há 20 anos pelo Keane. VINTE ANOS. Sim, não parece que já se vão duas décadas desde que Hopes and Fears, o disco de estreia dos britânicos, veio ao mundo. E, vá lá, talvez fossem tempos muito simples aqueles em que um grupo composto apenas por um vocalista (Tom Chaplin), um pianista e tecladista (Tim Rice-Oxley) e um baterista (Richard Hughes) conseguisse alcançar algum sucesso. Mas foi o que aconteceu naquele distante 2004 - a despeito da nota baixíssima concedida pela Pitchfork e das inadequadas comparações com o Coldplay (até mesmo porque, vamos combinar, o Keane é muito melhor).

Os detratores gostam de falar dos exageros dramáticos, eventualmente excessivos - que parecem elevar toda e qualquer canção a uma espécie de catarse catapultada por um refrão sempre voluptuoso, entoado em um falsete milimetricamente calculado de Chaplin. E, assim, esquecem a melhor parte: a de que o Keane faz música direta, sem firulas, cantando coisas do coração que só nas aparências soam óbvias. Com tudo se projetando maior do que parece, entre pontes bem posicionadas e estrofes magnéticas, capazes de transformar a voz suavemente vigorosa do vocalista em algo maior do que a vida. Tomemos como exemplo o single This Is The Last Time, um dos grandes momentos do álbum. Em entrevistas de divulgação Rice-Oxley explicou que ela é uma canção sobre "sentir uma enorme quantidade de afeto por alguém e, no entanto, não ter aquela faísca mágica que faz alguém se sentir apaixonado". É sobre ter um vínculo com alguém, gostar da pessoa, mas mesmo assim ir embora. 

 


 

E, vamos combinar, que essa atmosfera comovente, quase teatral e de romance torto - de se sentir confortável com alguém e não querer machucar essa mesmo pessoa ao simplesmente deixar essa pessoa pra trás - que se sobressai no conjunto, parece tornar tudo melhor. Ou seja, é o contrário do que dizem os críticos, justamente porque a emoção parece se esparramar da alma. Dos sintetizadores cheios de camadas. Dos vocais épicos. Sim, são músicas de amor, repletas de versos sobre perdas, incertezas, medos, frustrações. Mas onde na música popular que a coisa não foi assim? Onde, no trabalho de uma Taylor Swift ou de uma Olivia Rodrigo que as coisas do coração não ganharam corpo? Onde que uma música linda como She Has No Time parecerá menor, só porque os versos sobre amores não correspondidos soam em alguma medida brega ou até meio kitsch (Você acha que seus dias são comuns / E ninguém nunca pensa em você / Mas somos todos iguais)?

Ás vezes eu me pergunto se haveria uma segunda chance pro Keane - ao menos em termos de crítica - se, paradoxalmente, esse disco fosse lançado nos dias de hoje e não vinte anos atrás. Se não houvessem as inevitáveis comparações com Clocks ou com qualquer coisa que um Coldplay já acenando para a decadência vinha fazendo naquele período. Com o britpop já tendo sido devidamente reinventado pelo Radiohead. E com o rock inglês tomando um outro caminho, com a ascensão de coletivos como Franz Ferdinand, o Libertines e o Arctic Monkeys. Vai saber. Ou talvez eles fossem ainda mais odiados em tempos de raiva permanente contra tudo, como os que vivemos hoje. De intolerância, de preconceitos, de guerras, de fortalecimento da extrema direita, de pandemia. Talvez efetivamente fossem tempos mais simples. De se emocionar com Everybody's Changing, Your Eyes Open e Untitled 1. De não ter vergonha de ouvir a todo o volume Somewhere Only We Know. Que hoje em dia nem aquela bandinha cover de jardim florido, consegue estragar. Porque, afinal, sempre que tá tocando eu paro pra ouvir.


Pitaquinho Musical - Iron & Wine (Light Verse)

Desde que surgiu para o mundo há mais de vinte anos com o álbum The Creek Drank the Cradle (2002), o cantor e compositor Sam Beam - o nome por trás do Iron & Wine -, cativou uma legião de fãs com o seu estilo "estou aqui tocando um violãozinho na varanda, enquanto observo o final de tarde bucólico na cidadezinha do interior da Carolina do Sul". Os versos simples mas poderosos, cheios de ruminações simbólicas sobre o ambiente rural - suas famílias, comunidades, natureza, costumes e crenças -, sempre representaram uma fortaleza, o que seria reforçado por obras-primas do folk pop como Our Endless Numbered Days (2004) e, mais ainda, The Shepherd's Dog (2007), talvez o seu melhor disco. Claro que é um clichê dizer que, passados tantos anos desde esses primeiros trabalhos, muita coisa mudou. A música de Beam adquiriu mais elementos e até mais complexidade, e também houve um hiato de sete anos que, agora, é interrompido pelo maravilhoso The Light Verse.


 

Quem acompanha a carreira do Iron & Wine sabe que a sua música é daquelas que acalma a alma, que flui sem pressa em meio a emanações etéreas e uma musicalidade descomplicada, que apaixona já nas primeiras audições. E, em tempos de tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo - avanço da extrema direita, guerras, catástrofes ambientais e um mundo que ainda se recupera de uma pandemia -, não dá pra negar que canções como Taken By Surprise, Tears That Don't Matter, You Never Know e All In Good Time acalentam, envolvem, amparam. Esta última, feita em parceria com Fiona Apple - o que é automaticamente um atestado de qualidade -, versa sobre perseverança em dias difíceis e sobre, enfim, ter paciência. A voz sussurrante e vagarosa do artista, somada ao seu violão acústico nunca pareceram tão necessários. Às vezes tudo o que precisamos é um passo atrás para reconfigurar a rota. Fazendo o que já fazia e de uma forma ainda melhor, o Iron & Wine nos permite isso.

Nota: 8,5


terça-feira, 30 de abril de 2024

Livro do Mês - Klara e o Sol (Kazuo Ishiguro)

Editora: Companhia das Letras, 2021, 338 páginas.

"Clara como a luz do sol / Clareira luminosa nessa escuridão". Devo confessar a vocês que, mais de uma vez durante a leitura de Klara e o Sol - mais recente obra de Kazuo Ishiguro (e meu primeiro contato com o trabalho do escritor japonês) -, pensei na música do Lulu Santos. E não apenas pela óbvia intersecção entre as palavras, ainda que a Klara de Ishiguro seja um nome próprio - no caso é a protagonista do livro, uma espécie de inteligência artificial robótica de última geração, projetada para fazer companhia a seres humanos -, mas também pelo verdadeiro elogio ao astro e a toda a sua potencialidade luminosa. Aliás, não haveria nada de errado se o livro se chamasse "Ode ao Sol", com algum subtítulo aludindo à dor e à solidão em tempos de tecnologias avançadas. Sim, porque o sol aqui é simplesmente o alimento de Klara. É ele que a nutre, mantendo-a estável, ativa e atenta, especialmente na primeira parte, a da "vitrine".

