terça-feira, 30 de abril de 2024

Livro do Mês - Klara e o Sol (Kazuo Ishiguro)

Editora: Companhia das Letras, 2021, 338 páginas.

"Clara como a luz do sol / Clareira luminosa nessa escuridão". Devo confessar a vocês que, mais de uma vez durante a leitura de Klara e o Sol - mais recente obra de Kazuo Ishiguro (e meu primeiro contato com o trabalho do escritor japonês) -, pensei na música do Lulu Santos. E não apenas pela óbvia intersecção entre as palavras, ainda que a Klara de Ishiguro seja um nome próprio - no caso é a protagonista do livro, uma espécie de inteligência artificial robótica de última geração, projetada para fazer companhia a seres humanos -, mas também pelo verdadeiro elogio ao astro e a toda a sua potencialidade luminosa. Aliás, não haveria nada de errado se o livro se chamasse "Ode ao Sol", com algum subtítulo aludindo à dor e à solidão em tempos de tecnologias avançadas. Sim, porque o sol aqui é simplesmente o alimento de Klara. É ele que a nutre, mantendo-a estável, ativa e atenta, especialmente na primeira parte, a da "vitrine".

É nas primeiras páginas que a gente conhece um pouco da personalidade curiosa e observadora de Klara - que, como uma espécie de gadget, fica disposta em uma loja que vende esta e outras bugigangas tecnológicas. Acompanhada de sua amiga Rosa, Klara e passa os dias mudando de posição no estabelecimento, de acordo com os humores de sua gerente, enquanto aguarda por algum potencial comprador. Aqui e ali ela observa a rua, os táxis passando, os transeuntes, os prédios, as demais inteligências artificiais e até os equipamentos que fazem o serviço público - especialmente uma máquina apelidada de Cootings, com amplo potencial poluidor. Num grau de fumaceira que chega a quase impedir a entrada dos raios de sol pela fachada da loja. O sol, tão importante para nutrir Klara e as demais inteligências. Em meio a sua rotina, passa a reconhecer padrões, sentimentos, desejos e anseios tipicamente mundanos, o que a fará também aprender sobre suas próprias necessidades.




Todos esses elementos são amplificados na segunda parte da obra, quando Klara é adquirida por Josie, uma adolescente de 14 anos que, em companhia de sua mãe, Chrissie, mais de uma vez "namora" a inteligência artificial na vitrine da loja. Na propriedade da família, que parece ficar em uma área rural, já que é possível enxergar da janela principal o celeiro do vizinho (o senhor McCain) - uma estrutura que fica em um topo de morro junto à vegetação rasteira -, Klara tentará se enturmar não apenas com Josie e seus amigos, mas também com o vizinho da jovem, Rick, que parece ser seu melhor amigo e, vá lá, talvez até um interesse romântico. Só que o comportamento bastante estranho de Chrissie e também da mãe de Rick, a senhora Helen, fará com que a protagonista perceba que há algo ali que não está bem certo. Mais do que isso, há segredos familiares que talvez exijam de Klara uma mudança de rota que quebrará os paradigmas e até as perspectivas futuras daquela família, que é completada pela empregada doméstica Melania e por Paul, o pai de Josie.

Um dos traumas que virão à tona envolve o trágico falecimento de Sal, a irmã mais nova de Josie - que, de forma estranha, já teria sido vista na propriedade, no passado. E, pelos olhos de Klara será possível perceber como, diante de tantas revelações de impacto nesse cenário conturbado, ela reflete de forma arguta sobre a natureza humana e a respeito daquilo que nos move - com a protagonista sendo uma figura solidária, empática e calorosa com os demais. O que a torna capaz de estabelecer relações sólidas, profundas e que se adaptam às circunstâncias - especialmente quando ela faz uma triste descoberta sobre Josie. Ao cabo, Klara e o Sol - que será adaptado para o cinema por Taika Waititi em filme estrelado por Amy Adams e Jenna Ortega -, é um livro emocionante e de impecável ternura, que se debruça de forma existencialista sobre o tema da amizade. Para quem gosta de Não Me Abandone Jamais (2005), que eu não li (mas vi o filme), certamente será um prato cheio

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Cinema - La Chimera

De: Alice Rohrwacher. Com Josh O'Connor, Isabella Rossellini, Carol Duarte e Lou Roy-Lecollinet. Drama / Comédia, Itália / França / Suíça, 2023, 131 minutos.

"Você estava sonhando?". Quem acompanha o trabalho da diretora Alice Rohrwacher sabe de sua habilidade na hora de juntar dramas cotidianos com um tipo de fantasia de pegada quase felliniana. Foi assim com longas como As Maravilhas (2014) e Feliz Como Lazzaro (2018) e até com curtas, como no premiado Le Pupille (2022). No recente La Chimera, que está em cartaz nas salas do País, o expediente se repete. Aliás, quem se deter a ler apenas a sinopse disponível em sites de cinema - "um grupo de arqueólogos confronta o mercado negro de artefatos históricos" -, talvez tenha uma noção muito pequena a respeito da experiência. Afinal, aqui temos um filme divertido, provocador, cheio de pessoas complexas e com comportamentos ambíguos - no caso um grupo de ladrões que violam túmulos em um busca de objetos de valor que possam ser contrabandeados no mercado negro. E tudo com uma pegada meio política de contestação, de iconoclastia e de quebra do status quo e que passa longe da banalidade da síntese.

O protagonista da obra é um certo Arthur (Josh O'Connor), um inglês que está justamente retornando para a Itália, após ter passado uma temporada na prisão. Apesar da acalorada recepção de seus parceiros de pilhagens na Itália rural - a ambientação parece ser meio oitentista, o que é reforçado pela fotografia em tons pasteis, e pelos figurinos antiquados (e, eventualmente, exagerados, como nos instantes mais festivos) -, Arthur não parece estar no melhor do seu humor. Principalmente porque ele sente a falta de sua bela Beniamina (Yile Vianello), a ex-namorada cujo paradeiro ninguém sabe muito bem direito. Ainda que sua melhor amiga Flora (Isabella Rossellini), uma bem feitora que é como uma mentora em uma casa cheia de mulheres, garanta que ela vá voltar. Pra piorar, a jovem ainda surge nos sonhos do sujeito, sempre em cenários ensolarados, oníricos, idílicos - o que também reforça o apelo ao realismo fantástico, que é bem típico na filmografia de Rohrwacher.


 

É claro que aqui e ali o espectador mais ligado vai conseguir reconhecer as alegorias que nos conduzem por entre túmulos violados e a busca por objetos e outros elementos que façam a ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Mas em linhas gerais há muito mais para além da metáfora - especialmente pelo carisma quase infinito desse grupo de foras da lei, que são capazes das mais excêntricas estratégias para conseguir consolidar um novo espaço de escavação. Nas horas vagas, talvez pra chamar menos atenção para a sua atividade central, o coletivo ainda funciona como um agrupamento teatral, que leva apresentações de música e dança pelas ruas da Toscana - e nessa hora é meio difícil não reconhecer os signos da obra de Federico Fellini, especialmente A Estrada da Vida (1954), A Doce Vida (1960) e Amarcord (1973), com seus personagens atormentados, que encontram alívio no bom humor mundano acima de tudo e no caráter circense que une os acontecimentos.

É nesse cenário que surgem, por exemplo, a fotógrafa Mélodie (Lou Roy-Lecollinet), que se une ao grupo com algum tipo de interesse que não fica claro, e empregada de Flora, Italia (a brasileira Carol Duarte), que parece não estar a par dos segredos de Arthur, e que mantém seus dois filhos na casa da patroa em segredo. Com uma beleza geral comovente - seja nos ângulos de câmera curiosos, nos planos abertos e nos cenários bucólicos, interioranos - a diretora entrega aqui uma experiência completa de arte, alegre mas cáustica, fragmentada mas coesa. Em alguns momentos os objetivos podem ser tornar intrigantes - como na sequência em que Mélodie simplesmente quebra a quarta parede para realizar um discurso feminista ou na divertidíssima cena em que o grupo encontra um trovador que entoa uma canção que resume à perfeição o comportamento daquele bando de desajustados. Há um clima de conto de fadas no todo, em meio a músicas folclóricas, nostalgia enevoada e mágica no cotidiano. Está no dicionário: quimera pode ser uma esperança de algo difícil de alcançar, uma utopia. Só que, aqui, como cinema, ela é plenamente alcançada.

Nota: 9,0


terça-feira, 23 de abril de 2024

Cinema - 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas)

De: Estibaliz Urresola Solaguren. Com Sofia Otero, Patricia López Arnaiz, Itziar Laskano e Ane Gabarain. Drama, Espanha, 2023, 125 minutos.

