Vamos combinar que existem alguns discos que demoram pra ser absorvidos em sua totalidade. Que exigem mais de uma audição - em muitos casos cinco, seis, oito repetições. Até mais. E, ainda assim, a cada novo encontro será uma descoberta. É algo que vai meio que na contramão do consumo moderno de música, pautado por canções curtas que possam render dancinhas viralizantes no Tik Tok (e que, vá lá, daqui a algumas semanas talvez ninguém se lembre mais, quando a nova moda aparecer). E esse é justamente o caso de Ethel Cain que, não apenas lançou o seu segundo álbum apenas em 2025, como este novo registro, um panegírico intitulado Willoughby Tucker, I'll Always Love You, também ultrapassa os sessenta minutos de duração - como foi o caso do estranho e experimental Perverts, que deu as caras no comecinho de janeiro.
Funcionando como uma continuação de Preacher's Daughter (2022) - que esteve na nossa lista de melhores daquele ano -, Willoughby adota o mesmo estilo elegíaco, quase etéreo, ao contar uma história ficcional e trágica de amor, que percorre cada fragmento do álbum. Alternando momentos de versos profundamente emocionais e de grande vulnerabilidade, como em Nettles (O tempo passa mais devagar no piscar de luzes do hospital), com instantes de puro deleite instrumental, caso de Radio Towers, Cain entrega um registro flutuante, cru e vertiginoso sobre a sensação nauseante de se apaixonar e de se ver profundamente alterada por essa relação, independente do que ocorra. É um disco de vibrações sombrias que emergem de cordas e pianos atmosféricos. Mas também de estranho acolhimento em meio à dor.
De: Andrea Arnold. Com Nykiya Adams, Barry Keoghan, Franz Rogowski, Jason Buda e Frankie Box. Drama, Reino Unido / EUA / França / Alemanha, 2024, 118 minutos.
"É bonito né? O quê? O dia." Talvez a mensagem geral de Bird, mais novo filme de Andrea Arnold e que está disponível na Mubi, seja mais simples do que a narrativa sugere, vamos combinar. No centro da jornada da protagonista - a adolescente Bailey (Nykiya Adams) - parece estar aquela típica história de amadurecimento, com todos os elementos do cinema alternativo de gênero: família disfuncional, pobreza, violência no entorno, falta de perspectivas ou mesmo diálogos impossíveis. Uma infelicidade geral que consome - e que é reforçada pelo aparato técnico, que vai da fotografia dessaturada, passando pelos elementos cênicos caóticos, até chegar à trilha sonora impecável. Só que quanto mais esse filme lindo avança, mais a gente percebe que a luta por uma vida melhor está em reconhecer as próprias limitações. Tentando superá-las naquilo que está ao alcance. Mas também abraçando meio que essa "geografia".
Já na primeira sequência da obra, temos Bailey na carona da scooter elétrica do pai, Bug (e ninguém melhor do que Barry Keoghan pra interpretar um trambiqueiro tatuado) que, mais adiante, anunciará o controverso noivado com a jovem Kayleigh (Frankie Box). Como se a vida já não fosse uma coleção de aparentes desastres, Bug quer que Bailey esteja bonita em um vestido de gosto duvidoso, para a cerimônia que ocorre no próximo sábado. Só que, por mais que Bug pareça se esforçar para amar a filha, assim como se dedica ao meio irmão Hunter (Jason Buda), as condições financeiras parecem bastante limitadas. A ponto de o sujeito capturar um sapo que ele acredita ser capaz de expelir uma substância de grande valor, que possibilitará uma reviravolta em termos de grana pra todos ali. Aliás, o tipo de situação meio mágica e sensorial, de crença meio que no abstrato e no poder simbólico que, em muitos casos, percorre o cinema de Arnold.