É nas primeiras páginas que a gente conhece um pouco da personalidade curiosa e observadora de Klara - que, como uma espécie de gadget, fica disposta em uma loja que vende esta e outras bugigangas tecnológicas. Acompanhada de sua amiga Rosa, Klara e passa os dias mudando de posição no estabelecimento, de acordo com os humores de sua gerente, enquanto aguarda por algum potencial comprador. Aqui e ali ela observa a rua, os táxis passando, os transeuntes, os prédios, as demais inteligências artificiais e até os equipamentos que fazem o serviço público - especialmente uma máquina apelidada de Cootings, com amplo potencial poluidor. Num grau de fumaceira que chega a quase impedir a entrada dos raios de sol pela fachada da loja. O sol, tão importante para nutrir Klara e as demais inteligências. Em meio a sua rotina, passa a reconhecer padrões, sentimentos, desejos e anseios tipicamente mundanos, o que a fará também aprender sobre suas próprias necessidades.




Todos esses elementos são amplificados na segunda parte da obra, quando Klara é adquirida por Josie, uma adolescente de 14 anos que, em companhia de sua mãe, Chrissie, mais de uma vez "namora" a inteligência artificial na vitrine da loja. Na propriedade da família, que parece ficar em uma área rural, já que é possível enxergar da janela principal o celeiro do vizinho (o senhor McCain) - uma estrutura que fica em um topo de morro junto à vegetação rasteira -, Klara tentará se enturmar não apenas com Josie e seus amigos, mas também com o vizinho da jovem, Rick, que parece ser seu melhor amigo e, vá lá, talvez até um interesse romântico. Só que o comportamento bastante estranho de Chrissie e também da mãe de Rick, a senhora Helen, fará com que a protagonista perceba que há algo ali que não está bem certo. Mais do que isso, há segredos familiares que talvez exijam de Klara uma mudança de rota que quebrará os paradigmas e até as perspectivas futuras daquela família, que é completada pela empregada doméstica Melania e por Paul, o pai de Josie.

Um dos traumas que virão à tona envolve o trágico falecimento de Sal, a irmã mais nova de Josie - que, de forma estranha, já teria sido vista na propriedade, no passado. E, pelos olhos de Klara será possível perceber como, diante de tantas revelações de impacto nesse cenário conturbado, ela reflete de forma arguta sobre a natureza humana e a respeito daquilo que nos move - com a protagonista sendo uma figura solidária, empática e calorosa com os demais. O que a torna capaz de estabelecer relações sólidas, profundas e que se adaptam às circunstâncias - especialmente quando ela faz uma triste descoberta sobre Josie. Ao cabo, Klara e o Sol - que será adaptado para o cinema por Taika Waititi em filme estrelado por Amy Adams e Jenna Ortega -, é um livro emocionante e de impecável ternura, que se debruça de forma existencialista sobre o tema da amizade. Para quem gosta de Não Me Abandone Jamais (2005), que eu não li (mas vi o filme), certamente será um prato cheio

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Cinema - La Chimera

De: Alice Rohrwacher. Com Josh O'Connor, Isabella Rossellini, Carol Duarte e Lou Roy-Lecollinet. Drama / Comédia, Itália / França / Suíça, 2023, 131 minutos.

"Você estava sonhando?". Quem acompanha o trabalho da diretora Alice Rohrwacher sabe de sua habilidade na hora de juntar dramas cotidianos com um tipo de fantasia de pegada quase felliniana. Foi assim com longas como As Maravilhas (2014) e Feliz Como Lazzaro (2018) e até com curtas, como no premiado Le Pupille (2022). No recente La Chimera, que está em cartaz nas salas do País, o expediente se repete. Aliás, quem se deter a ler apenas a sinopse disponível em sites de cinema - "um grupo de arqueólogos confronta o mercado negro de artefatos históricos" -, talvez tenha uma noção muito pequena a respeito da experiência. Afinal, aqui temos um filme divertido, provocador, cheio de pessoas complexas e com comportamentos ambíguos - no caso um grupo de ladrões que violam túmulos em um busca de objetos de valor que possam ser contrabandeados no mercado negro. E tudo com uma pegada meio política de contestação, de iconoclastia e de quebra do status quo e que passa longe da banalidade da síntese.

O protagonista da obra é um certo Arthur (Josh O'Connor), um inglês que está justamente retornando para a Itália, após ter passado uma temporada na prisão. Apesar da acalorada recepção de seus parceiros de pilhagens na Itália rural - a ambientação parece ser meio oitentista, o que é reforçado pela fotografia em tons pasteis, e pelos figurinos antiquados (e, eventualmente, exagerados, como nos instantes mais festivos) -, Arthur não parece estar no melhor do seu humor. Principalmente porque ele sente a falta de sua bela Beniamina (Yile Vianello), a ex-namorada cujo paradeiro ninguém sabe muito bem direito. Ainda que sua melhor amiga Flora (Isabella Rossellini), uma bem feitora que é como uma mentora em uma casa cheia de mulheres, garanta que ela vá voltar. Pra piorar, a jovem ainda surge nos sonhos do sujeito, sempre em cenários ensolarados, oníricos, idílicos - o que também reforça o apelo ao realismo fantástico, que é bem típico na filmografia de Rohrwacher.


 

É claro que aqui e ali o espectador mais ligado vai conseguir reconhecer as alegorias que nos conduzem por entre túmulos violados e a busca por objetos e outros elementos que façam a ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Mas em linhas gerais há muito mais para além da metáfora - especialmente pelo carisma quase infinito desse grupo de foras da lei, que são capazes das mais excêntricas estratégias para conseguir consolidar um novo espaço de escavação. Nas horas vagas, talvez pra chamar menos atenção para a sua atividade central, o coletivo ainda funciona como um agrupamento teatral, que leva apresentações de música e dança pelas ruas da Toscana - e nessa hora é meio difícil não reconhecer os signos da obra de Federico Fellini, especialmente A Estrada da Vida (1954), A Doce Vida (1960) e Amarcord (1973), com seus personagens atormentados, que encontram alívio no bom humor mundano acima de tudo e no caráter circense que une os acontecimentos.