"Desde quando você soube que era um menino? Você acha que pode ter havido algo errado quando eu estava na barriga da minha mãe?". 

Se tem uma coisa que me fascina em certos dramas familiares é a capacidade de adicionar complexidade às suas personagens - nunca reduzindo-as a meros estereótipos ou a figuras apenas unidimensionais. Pais que são afetuosos, mas severos, avós que são conservadores, mas que acenam a certo progressismo amoroso em certas pautas, filhos que podem ser rebeldes, mas que buscam apoio entre os seus quando se sentem incompreendidos - nada, afinal, pode ser mais vida real do que isso. Ninguém é perfeito o tempo todo. Somos seres humanos que falhamos, que tentamos acertar e que podemos ter escolhas moralmente questionáveis. E uma obra como 20.000 Espécies de Abelhas (20.000 Especies de Abejas), a estreia da diretora espanhola Estibaliz Urresola Solaguren, entrega esse tipo de experiência a contento o que, diga-se de passagem, adiciona uma boa dose de naturalismo à produção. Como se quase acreditássemos naquelas pessoas que vemos em cena, como seres humanos "de verdade".

Aliás, vamos combinar que essa sensação é reforçada também pela interpretação comovente da jovem atriz mirim Sofia Otero - que, não por acaso, venceria o Urso de Prata no Festival de Berlim do ano passado. A obra, ao cabo, é toda centrada nela - e em seu olhar curioso, destemido, cauteloso e insatisfeito. Em linhas gerais a gente tende a invisibilizar as crianças queer, como se elas não existissem - e num cenário de aumento do reacionarismo e do pânico moral, um filme que aborda o tema, ainda que com a maior delicadeza possível, pode ser inevitavelmente mal recebido (especialmente pelo cidadão de bem da família tradicional). Ainda assim há que se admirar a ousadia da diretora, que quebra esse paradigma ao nos apresentar as tensões e os dilemas da pequena Luzia (Otero), uma menina transgênero de oito anos, que trava uma verdadeira batalha interior na busca por alcançar uma nova identidade - nascida Aitor, ela ainda é tratada como menino por parentes, amigos e outros.


 

"Quando eu crescer vou ser que nem o meu pai? Eu não quero ser que nem ele." Esse é o tipo de frase que Luzia, que na intersecção entre gêneros assume o apelido de Coco, diz para a sua mãe, a exasperada Ane (Patricia López Arnaiz), que funciona como uma espécie de segundo vértice narrativo. No começo do filme ela cruza a fronteira da França - onde mora com seus três filhos, entre eles Aitor/Luzia -, em direção ao País Basco, na intenção de participar de uma cerimônia de batismo, do recém nascido filho de sua irmã. Ane é escultora e obteve uma vaga de emprego em que deverá demonstrar um pouco de suas habilidades - na casa da mãe, Lita (Itziar Laskano), ela aproveitará as ferramentas disponíveis na oficina de seu falecido pai, que também era artista plástico, para tentar algum tipo de inspiração em meio a objetos de metal, mesas improvisadas e muita cera de abelha que, fornecida pela sua tia, a apicultora Lourdes (Ane Gabarain), servirá de matéria-prima para a produção de moldes feitos a partir de peças de gesso.

É nesse ambiente em que transitam muitas pessoas, que Luzia tentará se ambientar, em meio a vizinhas futriqueiras que já a entendem como uma menina - num divertido e comovente paradoxo -, a familiares preconceituosos, que acham que a jovem deve cortar o cabelo para parecer mais com um "menininho", e também a amizades improvisadas, como é o caso justamente da tia avó, Lourdes, que parece ser a mais compreensiva, a mais aberta a ouvir as dúvidas de Luzia (que, como criança, parece ainda incapaz de verbalizar o que sente, de fato). Durante a obra são muitas as alegorias, seja no objeto religioso que, em dado instante desaparece, seja na cauda de uma sereia que funcionará como uma metáfora feminina, até chegar na experiência que envolve as próprias abelhas, seu senso de comunidade e seu ideal de coletividade acima de tudo, sem julgamentos ("existem 20 mil tipos dela, todas belas"). É um filme comovente, de idas e vindas, de câmera próxima aos rostos dos atores e de personagens que se aproximam e se afastam, que brigam, mas se abraçam e que dialogam sobre temas desconfortáveis, daqueles que nem todos talvez estejam preparados pra confrontar - mas que precisarão. O resultado é de uma beleza desconcertante, capaz de lidar com as fronteiras de gênero sem tornar o tema pesado.

Nota: 9,0


sexta-feira, 19 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Tótem (Tótem)

De: Lila Aviles. Com Naíma Sentíes, Montserrat Marañon, Marisol Gasé e Mateo Garcia. Drama, México / Dinamarca / França, 2023, 95 minutos.

Em uma pequena sequência do afetuoso e elegíaco Tótem (Tótem), a protagonista Sol (Naíma Sentíes), uma menininha de apenas sete anos, constroi uma daquelas casinhas tipicamente infantis com as almofadas do sofá da sala da casa de campo do seu avô Roberto (Alberto Amador). É um instante mínimo, mas que evidencia que a pequena talvez esteja buscando algum tipo de refúgio particular, em meio a um mundo exterior em turbulência. Sol é interrompida pela empregada da família, que pede para que ela saia dali - "você ainda vai se machucar", diz ela. Como se ela já não estivesse suficientemente machucada. Sol está na casa do avô para celebrar o aniversário de seu pai, Tona (Mateo Garcia) - uma festa está sendo preparada. Só que há uma nota triste nessa celebração: há a chance de que esta seja a última festa para Tona, que sofre de um câncer terminal. O que faz com que mal tenha motivação para se levantar da cama. Que dirá sair do quarto.

Só que a família está engajada nessa espécie de rito final para Tona. Pode ser que o homem estivesse contrariado em relação a tudo aquilo - está doente, cansado, talvez só quisesse poder ter um pouco de sossego nos seus últimos dias. Ainda assim não deixa de reconhecer o esforço comovente de suas duas irmãs - Nuria (Montserrat Marañon) e Alejandra (Marisol Gasé). A primeira se ocupa de tarefas domésticas e de elaborar um bolo para o irmão, tendo ainda de lidar com a pequena (e mimada) Ester (Saori Gurza), que se pendura nas pernas da mãe, resmunga, sobe na geladeira junto com seu gato (um comportamento adorável ao seu estilo, mas que exaspera Nuria). Já Alejandra tem como tarefa limpar a casa das supostas energias ruins, o que a faz contratar em cima da hora uma dessas terapeutas holísticas meio canastronas, que passam aquela vibe do charlatanismo. Por fim há Roberto, o patriarca, um terapeuta que atende pacientes em meio àquela ambiente confuso, cheio de gente, que beira o caos.


 
 
 
É nesse cenário de muita coisa acontecendo ao mesmo tempo que Sol é deixada por sua mãe, a atriz Lucia (Iazua Larios). Tudo que a pequena quer é poder ver o pai - que a impede de lhe visitar no quarto, por vergonha de sua aparência. Ela fica instigada, entristecida, algo que do alto de seus sete anos tem dificuldade de compreender plenamente. Em meio a construção de casinhas de almofadas na sala e visitas ao depósito onde estão as bebidas e outros produtos, Sol interage com os animais da casa - cachorros, papagaios, passando por caracois e outros - tentando espantar certo tédio. Há algo de amistoso nela, mas também de curioso. De um ambiente a outro a câmera muitas vezes colada nela, fornece uma sensação de claustrofobia. De opressão. Tudo soa meio apertado, truncado, como são muitas vezes as famílias ocupadas, que realizam uma série de atividades ao mesmo tempo (e quem já preparou uma festa de aniversário improvisada ou uma ceia de Natal em família sabe como é esse cenário).

Dirigida por Lila Aviles - em seu segundo filme, depois do ótimo A Camareira (2019) - esta é uma experiência naturalista, amorosa, que apresenta o ser humano como um sujeito que centra sua identidade na coletividade, nas celebrações em grupo, nos cultos e cerimônias religiosas ou sociais. Nascemos para os rituais e com eles também nos vamos. Do começo ao fim, da vida à morte, da saúde à doença, estamos sempre congregados como forma de sacramentar amizades, famílias, coletividades. É daí que parece brotar o ideal alegórico do totem, que dá nome ao filme. Algo reforçado no encontro final, que certamente fica marcado como um dos momentos mais comoventes do cinema neste ano. A gente ri e chora, se emociona, se impacta. Em muitos casos conduzidos pelos olhares e silêncios de Sol, por sua insatisfação ou mesmo pela demonstração de amor entortada. Pela dança e pelas pinturas, pelas artes e pela cultura. É um filme diferente daquilo que estamos acostumados. Ainda que não seja assim tão complexo, tão fora da curva. Tá na Netflix e vale o play.