E talvez não seja por acaso que Bird (o sempre ótimo FranzRogowski) se apresente justamente como essa figura enigmática - um sujeito misterioso que parece guardar segredos do passado (especialmente em relação à sua família, que teria lhe abandonado ainda criança). Bailey conhece Bird após um episódio envolvendo Hunter, que integra uma milícia juvenil, dedicada a fazer justiça com as próprias mãos. Após uma ação que não dá muito certo envolvendo o grupo, Bailey precisa fugir da polícia, indo parar num descampado. Ela dorme no local. E amanhece nesse espaço idílico, meio isolado de tudo, com cavalos em volta, o vento soprando de forma misteriosa, dobrando as gramíneas. E Bird se aproximando como um esquisitão saído de uma obra de realismo fantástico. Dançando de forma torta. E elogiando a beleza da vida. É dele, aliás, a frase que abre essa resenha. A estranheza inicial dará início à uma amizade. Com Bailey empenhada em descobrir o paradeiro dos pais do novo amigo.
Sim, pode ser difícil encontrar beleza onde não parece haver, mas o caso é que família só muda de endereço. As decisões de Bug podem não ser as melhores, mas as intenções são. É ele quem é responsável por cuidar dos filhos e, a seu modo, faz isso. O que envolve, inclusive, incluir a protagonista nessa nova "vida" - e, observe como nem tudo é tão preto no branco, como no instante em que a jovem recorre justamente à Kayleigh, quando a sua primeira menstruação acontece. Entrecortado por uma trilha sonora absolutamente inebriante de nomes como Sleaford Mods, Blur, Coldplay e The Verve (num divertidíssimo apelo à nostalgia, com a música de "velho" tendo papel central nessa construção), o filme não fornece soluções fáceis. E nem opta pela estilização banal da violência, que poderia ser uma saída. Ao cabo há uma vida a viver e fugir pode não ser a melhor solução. Eu, honestamente, não imaginava terminar essa obra às lágrimas. Mas foi o que aconteceu. Há uma mensagem simples e poderosa de amor, de família, de afeto e de esperança em meio à desordem diária. É drama social eficiente, essencialmente humano, e pouco óbvio, que ainda aposta na fantasia e na alegoria como amplificador de ideias mais esperançosas. (Ah, importante: há uma brincadeira sobre uma canção em específico que é ótima! Vocês saberão quando ocorrer.)
De: Virginie Sauveur. Com Karin Viard, François Berléand, Annie Mercier e Nicolas Cazalé. Drama, França, 2023, 98 minutos.
"Ela não injetou hormônios para ser homem. Ela o fez para ser padre!" Assim como ocorreu no recente e ótimo Conclave (2024), Disfarce Divino (Magnificat) é mais um daqueles filmes a discutir os papeis de gênero na Igreja Católica. Mais precisamente no que diz respeito à ocupação de cargos de sacerdócio pelas mulheres - e de como isso pode parecer uma política bastante atrasada em tempos em que a sociedade, assim se espera, evolui. Na primeira cena do filme de Virginie Sauveur - que foi exibido no Festival Varilux e que agora está disponível na plataforma Amazon Prime -, a chanceler da diocese Charlotte (Karin Viard) recebe uma ligação, após a morte de um padre da paróquia local - seu nome é Pascal. Tudo parece ok, ele estava doente, só que, durante os procedimentos que encaminhariam o falecido para a cremação, vem a revelação bombástica: o padre, na realidade era uma mulher. Com genitália feminina. Seios. Escondidos. Por toda uma existência.
A situação, curiosa por natureza, deixa todos exasperados. E, na realidade, preocupados - especialmente com o risco desta verdade vir à tona, o que poderia ser um escândalo para a Igreja Católica. Sim, tudo poderia ficar meio que por baixo dos panos, mas o caso é que Charlotte fica realmente intrigada com o caso. Como é possível que, durante uma vida inteira, uma mulher tenha vestido a batina sem que ninguém ao redor soubesse? Pelo simples amor à sua vocação? É a partir disso que a protagonista inicia uma investigação bastante particular, que lhe levará à juventude do padre - que não apenas faria uma transição que lhe conferiria uma aparência mais masculina (com barba e tudo), mas que envolveria ainda uma troca de identidade. Uma troca de identidade com uma outra jovem - taco a taco -, que serviria para superar o ambiente conservador, de intolerância e de preconceito que povoa os bastidores da religião.