É nesse cenário que surgem, por exemplo, a fotógrafa Mélodie (Lou Roy-Lecollinet), que se une ao grupo com algum tipo de interesse que não fica claro, e empregada de Flora, Italia (a brasileira Carol Duarte), que parece não estar a par dos segredos de Arthur, e que mantém seus dois filhos na casa da patroa em segredo. Com uma beleza geral comovente - seja nos ângulos de câmera curiosos, nos planos abertos e nos cenários bucólicos, interioranos - a diretora entrega aqui uma experiência completa de arte, alegre mas cáustica, fragmentada mas coesa. Em alguns momentos os objetivos podem ser tornar intrigantes - como na sequência em que Mélodie simplesmente quebra a quarta parede para realizar um discurso feminista ou na divertidíssima cena em que o grupo encontra um trovador que entoa uma canção que resume à perfeição o comportamento daquele bando de desajustados. Há um clima de conto de fadas no todo, em meio a músicas folclóricas, nostalgia enevoada e mágica no cotidiano. Está no dicionário: quimera pode ser uma esperança de algo difícil de alcançar, uma utopia. Só que, aqui, como cinema, ela é plenamente alcançada.

Nota: 9,0


terça-feira, 23 de abril de 2024

Cinema - 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas)

De: Estibaliz Urresola Solaguren. Com Sofia Otero, Patricia López Arnaiz, Itziar Laskano e Ane Gabarain. Drama, Espanha, 2023, 125 minutos.

"Desde quando você soube que era um menino? Você acha que pode ter havido algo errado quando eu estava na barriga da minha mãe?". 

Se tem uma coisa que me fascina em certos dramas familiares é a capacidade de adicionar complexidade às suas personagens - nunca reduzindo-as a meros estereótipos ou a figuras apenas unidimensionais. Pais que são afetuosos, mas severos, avós que são conservadores, mas que acenam a certo progressismo amoroso em certas pautas, filhos que podem ser rebeldes, mas que buscam apoio entre os seus quando se sentem incompreendidos - nada, afinal, pode ser mais vida real do que isso. Ninguém é perfeito o tempo todo. Somos seres humanos que falhamos, que tentamos acertar e que podemos ter escolhas moralmente questionáveis. E uma obra como 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas), a estreia da diretora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren, entrega esse tipo de experiência a contento o que, diga-se de passagem, adiciona uma boa dose de naturalismo à produção. Como se quase acreditássemos naquelas pessoas que vemos em cena, como seres humanos "de verdade".

Aliás, vamos combinar que essa sensação é reforçada também pela interpretação comovente da jovem atriz mirim Sofia Otero - que, não por acaso, venceria o Urso de Prata no Festival de Berlim do ano passado. A obra, ao cabo, é toda centrada nela - e em seu olhar curioso, destemido, cauteloso e insatisfeito. Em linhas gerais a gente tende a invisibilizar as crianças queer, como se elas não existissem - e num cenário de aumento do reacionarismo e do pânico moral, um filme que aborda o tema, ainda que com a maior delicadeza possível, pode ser inevitavelmente mal recebido (especialmente pelo cidadão de bem da família tradicional). Ainda assim há que se admirar a ousadia da diretora, que quebra esse paradigma ao nos apresentar as tensões e os dilemas da pequena Luzia (Otero), uma menina transgênero de oito anos, que trava uma verdadeira batalha interior na busca por alcançar uma nova identidade - nascida Aitor, ela ainda é tratada como menino por parentes, amigos e outros.


 

"Quando eu crescer vou ser que nem o meu pai? Eu não quero ser que nem ele." Esse é o tipo de frase que Luzia, que na intersecção entre gêneros assume o apelido de Coco, diz para a sua mãe, a exasperada Ane (Patricia López Arnaiz), que funciona como uma espécie de segundo vértice narrativo. No começo do filme ela cruza a fronteira da França - onde mora com seus três filhos, entre eles Aitor/Luzia -, em direção ao País Basco, na intenção de participar de uma cerimônia de batismo, do recém nascido filho de sua irmã. Ane é escultora e obteve uma vaga de emprego em que deverá demonstrar um pouco de suas habilidades - na casa da mãe, Lita (Itziar Laskano), ela aproveitará as ferramentas disponíveis na oficina de seu falecido pai, que também era artista plástico, para tentar algum tipo de inspiração em meio a objetos de metal, mesas improvisadas e muita cera de abelha que, fornecida pela sua tia, a apicultora Lourdes (Ane Gabarain), servirá de matéria-prima para a produção de moldes feitos a partir de peças de gesso.

É nesse ambiente em que transitam muitas pessoas, que Luzia tentará se ambientar, em meio a vizinhas futriqueiras que já a entendem como uma menina - num divertido e comovente paradoxo -, a familiares preconceituosos, que acham que a jovem deve cortar o cabelo para parecer mais com um "menininho", e também a amizades improvisadas, como é o caso justamente da tia avó, Lourdes, que parece ser a mais compreensiva, a mais aberta a ouvir as dúvidas de Luzia (que, como criança, parece ainda incapaz de verbalizar o que sente, de fato). Durante a obra são muitas as alegorias, seja no objeto religioso que, em dado instante desaparece, seja na cauda de uma sereia que funcionará como uma metáfora feminina, até chegar na experiência que envolve as próprias abelhas, seu senso de comunidade e seu ideal de coletividade acima de tudo, sem julgamentos ("existem 20 mil tipos dela, todas belas"). É um filme comovente, de idas e vindas, de câmera próxima aos rostos dos atores e de personagens que se aproximam e se afastam, que brigam, mas se abraçam e que dialogam sobre temas desconfortáveis, daqueles que nem todos talvez estejam preparados pra confrontar - mas que precisarão. O resultado é de uma beleza desconcertante, capaz de lidar com as fronteiras de gênero sem tornar o tema pesado.

Nota: 9,0


sexta-feira, 19 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Tótem (Tótem)

De: Lila Aviles. Com Naíma Sentíes, Montserrat Marañon, Marisol Gasé e Mateo Garcia. Drama, México / Dinamarca / França, 2023, 95 minutos.

Em uma pequena sequência do afetuoso e elegíaco Tótem (Tótem), a protagonista Sol (Naíma Sentíes), uma menininha de apenas sete anos, constroi uma daquelas casinhas tipicamente infantis com as almofadas do sofá da sala da casa de campo do seu avô Roberto (Alberto Amador). É um instante mínimo, mas que evidencia que a pequena talvez esteja buscando algum tipo de refúgio particular, em meio a um mundo exterior em turbulência. Sol é interrompida pela empregada da família, que pede para que ela saia dali - "você ainda vai se machucar", diz ela. Como se ela já não estivesse suficientemente machucada. Sol está na casa do avô para celebrar o aniversário de seu pai, Tona (Mateo Garcia) - uma festa está sendo preparada. Só que há uma nota triste nessa celebração: há a chance de que esta seja a última festa para Tona, que sofre de um câncer terminal. O que faz com que mal tenha motivação para se levantar da cama. Que dirá sair do quarto.