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Pitaquinho Musical - English Teacher (This Could Be Texas)

Não são necessárias muitas audições de um disco como This Could Be Texas, o aguardado álbum de estreia dos britânicos do English Teacher, para que percebamos como se sobressai nele uma certa "poética do drama" - um tipo de estética que envolve desde vocais pungentes e meio sôfregos, passando pela repetição de versos como mantras e por letras sobre questões sociais, econômicas e políticas salpicadas de citações culturais, até chegar nas melodias que parecem nadar entre o pós-punk, a psicodelia e o dreampop. Sim, a gente admite que dá um certo cansaço saber que temos novamente a melhor banda de todos os tempos da última semana, mas o caso é que é difícil ficar alheio à canções tão especialmente brilhantes, como, por exemplo, You Blister My Paint. Nela tudo é tão perfeito, desde o vocal ao mesmo tempo etéreo e espacial de Lily Fontaine que vai ao encontro da melodia limpa e sofisticada, até chegar à letra enigmática e alegórica sobre a sensação de se sentir ofuscado por alguém que se ama.


 

Outros momentos são mais diretos, como no caso de The World's Biggest Paving Slab, que não faria feio no mesmo bloco musical noventista em que estivessem o Veruca Salt ou o Sleater Kinney, ou qualquer outra do movimento riot - ainda que a letra verse sobre "delírios de grandeza e inferioridade do ponto de vista das celebridades locais de uma cidade pequena". Como não poderia deixar de ser em projetos do tipo, instantes mais urgentes e de mais impacto, se alternam com canções mais minimalistas, que se valem de cordas, pianos e elementos eletrônicos discretos - caso da imperdível Mastermind Specialism, que parece trilha sonora de filme alternativo saído do Festival de Sundance, em que a protagonista se questiona a respeito de suas escolhas de vida (sexuais, religiosas, de trabalho). Canções sobre objetivos não alcançados (Not Everybody Gets to Go to Space), a respeito de estereótipos no mundo da música (R&B) e sobre conservadorismo e sensação de não pertencimento (Albert Road), surgem de forma bem costurada, coesa e com personalidade. Um dos grandes lançamentos do semestre.

Nota: 8,5


Tesouros Cinéfilos - O Mundo de Andy (Man on the Moon)

De: Milos Forman. Com Jim Carrey, Danny DeVito, Paul Giamatti e Courtney Love. Comédia / Drama, EUA / Reino Unido / Japão / Alemanha, 1999, 118 minutos.

 

Hey Andy, did you hear about this one?
Tell me, are you locked in the punch?
Hey Andy, are you goofing on Elvis?
Hey, baby! Are we losing touch?

If you believed they put a man on the moon
Man on the moon
If you believe there's nothing up my sleeve
Then nothing is cool

(Man on the Moon - REM) 

 

"O que é real? O que não é? É isso o que eu faço no meu ato, testar como as outras pessoas lidam com a realidade". Em uma das primeiras sequências de O Mundo de Andy (Man on the Moon), Andy Kaufman (Jim Carrey) se apresenta em um desses clubes de comédia de stand up. Diante de uma plateia desconfiada, encarna um de seus personagens - o Homem Estrangeiro -, que tenta em vão fazer o público rir. Quando ele avisa ser hábil em imitar celebridades, sua inépcia parece ainda mais evidente - ainda assim parece haver algum magnetismo naquele sujeito, com seu sotaque meio carregado, voz tímida, movimentos corporais excêntricos. Não demorará para que o público venha abaixo diante de uma imitação fenomenal de Elvis Presley - que é finalizada com um inesperado thank you, na voz tímida e quase afeminada do Homem Estrangeiro. Todo esse conjunto chama a atenção do famoso produtor George Shapiro (Danny DeVito) que, bom, converteria Kaufman em uma das grandes estrelas de sua geração.

Parte dessa história de ascensão meteórica é vista no filme de Milos Forman, que completa 25 anos de lançamento em 2024. A real é que Kaufman não era assim tão conhecido no Brasil - temos de pensar nos anos 70/80 como um período em que mal e mal a TV a cores chegava por aqui - e, em alguma medida, a produção de 1999 ajudou a jogar alguma luz a essa figura excêntrica e carismática, que encarnava seus personagens em tempo integral - a ponto de não sair deles nos bastidores, fora do palco, o que burlava os limites desse tipo de arte. Na primeira cena com Shapiro, por sinal, Kaufman só sai da pele do Homem Estrangeiro quando percebe estar de fato diante do produtor. Shapiro, aos trancos e barrancos, o colocaria na televisão - fosse em episódios do Saturday Night Live ou mesmo na pele de Latka na sitcom de humor Taxi, que foi exibida pela ABC entre os anos de 78 e 82 (e que era estrelada também por Christopher Lloyd e Judd Hirsch, além do próprio DeVito). Só que, por incrível que pareça, o protagonista abominava esse tipo de comédia. O que o faria colocar uma série de condições para estar nesses projetos.


 

O caso é que toda a excentricidade do sujeito, seu estilo pouco convencional, seu comportamento imprevisível ganhariam força com o trabalho de Carrey - que, como mostra o documentário Jim & Andy (2017) não apenas desejava muito o papel, como tornaria os bastidores da produção caóticos bem ao estilo de Kaufman. O que envolveria a replicação dos métodos do astro, com direito à permanência em seus personagens fora do palco e provocações a colegas de produção com maneirismos e outros exageros (ele era uma grande inspiração para Carrey). Levado às telonas, esse combo transforma a obra de Forman, um diretor respeitado de clássicos como Um Estranho No Ninho (1975) e Amadeus (1984) em uma produção envolvente e intensa, que leva o espectador do riso às lágrimas, especialmente pelo caráter trágico da sua vida como um todo - da dificuldade de aceitação de seu pai, à morte precoce por um câncer. Tudo acompanhado de perto pelo melhor amigo e parceiro de negócios Bob Zmuda (Paul Giamatti, sempre um coadjuvante de luxo) e pela namorada Lynne Margulies (Courtney Love).

Aliás, muitos dos melhores embates envolvem as peripécias de Kaufman e Zmuda, que são confrontadas por Shapiro, que faz de tudo para colocar panos quentes - também para não perder as rédeas, dado o potencial do astro em entreter. "Quem você está querendo divertir? Você mesmo ou o público?", pergunta um exasperado Shapiro na primeira cena em que aparece um certo Tony Clifton, um exótico cantor de salão, dotado de um senso de humor ácido e nada amistoso - alguém, aliás, intencionalmente sem graça e que mais uma vez ultrapassa qualquer limite que possa haver no humor. E, claro, ainda há as abomináveis sessões de luta livre contra as mulheres, com Kaufman se autointitulando "campeão intergênero" - e por mais misógina que essa provocação pareça, ela parece ter como fundo a ideia de debochar do comportamento patético dos lutadores, especialmente os do Sul dos Estados Unidos, com suas batalhas fraudulentas e pendor pra certo amadorismo, que é endeusado pelos rednecks. "São piadas que só tem graça para vocês", desespera-se Shapiro, que ouve como resposta um "eu sempre tenho de estar à frente do público". Em alguma medida é possível afirmar que ele alcançou esse objetivo, com seu senso de humor sem limites e cáustico que, mais adiante, influenciaria uma infinidade de outros nomes, casos de Sacha Baron Cohen e Ricky Gervais.


segunda-feira, 15 de abril de 2024

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Cheiro do Papaia Verde (Vietnã)

De: Tran Anh Hung. Com Lu Man San, Thi Loc Truong, Gerard Neth e Thi Hai. Drama / Romance, Vietnã / França, 1993, 104 minutos.

Vamos combinar que é difícil analisar o tocante O Cheiro do Papaia Verde (Mùi Đu Đủ Xanh), sem levar em conta o aspecto sensorial da obra. Ao cabo, trata-se de um filme pequeno, que parte de um fiapo de história - aliás, como é bastante comum no cinema asiático -, mas que faz o espectador mergulhar em uma ambientação de cores vivas, de cenários bucólicos, de barulhos (mas de silêncios) e até de sabores e de cheiros que parecem saltar da tela. Assim como ocorre no cinema contemplativo de Apichatpong Weerasethakul, temos uma experiência com a sua própria fluidez de tempo. Entre um take e outro, com o uso de travellings, de planos sequência, de gruas e de câmeras próximas ao chão - que emulam o cinema de Yasujiro Osu -, temos uma natureza abundante que abraça os habitantes da vila vietnatima em que se passa a história. Sim, é um filme sobre contrastes sociais, infidelidade, memória, papel da mulher na sociedade, trabalho e tradições, mas é também uma produção naturalista e poética, profunda mas sutil.