Em linhas gerais esse é um filme interessante, que reserva algumas surpresas que vão se descortinando aos poucos. No cerne está o atraso da Igreja para essas questões - e não são poucas as sequências de diáconos e arcebispos discutindo os rumos do catolicismo em meio à pautas progressistas e disputas políticas (e, admito, que a obra poderia ser ainda melhor se investisse mais nesses bastidores). Quando sai para sua jornada em busca do que teria acontecido, Charlotte vai ao setor de assistência social local, após o agente funerário ser chantageado para que o caso não chegue à público. Lá, a protagonista descobre que Pascal era um filho de mãe desconhecida que, aos cinco anos vai parar em um seminário no final dos anos 60. E é meio que lá que ele/ela recebe o chamado de Deus. Claro que nada será tão simples e há mais pessoas envolvidas.
Uma delas é a mãe adotiva de Pascal, Agathe (Annie Mercier), que lhe mostra uma foto da juventude do menino. Dando a entender que a responsável pelo registro possa lhe auxiliar de alguma maneira. DE lá para cá, Charlotte encontra outros irmãos do falecido, enquanto lida com as suas próprias angústias - especialmente aquelas que dizem respeito ao seu filho adolescente de 15 anos. Que também cresce sem o pai por perto, em um caso envolto em segredos obscuros e traumas do passado. Ao cabo, a obra marca seu ponto sem forçar a mão, trazendo a discussão de forma sofisticada, sutil e sem dificuldade para ser digerida. "Ele era um pacifista, uma figura gentil e discreta, um padre amado por todos", lembra o monsenhor Mével (François Bérleand), que contribuiu para que o segredo fosse mantido. "Eu teria coragem de expulsar essa mulher quanto ele tinha encontrado refúgio na fé?". É a pergunta que fica em um filme que trata o tema de forma adulta e, como cereja do bolo, sem ignorar o papel da ciência na equação.
De: Zach Cregger. Com Julia Garner, Josh Brolin, Cary Christopher, Alden Ehrenreich e Amy Madigan. Suspense, EUA, 2025, 129 minutos.
Vamos combinar que, se fosse um curta ou um média metragem, e talvez A Hora do Mal (Weapons) pudesse ser um dos grandes filmes do ano. Especialmente na primeira parte, a obra do diretor Zach Cregger é hábil em construir a atmosfera necessária para deixar o espectador em estado permanente de alerta. Atento à ambientação e ao caráter alegórico da narrativa, que parecem contribuir para preencher a produção de significados. Quem já leu qualquer resenha sobre, já sabe que essa é uma experiência que não se esgota quando os créditos sobem, afinal, são muitas as possibilidades de interpretação. E isso é tão bom que, se Cregger tivesse optado por manter a coisa no campo mais do simbólico, o resultado provavelmente seria mais efetivo. Resumidamente: talvez não precisasse um "monstro" do ponto de vista concreto, ou material, se o mal pudesse ser entendido como outro. Maior. Intangível. Abstrato, mas que está no tecido da sociedade. Nas suas vísceras. Entranhado.