Só que a família está engajada nessa espécie de rito final para Tona. Pode ser que o homem estivesse contrariado em relação a tudo aquilo - está doente, cansado, talvez só quisesse poder ter um pouco de sossego nos seus últimos dias. Ainda assim não deixa de reconhecer o esforço comovente de suas duas irmãs - Nuria (Montserrat Marañon) e Alejandra (Marisol Gasé). A primeira se ocupa de tarefas domésticas e de elaborar um bolo para o irmão, tendo ainda de lidar com a pequena (e mimada) Ester (Saori Gurza), que se pendura nas pernas da mãe, resmunga, sobe na geladeira junto com seu gato (um comportamento adorável ao seu estilo, mas que exaspera Nuria). Já Alejandra tem como tarefa limpar a casa das supostas energias ruins, o que a faz contratar em cima da hora uma dessas terapeutas holísticas meio canastronas, que passam aquela vibe do charlatanismo. Por fim há Roberto, o patriarca, um terapeuta que atende pacientes em meio àquela ambiente confuso, cheio de gente, que beira o caos.


 
 
 
É nesse cenário de muita coisa acontecendo ao mesmo tempo que Sol é deixada por sua mãe, a atriz Lucia (Iazua Larios). Tudo que a pequena quer é poder ver o pai - que a impede de lhe visitar no quarto, por vergonha de sua aparência. Ela fica instigada, entristecida, algo que do alto de seus sete anos tem dificuldade de compreender plenamente. Em meio a construção de casinhas de almofadas na sala e visitas ao depósito onde estão as bebidas e outros produtos, Sol interage com os animais da casa - cachorros, papagaios, passando por caracois e outros - tentando espantar certo tédio. Há algo de amistoso nela, mas também de curioso. De um ambiente a outro a câmera muitas vezes colada nela, fornece uma sensação de claustrofobia. De opressão. Tudo soa meio apertado, truncado, como são muitas vezes as famílias ocupadas, que realizam uma série de atividades ao mesmo tempo (e quem já preparou uma festa de aniversário improvisada ou uma ceia de Natal em família sabe como é esse cenário).

Dirigida por Lila Aviles - em seu segundo filme, depois do ótimo A Camareira (2019) - esta é uma experiência naturalista, amorosa, que apresenta o ser humano como um sujeito que centra sua identidade na coletividade, nas celebrações em grupo, nos cultos e cerimônias religiosas ou sociais. Nascemos para os rituais e com eles também nos vamos. Do começo ao fim, da vida à morte, da saúde à doença, estamos sempre congregados como forma de sacramentar amizades, famílias, coletividades. É daí que parece brotar o ideal alegórico do totem, que dá nome ao filme. Algo reforçado no encontro final, que certamente fica marcado como um dos momentos mais comoventes do cinema neste ano. A gente ri e chora, se emociona, se impacta. Em muitos casos conduzidos pelos olhares e silêncios de Sol, por sua insatisfação ou mesmo pela demonstração de amor entortada. Pela dança e pelas pinturas, pelas artes e pela cultura. É um filme diferente daquilo que estamos acostumados. Ainda que não seja assim tão complexo, tão fora da curva. Tá na Netflix e vale o play.

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Pitaquinho Musical - English Teacher (This Could Be Texas)

Não são necessárias muitas audições de um disco como This Could Be Texas, o aguardado álbum de estreia dos britânicos do English Teacher, para que percebamos como se sobressai nele uma certa "poética do drama" - um tipo de estética que envolve desde vocais pungentes e meio sôfregos, passando pela repetição de versos como mantras e por letras sobre questões sociais, econômicas e políticas salpicadas de citações culturais, até chegar nas melodias que parecem nadar entre o pós-punk, a psicodelia e o dreampop. Sim, a gente admite que dá um certo cansaço saber que temos novamente a melhor banda de todos os tempos da última semana, mas o caso é que é difícil ficar alheio à canções tão especialmente brilhantes, como, por exemplo, You Blister My Paint. Nela tudo é tão perfeito, desde o vocal ao mesmo tempo etéreo e espacial de Lily Fontaine que vai ao encontro da melodia limpa e sofisticada, até chegar à letra enigmática e alegórica sobre a sensação de se sentir ofuscado por alguém que se ama.


 

Outros momentos são mais diretos, como no caso de The World's Biggest Paving Slab, que não faria feio no mesmo bloco musical noventista em que estivessem o Veruca Salt ou o Sleater Kinney, ou qualquer outra do movimento riot - ainda que a letra verse sobre "delírios de grandeza e inferioridade do ponto de vista das celebridades locais de uma cidade pequena". Como não poderia deixar de ser em projetos do tipo, instantes mais urgentes e de mais impacto, se alternam com canções mais minimalistas, que se valem de cordas, pianos e elementos eletrônicos discretos - caso da imperdível Mastermind Specialism, que parece trilha sonora de filme alternativo saído do Festival de Sundance, em que a protagonista se questiona a respeito de suas escolhas de vida (sexuais, religiosas, de trabalho). Canções sobre objetivos não alcançados (Not Everybody Gets to Go to Space), a respeito de estereótipos no mundo da música (R&B) e sobre conservadorismo e sensação de não pertencimento (Albert Road), surgem de forma bem costurada, coesa e com personalidade. Um dos grandes lançamentos do semestre.

Nota: 8,5


Tesouros Cinéfilos - O Mundo de Andy (Man on the Moon)

De: Milos Forman. Com Jim Carrey, Danny DeVito, Paul Giamatti e Courtney Love. Comédia / Drama, EUA / Reino Unido / Japão / Alemanha, 1999, 118 minutos.

 

Hey Andy, did you hear about this one?
Tell me, are you locked in the punch?
Hey Andy, are you goofing on Elvis?
Hey, baby! Are we losing touch?

If you believed they put a man on the moon
Man on the moon
If you believe there's nothing up my sleeve
Then nothing is cool

(Man on the Moon - REM) 

 

"O que é real? O que não é? É isso o que eu faço no meu ato, testar como as outras pessoas lidam com a realidade". Em uma das primeiras sequências de O Mundo de Andy (Man on the Moon), Andy Kaufman (Jim Carrey) se apresenta em um desses clubes de comédia de stand up. Diante de uma plateia desconfiada, encarna um de seus personagens - o Homem Estrangeiro -, que tenta em vão fazer o público rir. Quando ele avisa ser hábil em imitar celebridades, sua inépcia parece ainda mais evidente - ainda assim parece haver algum magnetismo naquele sujeito, com seu sotaque meio carregado, voz tímida, movimentos corporais excêntricos. Não demorará para que o público venha abaixo diante de uma imitação fenomenal de Elvis Presley - que é finalizada com um inesperado thank you, na voz tímida e quase afeminada do Homem Estrangeiro. Todo esse conjunto chama a atenção do famoso produtor George Shapiro (Danny DeVito) que, bom, converteria Kaufman em uma das grandes estrelas de sua geração.