O cenário ficcional é um pequeno vilarejo da Saigon do início dos anos 50, portanto um pouco antes da Guerra do Vietnã - ainda que ronde o espaço os toques de recolher e uma certa tensão do ambiente no contexto de outra guerra, a da Indochina. É nesse local que Mui (Lu Man San), uma criança de dez anos, chega para trabalhar como serviçal de uma família rica, mas que enfrenta um período de decadência financeira (as vendas já não estão das melhores e há ainda os episódios de infidelidade do patriarca, que, não bastasse dar suas escapadas, ainda leva a grana do comércio de tecidos). Curiosa e observadora sobre o mundo, Mui atua em trabalhos domésticos gerais, especialmente os que envolvem a preparação de legumes e a elaboração dos pratos da cozinha oriental - em especial aquele feito com o mamão que ainda não está maduro. Aliás, a alegoria sobre uma fruta que ainda verde surge como uma metáfora para a própria Mui, que desbrava os cantos daquela habitação, sendo mais ou menos adotada por aquela família - a matriarca (Thi Loc Truong) perdeu uma filha e parece ver nela uma forma de suprir a ausência.

 


 

Ao mesmo tempo, a protagonista se aproxima dos outros integrantes da família - especialmente o filho mais novo (de três), Tin (Gerard Neth) que costuma atormentá-la com seu comportamento imaturo, perturbador e até ressentido pelas seguidas ausências do pai (Ngoc Trun Tran). Já no andar de cima, a avó (Thi Hai) é uma senhora inválida, viúva, que raramente deixa o quarto que habita. Mui circula pelos ambientes, atende pedidos, encontra vizinhos e amigos, enquanto acompanha a derrocada dos patrões. O que envolverá uma tragédia futura e um salto temporal em que ela surgirá adulta, agora trabalhando como serviçal na casa de um amigo do filho mais velho da família, de nome Khuyen (Hoa Hoi Vuong) - um pianista casado com uma mulher aparentemente fútil, que ele não ama tanto assim. E, bom, a gente mais ou menos imagina o que vai acontecer, em meio a memórias, lembranças - carinhosas ou não - de um ambiente ingênuo, mas de aprendizado e que nos apresenta um País poucas vezes visto em produções que chegam ao Ocidente.

Aliás, esse foi o primeiro filme do diretor Tran Anh Hung, do recente O Sabor da Vida (2023), que, não apenas lhe apresentou para o mundo, como lhe deu notoriedade, com indicações a premiações (entre elas o Oscar) e vitórias no Festival de Cannes (na categoria Câmera de Ouro). Em um momento em que suspenses policiais e comédias mais escrachadas movimentavam a Hollywood dos anos 90, o realizador foi na contramão ao estacionar sua câmera como um meio de mostrar a vida regular, cotidiana do povo vietnatima - seus amores e sonhos, seu comércio, suas famílias, filhos, avós, fazendo uma espécie de contraponto à modernidade. "Eu queria mostrar a humanidade dessas pessoas, que ainda não havia sido vista no cinema", comentou Hung em entrevistas de divulgação, citando ainda que a obra também nascia de imagens que tinha da própria minha mãe, do frescor e da beleza de seus gestos. O resultado é uma experiência extremamente bem coreografada entre arabescos e balaústres, que se mesclam com folhagens verdíssimas, cantos de grilos, formigas e sapos despreocupados, percussões inesperadas, instrumentos de cordas e um todo estimulante, que burla os limites entre o dentro e o fora, o interior e o exterior. Tudo executado de forma inebriante, vívida e bastante fluída.

 

Pitaquinho Musical - Tyla (Tyla)

Quando lançou o single Water, em julho do ano passado, Tyla meio que surgiu para o mundo como uma enxurrada, uma torrente - pra ficar na metáfora aquosa que alude à canção. A música viralizaria no Tik Tok. Alcançaria, com sua energia absurdamente sexy, melodia envolvente e refrão grudento, milhões de visualizações de seu clipe no Youtube - um tipo de trajetória que, em alguma medida, é a de muitas jovens que despontam nesse universo. Só que Tyla ainda tinha o componente adicional de ser alguém de fora dos grandes centros. Desse eixo que parece centralizar tudo nos Estados Unidos e na Europa. Aliás, nativa da África do Sul, trazia para junto de seu hit instantâneo uma série de referências e de elementos de gêneros locais, como o afrobeat e o amapiano - um estilo que mistura jazz, lounge music e deep house e que eu, do alto da minha mais completa ignorância, mal tinha ouvido falar.


 

Mas aí passado todo esse furor, ficou aquela pontinha de dúvida: Tyla seria capaz de sustentar um álbum? De entregar mais do que um hit único? Bom, a chegada de seu disco homônimo comprova que sim. Mesclando pop e R&B com os já citados gêneros sul africanos, a jovem artista apresenta algo que foge do óbvio, em alguma medida. "Amo o meu continente, respeito-o, acredito muito nele. Só quero que as pessoas vejam e sintam o que sinto quando ouço música africana e vejam o que temos para oferecer, sabe?", resumiu no material de divulgação. A disposição para furar a bolha é, de fato, contagiante. As letras, como não poderiam deixar de ser para quem tem apenas 22 anos, se alternam entre o empoderamento feminino, a autoestima de quem exala confiança juvenil e as desilusões amorosas eventuais, tão típicas da juventude. Só que o combo geral é abusadamente saboroso, como comprovam outras ótimas canções, casos de Truth or Dare, ART e Jump. Difícil ficar alheio.

Nota: 8,5


sexta-feira, 12 de abril de 2024

Cine Baú - Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence)

De: John Cassavetes. Com Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper e Katherine Cassavetes. Drama, EUA, 1974, 155 minutos.

"Ninguém quer ver uma mulher louca de meia idade". Uma das melhores histórias de bastidores da Hollywood dos anos 70 envolve justamente a obsessão do diretor John Cassavetes em tentar levantar fundos que possibilitassem o financiamento de Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence) - obra estrelada por Gena Rowlands e Peter Falk, que, hoje, é considerada um clássico. Em alguma medida, dado o contexto da época, até não era difícil compreender o receio dos produtores. Um filme sobre uma dona de casa - uma mulher contemporânea tão afetuosa e carismática, quanto instável e irritadiça - abalada do ponto de vista emocional, que entra em uma espiral de decadência também por conta do consumo excessivo de álcool, talvez não fosse realmente algo muito atrativo. Tudo isso em um contexto de guerras - tanto a Fria quanto a do Vietnã -, e de incertezas gerais em questões políticas, econômicas, sociais, culturais. Uma mulher "louca", de meia idade? Não, obrigado.

Mas Cassavetes persistiu. Mais do que isso, hipotecou a própria casa e pegou dinheiro emprestado de familiares e amigos - entre eles o próprios Peter Falk, que estrela a produção ao lado de Rowlands (que era esposa do diretor) - para conseguir levar à produção para a telona. Hoje, quando se olha para trás e se vê o sucesso de público e de crítica do projeto - com direito à indicações ao Oscar e prestígio em listas de melhores internacionais -, não se imagina toda essa turbulência por trás das câmeras. Quer dizer, turbulência talvez não seja a palavra certa e, sim, esforço. De todos da equipe. Que tornariam o drama doméstico de Cassavetes em um dos mais impactantes retratos da corrosão familiar decorrente da instabilidade emocional - e de como o foro íntimo pode ser muito mais complexo do que se imagina. Ao cabo, talvez a Mabel de Gena Rowlands não seja a vilã da história. Longe disso. Ela está muito mais para uma vítima: das circunstâncias, do patriarcado, de um sistema que a impede de ser um espírito livre, talvez como ela desejasse. É uma elaboração de personagem única.