Dividido em capítulos com os nomes dos personagens que, em alguma medida, protagonizam cada excerto, o filme começa com o sensacional trecho sobre Justine (Julia Garner), a professora de Ensino Fundamental que precisa lidar com um caso que impacta toda a comunidade da pequena Maybrook, na Pensilvânia - e que envolve o sumiço, inexplicável, de dezessete crianças da terceira série que está sob sua responsabilidade meio que, assim, sem mais nem menos. Misteriosamente, às 2h17 da manhã, todos os pequenos levantam de suas camas, descem as escadas, saem porta afora correndo, com os braços retesados para trás, em direção à escuridão. Ao nada. Para nunca mais serem vistas. Estranhamente, apenas uma das crianças permanece: o introvertido Alex (o ótimo Cary Christopher), que não parece ter muitas informações. Ou mesmo que esteja disposto a falar qualquer coisa.
A comunidade escolar exige uma imediata explicação. Não apenas da direção, mas também de Justine, da polícia, enfim, qualquer coisa que leve a alguma pista. Agindo como os pais desesperados do ótimo Os Suspeitos (2013), de Denis Villeneuve, o operário Archer Graff (Josh Brolin), o pai de uma das crianças desaparecidas, resolve iniciar por conta uma investigação - o que se desenrola no segundo ato, que recebe o nome do sujeito. Até esta parte o filme consegue preservar o clima instigante de tensão. Justine é acusada de negligência por parte dos pais - teria sido desligada de uma escola anterior em circunstâncias pouco claras, além de ter sido presa ao dirigir embriagada (o problema com álcool parece recorrente). Por não ser "flor que se cheire" alguns, como Archer, pensam que ela possa estar por trás do ocorrido com as crianças. Na ânsia por justiça, em uma sociedade punitivista, violenta (e armamentista) como a estadunidense, o barril de pólvora parece pronto a explodir. Com outros pequenos eventos contribuindo para essa escalada de tensão.
Parte fundamental da narrativa, a casa em que Alex vive surgirá envolta em mistério, com as janelas cobertas por jornais, a mobília suja e pais, excêntricos (pra dizer o mínimo) - isso sem contar uma outra parente que aparecerá mais adiante. E que meio que assustará geral. Aqui e ali as trucagens podem ser surpreendentes. Há outros personagens com boas histórias, como no caso do policial amigo de Justine - seu nome é Paul (Alden Ehrenreich) -, além de um drogadito de nome Anthony (Austin Abrams), que parece disposto a qualquer coisa pra manter seu vício. Só que, como afirmei, a partir da metade, a coisa desanda em uma busca pela simplificação. O que faz com que se deixe de lado a metáfora poderosa sobre violência, traumas, preconceitos, senso de justiça e luto, para uma aposta meio sem sentido em um componente estranhamente sobrenatural. Que quase vai no limite do lugar comum, do caricato e do preconceituoso. Tornando uma potente história exploratória que poderia ampliar as discussões sobre um sem fim de temas sociais atualmente em alta, em uma obra tola, que recorre ao mais óbvio dos chavões: o do monstrinho estranho que deve ser extirpado para que o final seja, minimamente, feliz. Decepcionante.
De: Danny e Michael Philippou. Com Sally Hawkins, Billy Barratt, Jonah Wren Phillips e Sora Wong. Terror / Drama, Austrália / EUA, 2025, 104 minutos.
[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS]
Da lenda egípcia de Osíris, passando por livros como Cemitério Maldito, de Stephen King, ou mesmo filmes como Hereditário (2018), de Ari Aster, não foram poucas as obras de arte que se ocuparam do tema dos mortos que "retornam" à vida. Ou de vivos que, diante de um contexto de luto, se empenharão em trazer de volta aqueles que tenham partido para uma melhor. Em muitos casos, essa acaba sendo uma boa desculpa para trabalhos que examinam traumas que emergem de cenários de perda, e quais os caminhos para a superação. No caso do recente Faça Ela Voltar (Bring Her Back) a coisa não parece assim tão profunda do ponto de vista psicológico - ainda que, aqui e ali, a obra dirigida pelos irmãos Danny e Michael Philippou espalhe alguns símbolos que nos ajudam a compreender as motivações de Laura (Sally Hawkins), a mãe enlutada que parece disposta a qualquer coisa pra trazer a falecida filha de volta à vida.