Parte dessa história de ascensão meteórica é vista no filme de Milos Forman, que completa 25 anos de lançamento em 2024. A real é que Kaufman não era assim tão conhecido no Brasil - temos de pensar nos anos 70/80 como um período em que mal e mal a TV a cores chegava por aqui - e, em alguma medida, a produção de 1999 ajudou a jogar alguma luz a essa figura excêntrica e carismática, que encarnava seus personagens em tempo integral - a ponto de não sair deles nos bastidores, fora do palco, o que burlava os limites desse tipo de arte. Na primeira cena com Shapiro, por sinal, Kaufman só sai da pele do Homem Estrangeiro quando percebe estar de fato diante do produtor. Shapiro, aos trancos e barrancos, o colocaria na televisão - fosse em episódios do Saturday Night Live ou mesmo na pele de Latka na sitcom de humor Taxi, que foi exibida pela ABC entre os anos de 78 e 82 (e que era estrelada também por Christopher Lloyd e Judd Hirsch, além do próprio DeVito). Só que, por incrível que pareça, o protagonista abominava esse tipo de comédia. O que o faria colocar uma série de condições para estar nesses projetos.


 

O caso é que toda a excentricidade do sujeito, seu estilo pouco convencional, seu comportamento imprevisível ganhariam força com o trabalho de Carrey - que, como mostra o documentário Jim & Andy (2017) não apenas desejava muito o papel, como tornaria os bastidores da produção caóticos bem ao estilo de Kaufman. O que envolveria a replicação dos métodos do astro, com direito à permanência em seus personagens fora do palco e provocações a colegas de produção com maneirismos e outros exageros (ele era uma grande inspiração para Carrey). Levado às telonas, esse combo transforma a obra de Forman, um diretor respeitado de clássicos como Um Estranho No Ninho (1975) e Amadeus (1984) em uma produção envolvente e intensa, que leva o espectador do riso às lágrimas, especialmente pelo caráter trágico da sua vida como um todo - da dificuldade de aceitação de seu pai, à morte precoce por um câncer. Tudo acompanhado de perto pelo melhor amigo e parceiro de negócios Bob Zmuda (Paul Giamatti, sempre um coadjuvante de luxo) e pela namorada Lynne Margulies (Courtney Love).

Aliás, muitos dos melhores embates envolvem as peripécias de Kaufman e Zmuda, que são confrontadas por Shapiro, que faz de tudo para colocar panos quentes - também para não perder as rédeas, dado o potencial do astro em entreter. "Quem você está querendo divertir? Você mesmo ou o público?", pergunta um exasperado Shapiro na primeira cena em que aparece um certo Tony Clifton, um exótico cantor de salão, dotado de um senso de humor ácido e nada amistoso - alguém, aliás, intencionalmente sem graça e que mais uma vez ultrapassa qualquer limite que possa haver no humor. E, claro, ainda há as abomináveis sessões de luta livre contra as mulheres, com Kaufman se autointitulando "campeão intergênero" - e por mais misógina que essa provocação pareça, ela parece ter como fundo a ideia de debochar do comportamento patético dos lutadores, especialmente os do Sul dos Estados Unidos, com suas batalhas fraudulentas e pendor pra certo amadorismo, que é endeusado pelos rednecks. "São piadas que só tem graça para vocês", desespera-se Shapiro, que ouve como resposta um "eu sempre tenho de estar à frente do público". Em alguma medida é possível afirmar que ele alcançou esse objetivo, com seu senso de humor sem limites e cáustico que, mais adiante, influenciaria uma infinidade de outros nomes, casos de Sacha Baron Cohen e Ricky Gervais.


segunda-feira, 15 de abril de 2024

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Cheiro do Papaia Verde (Vietnã)

De: Tran Anh Hung. Com Lu Man San, Thi Loc Truong, Gerard Neth e Thi Hai. Drama / Romance, Vietnã / França, 1993, 104 minutos.

Vamos combinar que é difícil analisar o tocante O Cheiro do Papaia Verde (Mùi Đu Đủ Xanh), sem levar em conta o aspecto sensorial da obra. Ao cabo, trata-se de um filme pequeno, que parte de um fiapo de história - aliás, como é bastante comum no cinema asiático -, mas que faz o espectador mergulhar em uma ambientação de cores vivas, de cenários bucólicos, de barulhos (mas de silêncios) e até de sabores e de cheiros que parecem saltar da tela. Assim como ocorre no cinema contemplativo de Apichatpong Weerasethakul, temos uma experiência com a sua própria fluidez de tempo. Entre um take e outro, com o uso de travellings, de planos sequência, de gruas e de câmeras próximas ao chão - que emulam o cinema de Yasujiro Osu -, temos uma natureza abundante que abraça os habitantes da vila vietnatima em que se passa a história. Sim, é um filme sobre contrastes sociais, infidelidade, memória, papel da mulher na sociedade, trabalho e tradições, mas é também uma produção naturalista e poética, profunda mas sutil.

O cenário ficcional é um pequeno vilarejo da Saigon do início dos anos 50, portanto um pouco antes da Guerra do Vietnã - ainda que ronde o espaço os toques de recolher e uma certa tensão do ambiente no contexto de outra guerra, a da Indochina. É nesse local que Mui (Lu Man San), uma criança de dez anos, chega para trabalhar como serviçal de uma família rica, mas que enfrenta um período de decadência financeira (as vendas já não estão das melhores e há ainda os episódios de infidelidade do patriarca, que, não bastasse dar suas escapadas, ainda leva a grana do comércio de tecidos). Curiosa e observadora sobre o mundo, Mui atua em trabalhos domésticos gerais, especialmente os que envolvem a preparação de legumes e a elaboração dos pratos da cozinha oriental - em especial aquele feito com o mamão que ainda não está maduro. Aliás, a alegoria sobre uma fruta que ainda verde surge como uma metáfora para a própria Mui, que desbrava os cantos daquela habitação, sendo mais ou menos adotada por aquela família - a matriarca (Thi Loc Truong) perdeu uma filha e parece ver nela uma forma de suprir a ausência.