 

Em uma das mais inesquecíveis sequências da obra, Nick (Falk), leva uma dezena de colegas de trabalho - ele é um operário da construção civil - para a sua casa, sem avisar Mabel de antemão. E isso depois de dar um "bolo" na esposa por precisar fazer hora extra, após o vazamento de um cano de um bairro da cidade (o que obriga o homem a trabalhar justamente no turno em que ambos haviam combinado de jantar juntos, a dois, já que os filhos iriam passar a noite na casa da mãe dela). Só que mesmo à contragosto, Mabel se mantém afável, faz espaguete para os homens, procura conversar com todos, mostra interesse pelas suas vidas. Elogia-os - pela aparência, pelos esforços. Mabel, com seu estilo caloroso, quase sedutor, parece impactar a todos ali. O que faz com que Nick se sinta desconfortável, iniciando uma série de pequenos conflitos, que evoluirão para outros comportamentos tidos como estranhos, povoados por ansiedades e nervosismos, e que "obrigarão" o homem a tomar uma atitude mais drástica.

Diferente do que ocorre em outros filmes sobre conflitos domésticos, aqui temos um diretor que utiliza os longos planos sequência, os diálogos cheios de detalhes importantes para a narrativa e as interpretações naturalistas e repletas de carisma como forma de fortalecer e dar densidade à experiência. Em muitos casos, as cenas podem ser até exaustivamente longas, intensas, com o ritmo se alternando entre a doçura inesperada e a fúria intempestiva (às vezes com uma chegando segundos depois da outra, como no caso da já citada sequências do jantar). Ainda assim, com mais de 2h30 de duração, o projeto jamais perde o rumo naquilo que se propõe: eviscerar as fraturas do tecido social e as angústias de uma mulher que precisa lidar com uma sociedade machista e castradora, com pendor para misoginia e que é incapaz de compreender seus interesses e desejos. Sim, pode ser simplista e talvez Mabel precisasse efetivamente de tratamento psiquiátrico - uma coisa não anula a outra. Mas Nick compreenderá a duras penas que sua mulher tão fragilizada emocionalmente talvez seja apenas um reflexo de um contexto maior, em que os papeis de gênero se confundem. O que se evidencia aqui é a vida real. Com suas frustrações, felicidade fragmentada, memórias afetivas quase simplistas e um desejo de libertação não se sabe bem de quê. Essencial.


quinta-feira, 11 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Yannick

De: Quentin Dupieux. Com Raphaël Quenard, Blanche Gardin, Pio Marmaï e Sébastien Chassagne. Comédia, França, 2023, 66 minutos.

Ficou mais ou menos conhecida a história ocorrida no começo do ano passado em Portugal quando a atriz performática Keyla Brasil interrompeu uma sessão de teatro da peça Tudo Sobre Minha Mãe - baseada no filme de Pedro Almodóvar - para protestar pelo fato de uma das personagens trans, a Lola, ser interpretada por um ator hétero do sexo masculino. Na ocasião, Keyla subiu ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, sem roupa, para reivindicar representatividade trans. Aquilo que poderia ser apenas uma ocorrência excêntrica, surtiu efeito: a peça voltou a entrar em cartaz com Lola passando a ser interpretada pela atriz trans Maria João Vaz. Aliás, esta não foi a única vez que o Teatro São Luiz foi palco (literalmente) de interrupções. Também no ano passado, o coletivo Climáximo interrompeu a peça Europa para intervir sobre seu significado. Especialmente na atual conjuntura do mundo perante a crise climática.

Enfim, nos tempos atuais - de tecnologia desenfreada e com o público em geral tendo condições de opinar sobre absolutamente tudo a qualquer momento e agora -, talvez ocorrências do tipo se tornem cada dia mais normais. Hoje em dia, quanto maior a base de fãs de determinado produto cultural, mais esse grupo parece se sentir à vontade para, literalmente, construir certas obras junto com os artistas. Sejam eles diretores, escritores, músicos. Em muitos casos basta vazar uma imagem, um frame, um traço, uma palavra ou o que quer que seja de um filme, de um disco, de um livro, ou até de um vídeo de Youtube ou de um reels no Instagram, para os apreciadores se apressarem a comentar MUITO nas redes sociais - muitas vezes com viés crítico, claro. Anos atrás, viralizou um vídeo do Chico Buarque descobrindo o "carinho da audiência". Hoje em dia, aquela cena em que o Marshall McLuhan dá as caras no filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), de Woody Allen, para simplesmente confrontar um detrator de suas publicações parece a cada dia mais convencional. E como se lida com isso? Mais do que isso, o público chega a ter razão em certos casos? Esse debate que retira o espectador da apatia tem sentido?


 

Quando a gente assiste a um filme ruim não temos muito o que fazer: resta aceitar, levantar da cadeira, ir pra casa, reclamar no Twitter, e torcer pra que a próxima experiência seja melhor. Os fãs de obras baseadas em quadrinhos parecem se sentir assim o tempo todo. A próxima sempre será melhor. Sempre apagará a péssima impressão da anterior. E por aí vai. Mas e se fosse possível manifestar a insatisfação em tempo real? Reivindicar uma melhoria ou uma correção de rumo enquanto a coisa se desenrola? É mais ou menos isso que propõe o curioso Yannick, mais recente projeto do sempre provocativo diretor francês Quentin Dupieux (do clássico cult Rubber, 2010). Famoso pelos seus filmes minimalistas, metalinguísticos e autorreflexivos, aqui o realizador nos apresenta ao jovem Yannick do título (vivido por Raphaël Quenard), um segurança de estacionamento que resolve simplesmente interromper uma peça teatral de gosto duvidoso, que ele acompanha ao lado de meia dúzia de gatos pingados na capital Paris, para exigir dos atores uma explicação sobre aquilo que ele considera uma afronta.

"Ao invés de vocês me fazerem esquecer meus problemas, vocês os estão aumentando", comenta o rapaz, de pé, diante da plateia perplexa, atônita. À todos do local, avisa que precisou pedir folga de seu turno para assistir à peça - que somados os tempos de condução, serão mais duas horas perdidas entre a ida e a volta. Pra algo que tem lhe deixado melancólico, insatisfeito, aturdido. A solução? De posse de um revólver, Yannick se propõe a reescrever a peça, mantendo os atores e o público como reféns, trazendo para o texto um material mais direto, menos denso, mais cotidiano ou mesmo leve. Mais paradoxalmente afetivo. O que resultará em um ato final comovente e, em alguma medida, surpreendente. Ao cabo, esse é um projeto pequeno - aliás, os filmes de Dupieux dificilmente alcançam uma hora e meia de duração, sendo bastante diretos em seus argumentos -, que joga alguma luz sobre temas como pedantismo cultural, passividade do público perante experiências indigestas de "arte", mediocridade pequeno-birguesa e até sobre possibilidades de criação cultural coletivas, com atenção a outras vozes, outras vivências, outras realidades. Quem já se sentiu "refém" de um espetáculo ruim se sentirá contemplado, nessa alegoria à moda Pirandello, que nos apresenta ao mais improvável dos anti-heróis.

Nota: 8,0


terça-feira, 9 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Descanse em Paz (Descansar en Paz)

De: Sebastián Borensztein. Com Joaquin Furríel, Griselda Siciliani, Gabriel Goity, Lali Gonzalez e Luciano Borges. Drama / Suspense, Argentina, 2023, 105 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Quem acompanha a carreira do diretor argentino Sebastián Borensztein sabe que a parte mais famosa de sua filmografia envolve produções de comédia, com aquele senso de humor meio nonsense em que a gente ri agora, pra chorar em seguida - como fica evidente nos ótimos Um Conto Chinês (2011) e, mais recentemente, em A Odisseia dos Tontos (2019). Com Descanse em Paz (Descansar en Paz), ele faz uma incursão por um cinema mais sério, enveredando pelo drama familiar com pitadas de thriller policial. E o resultado da obra, que está disponível na Netflix, é bastante satisfatório. Aqui, ao cabo, temos a experiência de entretenimento de fórmula, com boas reviravoltas e um senso de tensão permanente, que deixa a coisa toda meio imprevisível. É, em alguma medida, o filme bom de ver. Aquele que muitas vezes você precisa para relaxar, depois de um dia de trabalho.

Na trama, Sergio Dayan (o ótimo Joaquin Furríel) é um empresário que já foi bem sucedido, mas está afundado em dívidas - o que não o impede de manter certos luxos. No começo do filme o vemos investindo em presentes caros e numa festa voluptuosa de aniversário para a sua filha adolescente. Só que isso não pega nada bem não apenas para os empregados de sua pequena fábrica, que cobram os salários atrasados e ameaçam paralisar as atividades, mas também para os agiotas que andam rondando o bairro - um pessoal meio barra pesada, que tem na figura de Hugo Brenner (Gabriel Goity) o seu principal representante. Hugo lhe dá uma semana para quitar a dívida, sob pena de ele sofrer severas consequências - o que o faz temer pela vida da família, especialmente da esposa Estela (Griselda Siciliani) e dos filhos. Pra ganhar tempo, o protagonista consegue vender uma casa de campo, o que lhe permitirá saldar parte do que deve.