O filme inicia com uma experiência um tanto traumática para Andy (Billy Barratt) e sua meia-irmã, a jovem Piper (Sora Wong) - que tem um severo problema de visão que lhe permite ver apenas vultos e sombras -, que encontram o próprio pai morto, no chuveiro. Aparentemente ele tratava um câncer (ou não, vai saber). Após uma conversa com a assistente social, a dupla é enviada para morar com uma ex-conselheira da Instituição - seu nome é Laura (Sally Hawkins), uma excêntrica mãe também enlutada (ela perdeu a própria filha após um trágico afogamento, na piscina de casa) -, que também abriga um outro menino, no caso Oliver (o ótimo Jonah Wren Phillips). Oliver parece estranho e taciturno - seu olhar é fundo, meio denso, mas ao mesmo tempo disperso. O que combina com o cenário como um todo: uma casinha isolada no meio do nada, rodeada por uma floresta (um ethos inevitavelmente óbvio).
Como não poderia deixar de ser, tudo começa mais ou menos bem naquele ambiente. Andy estranha um pouco o carinho desmedido de Laura com Piper - talvez o fato de ela também ter perdido uma filha que, curiosamente, era cega. E tinha mais ou menos a mesma idade. A mesma altura, tudo. E, bom, não precisa ser nenhum adivinho para saber que, dali pra frente, coisas estranhas começarão a acontecer naquele ambiente. Especialmente por Laura, reiteradamente, colocar para rodar um vídeo que parece explicar uma espécie de ritual satânico, em que uma pessoa morta é trazida de volta à vida, com o uso de um hospedeiro (que meio que suga a alma do vivo, para depositá-la no morto, fazendo-o despertar). Sim, é tudo um tanto bizarro e a coisa vai escalando conforme a loucura de Laura (e de Oliver, que não compreendemos bem as motivações, inicialmente), avançam.
Em linhas gerais trata-se de uma obra tensa, sombria e que se utiliza, em alguma medida, do horror físico - que ficam evidenciadas nas impactantes transformações corporais de Oliver. Que sai de um menino que, de forma um tanto esquisita, resolve morder uma faca, até chegar em alguém que come mesas, objetos e a própria carne se for preciso. Tudo para saciar a fome de algo que parece estar parasitando, de forma oculta, seu pequeno corpo. Seu ser. Há no contexto uma ambiguidade sobre o que pode ter ocorrido, de fato, com a filha de Laura e isso nunca fica claro - sendo parte do mistério geral. Mas o caso é que trata-se de uma experiência que alterna momentos mais contemplativos, com outros um tanto movimentados e que traz o elementos sobrenatural como metáfora para a superação da dor.
De: Wes Anderson. Com Benicio Del Toro, Mia Threapleton, Michael Cera, Riz Ahmed e Tom Hanks. Comédia / Drama, EUA / Alemanha, 2025, 101 minutos.
Quem acompanha a carreira do Wes Anderson sabe que, meio que sempre, o seu cinema terá as mesmas características. Aliás, poucas vezes será tão fácil encontrar uma assinatura tão particular em filmes, como no caso do realizador - com sua paleta de cores invariavelmente vibrante, simetria geometricamente organizada, travellings hotizontais que nos levam de um personagem à outro e uma certa teatralidade no todo. Bom, e pra que o troço não se torne cansativo demais, repetitivo demais - aquela coisa da estética pela estética, sem um propósito mais claro -, restam, claro, as boas histórias. E se não é sempre que o diretor acerta, como no caso do recente Asteroid City (2023), com O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme) é possível afirmar que temos um grande filme. Tragicômico na medida certa e com aqueles personagens adoráveis e imperfeitos, em suas famílias disfuncionais.