 


 

Ao mesmo tempo, a protagonista se aproxima dos outros integrantes da família - especialmente o filho mais novo (de três), Tin (Gerard Neth) que costuma atormentá-la com seu comportamento imaturo, perturbador e até ressentido pelas seguidas ausências do pai (Ngoc Trun Tran). Já no andar de cima, a avó (Thi Hai) é uma senhora inválida, viúva, que raramente deixa o quarto que habita. Mui circula pelos ambientes, atende pedidos, encontra vizinhos e amigos, enquanto acompanha a derrocada dos patrões. O que envolverá uma tragédia futura e um salto temporal em que ela surgirá adulta, agora trabalhando como serviçal na casa de um amigo do filho mais velho da família, de nome Khuyen (Hoa Hoi Vuong) - um pianista casado com uma mulher aparentemente fútil, que ele não ama tanto assim. E, bom, a gente mais ou menos imagina o que vai acontecer, em meio a memórias, lembranças - carinhosas ou não - de um ambiente ingênuo, mas de aprendizado e que nos apresenta um País poucas vezes visto em produções que chegam ao Ocidente.

Aliás, esse foi o primeiro filme do diretor Tran Anh Hung, do recente O Sabor da Vida (2023), que, não apenas lhe apresentou para o mundo, como lhe deu notoriedade, com indicações a premiações (entre elas o Oscar) e vitórias no Festival de Cannes (na categoria Câmera de Ouro). Em um momento em que suspenses policiais e comédias mais escrachadas movimentavam a Hollywood dos anos 90, o realizador foi na contramão ao estacionar sua câmera como um meio de mostrar a vida regular, cotidiana do povo vietnatima - seus amores e sonhos, seu comércio, suas famílias, filhos, avós, fazendo uma espécie de contraponto à modernidade. "Eu queria mostrar a humanidade dessas pessoas, que ainda não havia sido vista no cinema", comentou Hung em entrevistas de divulgação, citando ainda que a obra também nascia de imagens que tinha da própria minha mãe, do frescor e da beleza de seus gestos. O resultado é uma experiência extremamente bem coreografada entre arabescos e balaústres, que se mesclam com folhagens verdíssimas, cantos de grilos, formigas e sapos despreocupados, percussões inesperadas, instrumentos de cordas e um todo estimulante, que burla os limites entre o dentro e o fora, o interior e o exterior. Tudo executado de forma inebriante, vívida e bastante fluída.

 

Pitaquinho Musical - Tyla (Tyla)

Quando lançou o single Water, em julho do ano passado, Tyla meio que surgiu para o mundo como uma enxurrada, uma torrente - pra ficar na metáfora aquosa que alude à canção. A música viralizaria no Tik Tok. Alcançaria, com sua energia absurdamente sexy, melodia envolvente e refrão grudento, milhões de visualizações de seu clipe no Youtube - um tipo de trajetória que, em alguma medida, é a de muitas jovens que despontam nesse universo. Só que Tyla ainda tinha o componente adicional de ser alguém de fora dos grandes centros. Desse eixo que parece centralizar tudo nos Estados Unidos e na Europa. Aliás, nativa da África do Sul, trazia para junto de seu hit instantâneo uma série de referências e de elementos de gêneros locais, como o afrobeat e o amapiano - um estilo que mistura jazz, lounge music e deep house e que eu, do alto da minha mais completa ignorância, mal tinha ouvido falar.


 

Mas aí passado todo esse furor, ficou aquela pontinha de dúvida: Tyla seria capaz de sustentar um álbum? De entregar mais do que um hit único? Bom, a chegada de seu disco homônimo comprova que sim. Mesclando pop e R&B com os já citados gêneros sul africanos, a jovem artista apresenta algo que foge do óbvio, em alguma medida. "Amo o meu continente, respeito-o, acredito muito nele. Só quero que as pessoas vejam e sintam o que sinto quando ouço música africana e vejam o que temos para oferecer, sabe?", resumiu no material de divulgação. A disposição para furar a bolha é, de fato, contagiante. As letras, como não poderiam deixar de ser para quem tem apenas 22 anos, se alternam entre o empoderamento feminino, a autoestima de quem exala confiança juvenil e as desilusões amorosas eventuais, tão típicas da juventude. Só que o combo geral é abusadamente saboroso, como comprovam outras ótimas canções, casos de Truth or Dare, ART e Jump. Difícil ficar alheio.

Nota: 8,5


sexta-feira, 12 de abril de 2024

Cine Baú - Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence)

De: John Cassavetes. Com Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper e Katherine Cassavetes. Drama, EUA, 1974, 155 minutos.

"Ninguém quer ver uma mulher louca de meia idade". Uma das melhores histórias de bastidores da Hollywood dos anos 70 envolve justamente a obsessão do diretor John Cassavetes em tentar levantar fundos que possibilitassem o financiamento de Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence) - obra estrelada por Gena Rowlands e Peter Falk, que, hoje, é considerada um clássico. Em alguma medida, dado o contexto da época, até não era difícil compreender o receio dos produtores. Um filme sobre uma dona de casa - uma mulher contemporânea tão afetuosa e carismática, quanto instável e irritadiça - abalada do ponto de vista emocional, que entra em uma espiral de decadência também por conta do consumo excessivo de álcool, talvez não fosse realmente algo muito atrativo. Tudo isso em um contexto de guerras - tanto a Fria quanto a do Vietnã -, e de incertezas gerais em questões políticas, econômicas, sociais, culturais. Uma mulher "louca", de meia idade? Não, obrigado.

Mas Cassavetes persistiu. Mais do que isso, hipotecou a própria casa e pegou dinheiro emprestado de familiares e amigos - entre eles o próprios Peter Falk, que estrela a produção ao lado de Rowlands (que era esposa do diretor) - para conseguir levar à produção para a telona. Hoje, quando se olha para trás e se vê o sucesso de público e de crítica do projeto - com direito à indicações ao Oscar e prestígio em listas de melhores internacionais -, não se imagina toda essa turbulência por trás das câmeras. Quer dizer, turbulência talvez não seja a palavra certa e, sim, esforço. De todos da equipe. Que tornariam o drama doméstico de Cassavetes em um dos mais impactantes retratos da corrosão familiar decorrente da instabilidade emocional - e de como o foro íntimo pode ser muito mais complexo do que se imagina. Ao cabo, talvez a Mabel de Gena Rowlands não seja a vilã da história. Longe disso. Ela está muito mais para uma vítima: das circunstâncias, do patriarcado, de um sistema que a impede de ser um espírito livre, talvez como ela desejasse. É uma elaboração de personagem única.