 


Só que, por uma daquelas coincidências do destino, Sergio acaba sendo uma das vítimas de uma explosão, que ocorre próximo ao local em que ele pretendia entregar o dinheiro. Dado como morto pelas autoridades policiais locais, o homem vê aí a oportunidade perfeita para simplesmente desaparecer do mapa - desviando sua rota para o Paraguai onde, com nova identidade e um passado que ninguém conhece, reiniciará sua vida. O abandono à família se dá em partes: como um cadáver nunca encontrado, ele possibilitará à Estela acessar um volumoso seguro de vida, que permitirá à ela e aos filhos recomeçar a vida. Pagar as pendências. E também se ver livre dos perigos da agiotagem. Tudo parece mais ou menos bem até que, bom, a vida dará as suas voltas e as pendências do passado poderão ressurgir quando Sergio menos esperar. E mais: como um sujeito sozinho no Paraguai, por quanto tempo ele aguentará? Qual o preço desse isolamento forçado?

Ao cabo esse não é um filme que busca muitas respostas, nem se pretende ser excessivamente filosófico na análise das relações familiares - por mais que as falhas do capitalismo inevitavelmente apareçam no centro da narrativa (as crises argentinas que vêm e vão costumam ser matéria-prima das produções de Borensztein, como é o caso do já citado A Odisseia dos Tontos). Aqui a gente se apega muito mais a tensão da coisa toda, que é reforçada pelos closes no rosto do protagonista, que parece envelhecer uns trinta anos quando ocorre um salto temporal (méritos para a maquiagem e para a interpretação cheia de sutilezas e de silêncios de Furríel). Em alguns fóruns muitas pessoas se queixaram do final excessivamente dramático e violento. Mas não deixa de ser o desfecho perfeito para uma história de amor acima de tudo - e a sequência que envolve um singelo colar no pescoço de uma das personagens, é daqueles que nos comove sem precisar muito.

Nota: 7,5


Pitaquinho Musical - Vampire Weekend (Only God Was Above Us)

Preciso ser honesto com vocês: toda vez que o Vampire Weekend anuncia um novo disco, eu penso que a coisa vai desandar. E não é que eu não confie no potencial e na capacidade de Ezra Koenig e companhia - talvez eles "só" sejam a melhor banda alternativa do mundo -, mas é que não deve ser fácil manter a qualidade do trabalho por tanto tempo. Especialmente quando se lançam obras-primas como Modern Vampires of the City (2013). Só que a banda parece não ter pressa. São poucos os álbuns no catálogo - tanto que o recém chegado Only God Was Above Us é apenas o quinto da carreira e chega depois de um hiato de cinco anos desde o harmonioso Father of the Bride (2019). E dando tempo ao tempo, o coletivo parece sempre entregar o seu melhor. Seja na sonoridade - estridente, amplificada, complexa mas agradável e sofisticada do ponto de vista instrumental -, ou nas letras alegóricas e profundas, que emergem de cenários domésticos e de dilemas mundanos para uma análise do todo.


 

Tomemos como exemplo o single Capricorn - seguramente uma das melhores canções do catálogo dos nova iorquinos. Os versos chegam a ser quase prosaicos a respeito do suposto absurdo que é simplesmente nascer no final do ano - no dia 30 ou 31 de dezembro -, já no limiar de um ano que está para iniciar (Capricórnio / O ano que você nasceu / Terminou rápido / E o próximo não foi o seu / Velho demais para morrer jovem / Jovem demais para viver sozinho), o que impossibilitaria uma experiência mais plena na conjunção com o ano nascido. E como se já não bastasse essa ruminação curiosa sobre passado e futuro, passagem do tempo e identidade ou a respeito da dicotomia entre juventude e maturidade, há ainda como base uma melodia esganiçada, sibilante, quase industrial, mas também delicada e que jamais se torna cansativa. Pianos que se espalham com graça (Hope), guitarrinhas adocicadas (Pravda), rockões modernos e pegajosos (Classical) que se alternam com instantes mais comedidos (Mary Boone), enfim, uma construção moderna, riquíssima e com uma fluidez própria. É álbum pra dar play repetidamente. E descobrir algo novo a cada nova audição.

Nota: 9,5


segunda-feira, 8 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Propriedade

De: Daniel Bandeira. Com Malu Galli, Zuleika Ferreira, Tavinho Teixeira e Carlos Amorim. Suspense / Drama, 2022, Brasil, 100 minutos.

Entendo que em muitos casos o cinema possa ser catártico, ser veículo para explosões emocionais diversas ou mesmo o caminho para a expiação. Compreendo também que a arte possa quebrar expectativas, subverter lógicas, ser até mesmo uma forma de libertação, de cura. Mas enquanto assistia ao turbulento Propriedade, segundo longa-metragem do diretor Daniel Bandeira, só conseguia pensar nas interpretações possíveis a respeito da obra - e sobre se ela seria bem recebida pelo público em geral (já tão disposto à beligerância, ao confronto, e à procura por inimigos reais ou imaginários). E eu confesso que assistir a um grupo de trabalhadores sem terra revoltados - com justiça, diga-se, especialmente levando-se em conta o conceito freireano de Justa Raiva -, reagindo aos seus empregadores com um tipo de violência caótica quase sádica, me questionava sobre a contribuição desse tipo de experiência para qualquer tipo de debate sobre diferenças de classe, contrastes sociais e o abismo existente entre os ricos e os miseráveis do Brasil.

Quem me acompanha por aqui - e me conhece na vida real - sabe que sou um progressista, que acredita na importância de políticas públicas que promovam igualdade social e que visem a uma sociedade mais justa e igualitária. São anos e anos de atraso de um Brasil que, vá lá, só expurgou a escravidão como uma mera formalidade - e sequer surpreendem as várias notícias País afora sobre grandes propriedades rurais que ainda mantém trabalhadores vulneráveis (e extremamente pobres) em condições análogas à escravidão. Pode até não haver mais o chicote e o tronco institucionalizado - bom, vai saber, talvez em alguns lugares esses equipamentos não tenham sido suprimidos -, mas o sistema, na atualidade, mudou de formato. Em muitos casos o empregado é conduzido a "morar" forçadamente no local de labuta, sob a desculpa de ter melhores condições de vida - ainda que isso envolva jornadas sufocantes, desrespeito à qualquer tipo de legislação do trabalho ou supressão completa de direitos. Já vimos filmes e obras de arte sobre o assunto. Com justíssimas revoltas, que acompanhamos com sangue nos olhos.


 

Mas não sei se houve algum tipo de problema estrutural em Propriedade, ou sou eu que tô sendo o tiozão que, aos quarenta e dois anos, não consegue mais acreditar em revolução, em insurgência e, principalmente, em "olho por olho, dente por dente". Muitos são os teóricos que afirmam que só construiremos uma sociedade melhor se tivermos mais empatia, mais compreensão, mais capacidade de ouvir o outro lado. Mais conciliação. E, vejam bem, é ÓBVIO que os trabalhadores em condições precárias que são vistos no filme de Bandeira são (ou deveriam ser) os mocinhos da história. Mas quando assisto a eles tentando assassinar uma mulher - por mais que seja a mulher branca, patroa, a senhora de escravos moderna e vilanizada -, dentro de um carro, sufocada por fumaça de uma fogueira, não consigo me sentir muito bem. Já que vejo apenas a brutalidade. Tem algo meio estranho e que difere, por exemplo, da experiência com Bacurau (2019), que também exibe esse tipo de revolta popular. Aqui a subversão converte boa parte do coletivo de empregados nos vilões apenas bestializados - com seus comportamentos intempestivos, meio xucros, muitas vezes incapazes de qualquer tipo de diálogo. 

E, vamos combinar que o fato de a protagonista vivida pela atriz Malu Galli ser uma mulher traumatizada justamente por ter sofrido um sequestro relâmpago no passado - tentando reiniciar a sua vida após o ocorrido -, não ajuda muito. Ainda que adicione complexidade às relações sociais que acompanhamos na produção. Ninguém é, afinal, mocinho ou bandido o tempo todo - e ao menos o realizador se ocupa em conferir personalidades eventualmente distintas ao grupo de trabalhadores (alguns são naturalmente mais brutalizados e querem vingança, outros querem apenas fugir daquele local a qualquer custo, outros são mais imprevisíveis em seus atos). O que não deixa de ser um mérito, ainda que a violência esteja sempre pelas bordas. Há mais camadas nesse contexto. Mesmo assim, no combo geral me deu um ruim, especialmente quando me percebi torcendo pra que a protagonista se livrasse daquele sufoco. Que conseguisse escapar. Que a lei não fosse balizada por um conceito de selva, de Idade Média, de "vitória do mais forte". Senão a gente nivela a coisa por baixo. E até para vencer essas batalhas é preciso ter inteligência. 

