Editora: Companhia das Letras, 2021, 338 páginas.
"Clara como a luz do sol / Clareira luminosa nessa escuridão". Devo confessar a vocês que, mais de uma vez durante a leitura de Klara e o Sol - mais recente obra de Kazuo Ishiguro (e meu primeiro contato com o trabalho do escritor japonês) -, pensei na música do Lulu Santos. E não apenas pela óbvia intersecção entre as palavras, ainda que a Klara de Ishiguro seja um nome próprio - no caso é a protagonista do livro, uma espécie de inteligência artificial robótica de última geração, projetada para fazer companhia a seres humanos -, mas também pelo verdadeiro elogio ao astro e a toda a sua potencialidade luminosa. Aliás, não haveria nada de errado se o livro se chamasse "Ode ao Sol", com algum subtítulo aludindo à dor e à solidão em tempos de tecnologias avançadas. Sim, porque o sol aqui é simplesmente o alimento de Klara. É ele que a nutre, mantendo-a estável, ativa e atenta, especialmente na primeira parte, a da "vitrine".
É nas primeiras páginas que a gente conhece um pouco da personalidade curiosa e observadora de Klara - que, como uma espécie de gadget, fica disposta em uma loja que vende esta e outras bugigangas tecnológicas. Acompanhada de sua amiga Rosa, Klara e passa os dias mudando de posição no estabelecimento, de acordo com os humores de sua gerente, enquanto aguarda por algum potencial comprador. Aqui e ali ela observa a rua, os táxis passando, os transeuntes, os prédios, as demais inteligências artificiais e até os equipamentos que fazem o serviço público - especialmente uma máquina apelidada de Cootings, com amplo potencial poluidor. Num grau de fumaceira que chega a quase impedir a entrada dos raios de sol pela fachada da loja. O sol, tão importante para nutrir Klara e as demais inteligências. Em meio a sua rotina, passa a reconhecer padrões, sentimentos, desejos e anseios tipicamente mundanos, o que a fará também aprender sobre suas próprias necessidades.
Todos esses elementos são amplificados na segunda parte da obra, quando Klara é adquirida por Josie, uma adolescente de 14 anos que, em companhia de sua mãe, Chrissie, mais de uma vez "namora" a inteligência artificial na vitrine da loja. Na propriedade da família, que parece ficar em uma área rural, já que é possível enxergar da janela principal o celeiro do vizinho (o senhor McCain) - uma estrutura que fica em um topo de morro junto à vegetação rasteira -, Klara tentará se enturmar não apenas com Josie e seus amigos, mas também com o vizinho da jovem, Rick, que parece ser seu melhor amigo e, vá lá, talvez até um interesse romântico. Só que o comportamento bastante estranho de Chrissie e também da mãe de Rick, a senhora Helen, fará com que a protagonista perceba que há algo ali que não está bem certo. Mais do que isso, há segredos familiares que talvez exijam de Klara uma mudança de rota que quebrará os paradigmas e até as perspectivas futuras daquela família, que é completada pela empregada doméstica Melania e por Paul, o pai de Josie.
Um dos traumas que virão à tona envolve o trágico falecimento de Sal, a irmã mais nova de Josie - que, de forma estranha, já teria sido vista na propriedade, no passado. E, pelos olhos de Klara será possível perceber como, diante de tantas revelações de impacto nesse cenário conturbado, ela reflete de forma arguta sobre a natureza humana e a respeito daquilo que nos move - com a protagonista sendo uma figura solidária, empática e calorosa com os demais. O que a torna capaz de estabelecer relações sólidas, profundas e que se adaptam às circunstâncias - especialmente quando ela faz uma triste descoberta sobre Josie. Ao cabo, Klara e o Sol - que será adaptado para o cinema por Taika Waititi em filme estrelado por Amy Adams e Jenna Ortega -, é um livro emocionante e de impecável ternura, que se debruça de forma existencialista sobre o tema da amizade. Para quem gosta de Não Me Abandone Jamais (2005), que eu não li (mas vi o filme), certamente será um prato cheio