 

Em uma das mais inesquecíveis sequências da obra, Nick (Falk), leva uma dezena de colegas de trabalho - ele é um operário da construção civil - para a sua casa, sem avisar Mabel de antemão. E isso depois de dar um "bolo" na esposa por precisar fazer hora extra, após o vazamento de um cano de um bairro da cidade (o que obriga o homem a trabalhar justamente no turno em que ambos haviam combinado de jantar juntos, a dois, já que os filhos iriam passar a noite na casa da mãe dela). Só que mesmo à contragosto, Mabel se mantém afável, faz espaguete para os homens, procura conversar com todos, mostra interesse pelas suas vidas. Elogia-os - pela aparência, pelos esforços. Mabel, com seu estilo caloroso, quase sedutor, parece impactar a todos ali. O que faz com que Nick se sinta desconfortável, iniciando uma série de pequenos conflitos, que evoluirão para outros comportamentos tidos como estranhos, povoados por ansiedades e nervosismos, e que "obrigarão" o homem a tomar uma atitude mais drástica.

Diferente do que ocorre em outros filmes sobre conflitos domésticos, aqui temos um diretor que utiliza os longos planos sequência, os diálogos cheios de detalhes importantes para a narrativa e as interpretações naturalistas e repletas de carisma como forma de fortalecer e dar densidade à experiência. Em muitos casos, as cenas podem ser até exaustivamente longas, intensas, com o ritmo se alternando entre a doçura inesperada e a fúria intempestiva (às vezes com uma chegando segundos depois da outra, como no caso da já citada sequências do jantar). Ainda assim, com mais de 2h30 de duração, o projeto jamais perde o rumo naquilo que se propõe: eviscerar as fraturas do tecido social e as angústias de uma mulher que precisa lidar com uma sociedade machista e castradora, com pendor para misoginia e que é incapaz de compreender seus interesses e desejos. Sim, pode ser simplista e talvez Mabel precisasse efetivamente de tratamento psiquiátrico - uma coisa não anula a outra. Mas Nick compreenderá a duras penas que sua mulher tão fragilizada emocionalmente talvez seja apenas um reflexo de um contexto maior, em que os papeis de gênero se confundem. O que se evidencia aqui é a vida real. Com suas frustrações, felicidade fragmentada, memórias afetivas quase simplistas e um desejo de libertação não se sabe bem de quê. Essencial.


quinta-feira, 11 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Yannick

De: Quentin Dupieux. Com Raphaël Quenard, Blanche Gardin, Pio Marmaï e Sébastien Chassagne. Comédia, França, 2023, 66 minutos.

Ficou mais ou menos conhecida a história ocorrida no começo do ano passado em Portugal quando a atriz performática Keyla Brasil interrompeu uma sessão de teatro da peça Tudo Sobre Minha Mãe - baseada no filme de Pedro Almodóvar - para protestar pelo fato de uma das personagens trans, a Lola, ser interpretada por um ator hétero do sexo masculino. Na ocasião, Keyla subiu ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, sem roupa, para reivindicar representatividade trans. Aquilo que poderia ser apenas uma ocorrência excêntrica, surtiu efeito: a peça voltou a entrar em cartaz com Lola passando a ser interpretada pela atriz trans Maria João Vaz. Aliás, esta não foi a única vez que o Teatro São Luiz foi palco (literalmente) de interrupções. Também no ano passado, o coletivo Climáximo interrompeu a peça Europa para intervir sobre seu significado. Especialmente na atual conjuntura do mundo perante a crise climática.

Enfim, nos tempos atuais - de tecnologia desenfreada e com o público em geral tendo condições de opinar sobre absolutamente tudo a qualquer momento e agora -, talvez ocorrências do tipo se tornem cada dia mais normais. Hoje em dia, quanto maior a base de fãs de determinado produto cultural, mais esse grupo parece se sentir à vontade para, literalmente, construir certas obras junto com os artistas. Sejam eles diretores, escritores, músicos. Em muitos casos basta vazar uma imagem, um frame, um traço, uma palavra ou o que quer que seja de um filme, de um disco, de um livro, ou até de um vídeo de Youtube ou de um reels no Instagram, para os apreciadores se apressarem a comentar MUITO nas redes sociais - muitas vezes com viés crítico, claro. Anos atrás, viralizou um vídeo do Chico Buarque descobrindo o "carinho da audiência". Hoje em dia, aquela cena em que o Marshall McLuhan dá as caras no filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), de Woody Allen, para simplesmente confrontar um detrator de suas publicações parece a cada dia mais convencional. E como se lida com isso? Mais do que isso, o público chega a ter razão em certos casos? Esse debate que retira o espectador da apatia tem sentido?


 

Quando a gente assiste a um filme ruim não temos muito o que fazer: resta aceitar, levantar da cadeira, ir pra casa, reclamar no Twitter, e torcer pra que a próxima experiência seja melhor. Os fãs de obras baseadas em quadrinhos parecem se sentir assim o tempo todo. A próxima sempre será melhor. Sempre apagará a péssima impressão da anterior. E por aí vai. Mas e se fosse possível manifestar a insatisfação em tempo real? Reivindicar uma melhoria ou uma correção de rumo enquanto a coisa se desenrola? É mais ou menos isso que propõe o curioso Yannick, mais recente projeto do sempre provocativo diretor francês Quentin Dupieux (do clássico cult Rubber, 2010). Famoso pelos seus filmes minimalistas, metalinguísticos e autorreflexivos, aqui o realizador nos apresenta ao jovem Yannick do título (vivido por Raphaël Quenard), um segurança de estacionamento que resolve simplesmente interromper uma peça teatral de gosto duvidoso, que ele acompanha ao lado de meia dúzia de gatos pingados na capital Paris, para exigir dos atores uma explicação sobre aquilo que ele considera uma afronta.

"Ao invés de vocês me fazerem esquecer meus problemas, vocês os estão aumentando", comenta o rapaz, de pé, diante da plateia perplexa, atônita. À todos do local, avisa que precisou pedir folga de seu turno para assistir à peça - que somados os tempos de condução, serão mais duas horas perdidas entre a ida e a volta. Pra algo que tem lhe deixado melancólico, insatisfeito, aturdido. A solução? De posse de um revólver, Yannick se propõe a reescrever a peça, mantendo os atores e o público como reféns, trazendo para o texto um material mais direto, menos denso, mais cotidiano ou mesmo leve. Mais paradoxalmente afetivo. O que resultará em um ato final comovente e, em alguma medida, surpreendente. Ao cabo, esse é um projeto pequeno - aliás, os filmes de Dupieux dificilmente alcançam uma hora e meia de duração, sendo bastante diretos em seus argumentos -, que joga alguma luz sobre temas como pedantismo cultural, passividade do público perante experiências indigestas de "arte", mediocridade pequeno-birguesa e até sobre possibilidades de criação cultural coletivas, com atenção a outras vozes, outras vivências, outras realidades. Quem já se sentiu "refém" de um espetáculo ruim se sentirá contemplado, nessa alegoria à moda Pirandello, que nos apresenta ao mais improvável dos anti-heróis.