 

 

É um filme de horror sobre disparidades que descamba pra extrema violência? Ok, talvez seja apenas isso. Catártico, como disse no começo. Só que no meio do caminho eu quase esqueço que se tratava de uma obra sobre um grupo de agricultores desalentados de uma grande fazenda de gado, que será vendida para ser convertida em um hotel - o que resultará na "demissão" de todos ali (que, sem documentos, sem vínculos, sem qualquer direito, sairão com uma mão na frente e outra atrás). De novo, a vilania está no sistema como um todo: nas heranças, nos luxos, no capitalismo, nos ricos cada vez mais ricos, às custas dos pobres que não conseguem crescer de geração em geração, permanecendo na miséria. Matar uma mulher em seu próprio carro, sufocada? Uma mulher enclausurada e sozinha, aterrorizada e com medo diante da massa zumbificada? O momento no Brasil é complexo. E, enquanto subiam os créditos, já conseguia imaginar o tiozão classe média, saindo da sessão de cinema e dizendo pra esposa antes de ir comer seu lanche no McDonalds: "bem que na mídia disseram que não dava pra confiar no MST". Posso estar exagerando? Há outras leituras, certamente. Mas a minha foi essa. Sendo o mais honesto possível.

Nota: 5,5

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Tesouros Cinéfilos - Entre Umas e Outras (Sideways)

De: Alexander Payne. Com Paul Giamatti, Thomas Haden Church, Virginia Madsen e Sandra Oh. Comédia / Drama / Romance, EUA, 2004, 127 minutos.

"Gosto de pensar no que estava ocorrendo no ano em que as uvas cresciam. Como brilhava o sol, se choveu a contento. Me agrada pensar em todas as pessoas que cuidaram e que colheram as uvas. E se for um vinho antigo, quantas dessas pessoas já estarão mortas nesse instante. Gosto de ver como o vinho continua a evoluir e saber que, se tivesse aberto uma garrafa hoje, o sabor seria diferente do que se tivesse aberto em qualquer outro dia. Porque uma garrafa de vinho é algo vivo, que está em constante evolução e ganhando complexidade. Isto até atingir seu pico". Vamos combinar que uma metáfora mal empregada pode ser devastadora para uma experiência cinematográfica - e em Entre Umas e Outras (Sideways) temos o completo oposto. A maturidade do vinho em toda a sua magnificência funciona como uma alegoria para a própria vida: estamos em constante evolução. Como um bom vinho de uma safra antiga. 

Sim, pode parecer meio brega em alguma medida, mas a frase dita por Maya (Virginia Madsen) à Miles Raymond (Paul Giamatti), e que abre essa resenha, é proferida com tanta elegância, de forma tão afetuosa, que é simplesmente impossível não pensar na existência daqueles personagens como figuras que fermentam em suas barricas pessoais. Para dali extrair o melhor produto. Aliás, quando a gente pensa em "filme sobre vinho" é difícil não recordar essa obra cheia de carisma (e de pessoas imperfeitas) dirigida por Alexander Payne - do recente (e ótimo) Os Rejeitados (2023), também estrelado por Giamatti. Aliás, o ator que se especializou em encarnar sujeitos simplórios e niilistas, que vivem de ombros caídos diante de um mundo que parece lhe desprezar, aqui entrega tudo no papel de um professor deprimido que tenta investir na carreira de escritor - ao mesmo tempo em que tenta superar uma separação.

 

 

Miles ainda parece viver o luto do desquite. O que não lhe impede de convidar o seu melhor amigo Jack (Thomas Haden Church) para uma espécie de viagem de despedida de solteiro, que tem como cenário o Vale de Santa Inez, no Sul dos Estados Unidos - uma região da Califórnia famosa pela produção de uvas (e de vinhos). Miles é um especialista no assunto - ou talvez alguém apenas metido nos assuntos da enologia. Segura a taça da maneira correta, sacode o vinho, enfia o nariz no recipiente, tenta reconhecer esta ou aquela nota. Analisa a cor, a viscosidade, a aderência. Como se comportam os taninos. Debate à altura com os responsáveis das vinícolas visitadas. Para ele esse parece um passatempo razoável ao lado do amigo que se casará em uma semana. Já Jack, bom, Jack parece apenas interessado em descolar alguma transa aleatória antes de entrar na Igreja para o seu próprio matrimônio.

Como costuma ocorrer nos filmes de Payne, aqui temos pessoas mais ou menos comuns com todas as suas imperfeições, medos, anseios, desejos, segredos. Miles é claramente o sujeito inseguro que recém se tornou o mais novo solteiro na praça - e quem nunca ficou aflito numa situação dessas? Ainda mais em companhia do amigo mulherengo? Um livro que talvez não seja editado funciona como uma alegoria a mais para o desastre pessoal desse homem ordinário - o que faz com que, como vinho, ele se converta em uma espécie de vinagre. Mas assim como a uva, as safras dependem de uma série de fatores: clima, cuidados ao manejar, ao irrigar, ao podar. Há uvas que frutificam mais cedo, outras mais tarde. Há algumas, como a pinot noir, que são mais raras, mais frágeis, mais complexas. O ser humano é assim também? É o que parece, nesse road movie que, assim como uma taça de vinho, serve para celebrar os recomeços. Ou mesmo aquilo que nos afaga a alma. Ou, vá lá, a beleza da vida em seus acasos. O que já faz tudo valer a pena.


terça-feira, 2 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Monstro (Kaibutsu)

De: Hirokazu Koreeda. Com Hiiragi Inata, Kurokawa Souya, Eita Nagayama e Sakura Andou. Drama, Japão, 2023, 126 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

"Eu estou curado da minha doença". Em uma das mais comoventes sequências de Monstro (Kaibutsu), mais recente obra do sempre espetacular diretor Hirokazu Koreeda - de Pais e Filhos (2013) e Assunto de Família (2018)  -, o pequeno Hoshikawa (Hiiragi Inata) explica ao seu melhor amigo Minato (Kurokawa Souya) que eles não podem mais conviver juntos. Pressionado pelo pai, Hoshikawa explica que vai se mudar, que há uma menina de que ele gosta e que agora ele é "normal". "Você sempre foi normal", retruca Minato. A verdade não demora a vir à tona - e nesse momento, pro espectador, é quase difícil segurar as lágrimas. Nessa altura do campeonato o filme já avançou um monte. É no terço final que as peças verdadeiramente vão se encaixando - e a gente passa a compreender não apenas a complexidade da relação entre os dois meninos, mas em que medida a participação do professor de ambos, o senhor Hori (Eita Nagayama) e da mãe solo de Minato Saori (Sakura Andou) movimentam a narrativa.

Quando o filme começa, a impressão que temos é a de estar diante de um drama meio convencional. Um incêndio ocorre de madrugada e consome um prédio do centro da cidade. Hori talvez estivesse no prostíbulo que ficava em um dos andares da edificação - o que faz com que ele seja julgado. Talvez mais do que isso, vigiado. De forma concomitante, Minato passa a se comportar de forma muito estranha. Primeiro corta o próprio cabelo, sem muita explicação. Depois aparece sem um de seus tênis. O auge da esquisitice será quando Saori perceber o desaparecimento do próprio filho, descobrindo-o "perdido" em um túnel junto à ferrovia, no meio da noite, fora da cidade. É um momento de tensão bem construído, que se ampliará a partir de um suposto conflito entre Minato e o senhor Hori, que talvez o tenha agredido não apenas fisicamente mas com palavras, em circunstâncias não muito bem explicadas. É tudo meio nebuloso, e a trama parece atrair a nossa atenção para temas como pais superprotetores, abusos infantis e as dificuldades que envolvem ser professor nos tempos atuais.


 

Aqui, como de praxe nas produções de Koreeda, a narrativa é centrada nas relações familiares e na complexidade da experiência humana - especialmente no Oriente, onde a incomunicabilidade e a solidão parecem fazer parte do cenário contemporâneo. Trazendo mais de uma perspectiva, o filme salta do olhar da mãe no terço inicial, para o do professor em um segundo momento - o que permitirá ao espectador ir juntando as peças desse quebra cabeças tão sofisticado quanto delicado. Ao cabo, o diretor não parece ter pressa em nos revelar aquilo que propõe - há muitos silêncios e olhares demorados. Mais do que isso, nos permite reconhecer que a falta de informações sobre certos eventos podem nos levar a julgamentos antecipados. O tempo todo temos a impressão de estar buscando culpados. Do incêndio, da agressão à Minato, da falta de habilidade da escola em resolver problemas, da incapacidade da mãe de compreender o filho, quando na verdade quase esquecemos do óbvio: todos nós somos seres humanos cheios de imperfeições, de desejos, de segredos, de falhas, de arrependimentos.

Melancólica, a obra que venceu o prêmio de Roteiro no mais recente Festival de Cannes, se utiliza de uma série de metáforas e de frases de efeito que funcionam como alegorias de um mundo em transformação. Mais de uma vez os meninos se refugiam em um ônibus abandonado em uma floresta, que é decorado com uma série de objetos à sua maneira - um espaço idílico de encantamento, de fuga desse espaço tão bélico, tão cheio de preconceitos, de intolerância. "Quem é o monstro?", perguntam os meninos um ao outro em uma brincadeira de adivinhação, onde ambos grudam imagens de animais em suas testas - caracois, bichos-preguiça, porcos. A verdade dura é que a monstruosidade está na sociedade e em seus julgamentos, na vigilância constante ao que foge do padrão, na incapacidade de respeitar outras vivências, outras realidades. Assim como ocorre no recente Close (2022), Koreeda ousa ao abordar o tema da homossexualidade na pré-adolescência de forma compreensiva e elegante. Essas vidas existem, afinal. E tratá-las como "monstros" não irá resolver coisa alguma. O caminho para o sol, para a luz talvez ainda demore. Mas não custa sonhar.

Nota: 9,0


Pitaquinho Musical - Beyoncé (Cowboy Carter)

Vamos combinar que hoje em dia já é bastante conhecida a história que envolve a apresentação de Beyoncé, ao lado do grupo The Chicks durante o Country Music Awards de 2016 - e que resultou em um sem fim de reações racistas, misóginas, sexistas. Texana de nascimento, a maior rainha do pop estaria portanto impedida de cantar um estilo normalmente ligado, ao menos na atualidade, aos rednecks sulistas, que seguem batendo cabeça sobre como devolver Donald Trump ao poder? Não mesmo. Ainda que Texas Hold'Em possa ter sido um forte aceno ao gênero - como já havia ocorrido no passado em Daddy Lessons, presente em Lemonade (2016) -, o caso é que Cowboy Carter é muito mais do que o disco de country music da Bey. Pode ser o ponto de partida, uma investigação, um tratado histórico, como ela costuma fazer. Mas há muito mais do que Willie Nelson e Dolly Parton avalizando ou banjos respingados aqui e ali. E esse é um trabalho da Beyoncé que, vamos combinar, só poderia ter sido feito por ela. Especialmente por conta de suas origens. E, enfim, lidem com isso.


 

Sequência da trilogia que se iniciou com o festivo e dançante Renaissance - nosso terceiro favorito na lista internacional de 2022 -, aqui temos uma artista afiada no exame de sua terra natal em todos os seus preconceitos, mas sem deixar de expressar seu amor por ela. Somos seres complexos e ao trafegar por tantos gêneros - do hip hop ao gospel, passando pelo R&B e pelos ritmos africanos -, Beyoncé constroi uma epopeia revisionista provocativa, que escava o justo espaço histórico das mulheres negras, em um ambiente normalmente dominado por homens brancos, conservadores. Músicas como 16 Carriages são poderosas não apenas pela subversão melodiosa e pela letra potente sobre o desenraizamento repentino e os traumas decorrentes (Aos quinze anos, a inocência se extravia. / Tive que cuidar de casa em uma idade precoce), mas pelas possibilidades de transformação para além do purismo bucólico do gênero. É um disco pra degustar com calma - são 27 canções e quase 1h20 de duração - com as letras a tiracolo, lendo outras análises, resenhas, comentários. Um projeto que certamente será estudado no futuro, revisitado, redimensionado. Ousada, divertida, perspicaz, iconoclasta, sensual, confiante, Beyoncé invadiu o cenário do filme do John Ford e subverteu toda a lógica. Amém.

Nota: 9,5


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Os Colonos (Los Colonos)

De: Felipe Gálvez. Com Camilo Arancibia, Mark Stanley, Benjamin Westfall e Alfredo Castro. Drama / História, Chile, 2023, 100 minutos.

Um soldado britânico, um cauboi americano e um mestiço chileno entram num bar e, bom, pode parecer começo de uma anedota de mau gosto, mas é uma excelente maneira de recontar um tipo de história que, em muitos casos, foi apagada. Ou que talvez seja desconhecida pra muitos. E esse é só um dos muitos méritos de Os Colonos (Los Colonos) - o enviado do Chile à última edição do Oscar e que chegou na última semana à plataforma Mubi. A obra de estreia do diretor Felipe Gálvez tem aquela cara de faroestão clássico, como se fosse uma mescla de No Tempo das Diligências (1939) - especialmente do ponto de vista dos cenários grandiosos (e abertíssimos) - com o tipo de descrição que encontramos em obras literárias estilo Todos os Belos Cavalos, de Cormac McCarthy. Só que a diferença aqui é que estamos na América do Sul, mais precisamente no Sul do Mundo - espaço conhecido como a Terra do Fogo.

É o começo do Século 20 e nesse ambiente inóspito que é meio que terra de ninguém, um certo estancieiro de nome José Menendez (Alfredo Castro) envia uma expedição em direção ao Atlântico para não apenas delimitar, mas talvez recuperar terras concedidas pelo Estado. Claro que no caminho há uma grande chance de eles se depararem com tribos indígenas - os Onas habitam a região e se houver qualquer tipo de dificuldade com eles, a regra do homem branco é clara: matar se for preciso. Nesse comboio partem apenas três homens, no caso o tenente inglês Alexander MacLennan (Mark Stanley), o pistoleiro saído dos Estados Unidos Bill (Benjamin Westfall) e o criador de ovelhas Segundo (Camilo Arancibia), um nativo da região, que é recrutado por ser um excelente pistoleiro. À cavalo, o trio cruzará um cenário absolutamente isolado nos confins da Terra, não apenas trabalhando para um empresário explorador que mal conhecem, mas com a missão de exterminar indígenas (tidos como selvagens).


 

Revisionista, a trama baseada em fatos reais retira certo romantismo que pode pautar os relatos de colonizadores - e, consequentemente, do lado que costuma aparecer nos livros de história -, para tratar de um passado de violência, de morte, de sangue, de abusos e de mais forte oprimindo o mais fraco (como em muitos casos costuma ser). Em alguma medida, em tempos em que tribos indígenas seguem sendo suprimidas institucionalmente, especialmente em um cenário de políticas desastrosas de extrema direita, não deixa de ser interessante notar como a produção olha para o passado, mas sem ignorar o presente. Há uma crueza meio brutal que assombra - e mesmo uma disputa de queda de braço pode vir carregada de certo simbolismo que acena à atualidade, com nações disputando territórios ou entrando em guerra umas com as outras, seja por motivos geográficos, políticos, religiosos, culturais. "Nada de bom pode ocorrer quando os militares estão entediados", resume alguém em certa altura.

[ALGUNS SPOILERS A PARTIR DAQUI] Em alguma medida o combo de militarismo com religião como um suposto caminho para a "domesticação" de povos, também aparece aqui e ali, especialmente no terço final, quando a trama dá uma guinada, com o Governo chileno aparentemente disposto a uma autoanálise e uma reparação de seus equívocos. Mas a que preço? Fazer parte de um País na marra? Uma nação que massacra seus povos originários, mas que quer incluir esses mesmos povos à sua maneira? Suprimindo culturas, tradições, folclore, religião, modo de vida? Em certo momento, Segundo está dormindo quando acorda com os cavalos agitados. Ele avança em direção à floresta, na madrugada escura, onde tem uma espécie de revelação. Tão alegórica quanto surpreendente. Que mais adiante fará com que ele reflita sobre o que é ser chileno. "Você é branco, ele não é" relembra Bill à Maclennan, como forma de lembrar como funcionam as dinâmicas de poder locais. Baseadas em preconceitos e em estereótipos. A gente sabe como a história termina e o último instante do filme mostra que a construção de um Chile (e de uma América) para todos, unificada, não se deu sem que o massacre ocorresse nas entranhas, nas artérias, nas veias. Suprimindo não apenas os povos, mas os seus ideais. Filmaço.

Nota: 9,0