Nota: 8,0


terça-feira, 9 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Descanse em Paz (Descansar en Paz)

De: Sebastián Borensztein. Com Joaquin Furríel, Griselda Siciliani, Gabriel Goity, Lali Gonzalez e Luciano Borges. Drama / Suspense, Argentina, 2023, 105 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Quem acompanha a carreira do diretor argentino Sebastián Borensztein sabe que a parte mais famosa de sua filmografia envolve produções de comédia, com aquele senso de humor meio nonsense em que a gente ri agora, pra chorar em seguida - como fica evidente nos ótimos Um Conto Chinês (2011) e, mais recentemente, em A Odisseia dos Tontos (2019). Com Descanse em Paz (Descansar en Paz), ele faz uma incursão por um cinema mais sério, enveredando pelo drama familiar com pitadas de thriller policial. E o resultado da obra, que está disponível na Netflix, é bastante satisfatório. Aqui, ao cabo, temos a experiência de entretenimento de fórmula, com boas reviravoltas e um senso de tensão permanente, que deixa a coisa toda meio imprevisível. É, em alguma medida, o filme bom de ver. Aquele que muitas vezes você precisa para relaxar, depois de um dia de trabalho.

Na trama, Sergio Dayan (o ótimo Joaquin Furríel) é um empresário que já foi bem sucedido, mas está afundado em dívidas - o que não o impede de manter certos luxos. No começo do filme o vemos investindo em presentes caros e numa festa voluptuosa de aniversário para a sua filha adolescente. Só que isso não pega nada bem não apenas para os empregados de sua pequena fábrica, que cobram os salários atrasados e ameaçam paralisar as atividades, mas também para os agiotas que andam rondando o bairro - um pessoal meio barra pesada, que tem na figura de Hugo Brenner (Gabriel Goity) o seu principal representante. Hugo lhe dá uma semana para quitar a dívida, sob pena de ele sofrer severas consequências - o que o faz temer pela vida da família, especialmente da esposa Estela (Griselda Siciliani) e dos filhos. Pra ganhar tempo, o protagonista consegue vender uma casa de campo, o que lhe permitirá saldar parte do que deve.

 


Só que, por uma daquelas coincidências do destino, Sergio acaba sendo uma das vítimas de uma explosão, que ocorre próximo ao local em que ele pretendia entregar o dinheiro. Dado como morto pelas autoridades policiais locais, o homem vê aí a oportunidade perfeita para simplesmente desaparecer do mapa - desviando sua rota para o Paraguai onde, com nova identidade e um passado que ninguém conhece, reiniciará sua vida. O abandono à família se dá em partes: como um cadáver nunca encontrado, ele possibilitará à Estela acessar um volumoso seguro de vida, que permitirá à ela e aos filhos recomeçar a vida. Pagar as pendências. E também se ver livre dos perigos da agiotagem. Tudo parece mais ou menos bem até que, bom, a vida dará as suas voltas e as pendências do passado poderão ressurgir quando Sergio menos esperar. E mais: como um sujeito sozinho no Paraguai, por quanto tempo ele aguentará? Qual o preço desse isolamento forçado?

Ao cabo esse não é um filme que busca muitas respostas, nem se pretende ser excessivamente filosófico na análise das relações familiares - por mais que as falhas do capitalismo inevitavelmente apareçam no centro da narrativa (as crises argentinas que vêm e vão costumam ser matéria-prima das produções de Borensztein, como é o caso do já citado A Odisseia dos Tontos). Aqui a gente se apega muito mais a tensão da coisa toda, que é reforçada pelos closes no rosto do protagonista, que parece envelhecer uns trinta anos quando ocorre um salto temporal (méritos para a maquiagem e para a interpretação cheia de sutilezas e de silêncios de Furríel). Em alguns fóruns muitas pessoas se queixaram do final excessivamente dramático e violento. Mas não deixa de ser o desfecho perfeito para uma história de amor acima de tudo - e a sequência que envolve um singelo colar no pescoço de uma das personagens, é daqueles que nos comove sem precisar muito.

Nota: 7,5


Pitaquinho Musical - Vampire Weekend (Only God Was Above Us)

Preciso ser honesto com vocês: toda vez que o Vampire Weekend anuncia um novo disco, eu penso que a coisa vai desandar. E não é que eu não confie no potencial e na capacidade de Ezra Koenig e companhia - talvez eles "só" sejam a melhor banda alternativa do mundo -, mas é que não deve ser fácil manter a qualidade do trabalho por tanto tempo. Especialmente quando se lançam obras-primas como Modern Vampires of the City (2013). Só que a banda parece não ter pressa. São poucos os álbuns no catálogo - tanto que o recém chegado Only God Was Above Us é apenas o quinto da carreira e chega depois de um hiato de cinco anos desde o harmonioso Father of the Bride (2019). E dando tempo ao tempo, o coletivo parece sempre entregar o seu melhor. Seja na sonoridade - estridente, amplificada, complexa mas agradável e sofisticada do ponto de vista instrumental -, ou nas letras alegóricas e profundas, que emergem de cenários domésticos e de dilemas mundanos para uma análise do todo.


 

Tomemos como exemplo o single Capricorn - seguramente uma das melhores canções do catálogo dos nova iorquinos. Os versos chegam a ser quase prosaicos a respeito do suposto absurdo que é simplesmente nascer no final do ano - no dia 30 ou 31 de dezembro -, já no limiar de um ano que está para iniciar (Capricórnio / O ano que você nasceu / Terminou rápido / E o próximo não foi o seu / Velho demais para morrer jovem / Jovem demais para viver sozinho), o que impossibilitaria uma experiência mais plena na conjunção com o ano nascido. E como se já não bastasse essa ruminação curiosa sobre passado e futuro, passagem do tempo e identidade ou a respeito da dicotomia entre juventude e maturidade, há ainda como base uma melodia esganiçada, sibilante, quase industrial, mas também delicada e que jamais se torna cansativa. Pianos que se espalham com graça (Hope), guitarrinhas adocicadas (Pravda), rockões modernos e pegajosos (Classical) que se alternam com instantes mais comedidos (Mary Boone), enfim, uma construção moderna, riquíssima e com uma fluidez própria. É álbum pra dar play repetidamente. E descobrir algo novo a cada nova audição.

Nota: 9,5