Aqui, a comédia bobagenta e irônica tem como pano de fundo uma trama de espionagem, que envolve o industriário Anatole Zsa-Zsa Korda (Benicio Del Toro), um traficante de armas que pretende ampliar o seu império, mas que se vê em maus lençois quando o Governo, em uma manobra pra tentar conter as ambições do megaempresário, aumenta artificialmente os tributos de materiais utilizados na construção. O caso é que Korda é um trambiqueiro de marca maior e os agentes do Estado estão, de toda a forma, tentando barrá-lo. Aliás, na primeira sequência do filme, o sujeito escapa da morte após uma explosão em um de seus aviões - em uma tentativa de sabotagem. Preocupado com os rumos de seus negócios, o protagonista se (re)aproxima de sua única filha, a noviça Liesl (Mia Threapleton). A ideia é fazer com que ela abandone a Igreja e siga o projeto de expansão com a construção de uma série de projetos de engenharia.
Ao mesmo tempo, desesperado pelo aumento do preço de parafusos e roldanas, Korda empenhará uma complexa jornada pelo deserto, na intenção de visitar cada uma das obras - de túneis, hidrelétricas e vias fluviais -, na intenção de tentar diluir as futuras dívidas entre outros investidores. E, bom, não será preciso ser nenhum adivinho para perceber como esse microcosmo, em alguma medida, reflete justamente o macro, com suas ambições políticas, mesquinharias e práticas nem sempre éticas - o que pode ser percebido pela diversidade de sujeitos extravagantes que ele encontra pelo caminho, casos do príncipe fenício Farouk (Riz Ahmed), o investidor Leland (Tom Hanks), o revolucionário comunista Sergio (Richard Ayoade) e o gângster dono de uma boate Marseille Bob (Mathieu Amalric). Todos surgindo como motivos para uma série de piadas que quase parecem saídas de algum programa de humor dos anos 90.
Em uma delas, Korda é instigado a decidir o futuro das taxas (com suas fraudes e chantagens) em uma partida de basquete com Farouk e Leland e mais o desconfiado irmão e parceiro de negócios deste último, o mal-humorado Reagan (Bryan Cranston) - e talvez não sejam por acaso esses nomes de personagens, que aludem a figuras reais ou fictícias de um passado não tão distante (aliás, a trama se passa nos anos 50). Como se não bastassem as "duras" negociações de Korda, ele ainda precisa lidar com uma série de problemas familiares. Há os mal tratados filhos adotivos e um possível caso de adultériio, que envolveria o próprio irmão Nubar (Benedict Cumberbatch), que o teria traído com sua própria esposa, o que o teria levado, talvez, a assassina-la. O que gera uma desconfiança permanente em Liesl.
Com piadas que aludem a clássicos como Dr. Fantástico (1964) - em certa negociação, os envolvidos trocam armas de guerra, como bombas e granadas, como se fossem meros objetos domésticos -, e instantes que dobram a aposta na bizarrice da violência moderna, como no momento em que Maresille Bob ameaça se explodir em um atentado, caso as partes não concordem sobre as questões orçamentárias, esta é aquela obra que condensa suas críticas a toda a estrutura do capitalismo, com suas ambições, truculência e individualismo atroz. Repleto de grandes estrelas - ainda há os não citadas Scarlett Johansson (como a prima Hilda), Michael Cera (o tutor de Liesl), Rupert Friend (o agente do Governo Excalibur, que está empenhado em destruir o império de Korda) e, como não poderia deixar de ser, Bill Murray (que encarna, óbvio, Deus), esse é aquele projeto que diverte para além do aparato estético. Há alguma substância aqui. Em um conjunto que faz valer a pena.
Já faz umas três temporadas que sempre que a CMAT lança um novo disco, ele vai imediatamente pras cabeças, Ninguém por aqui deu muita bola quando ela entregou, em 2022, o absolutamente imperdível If My Wife New I'd Be Dead - nosso segundo colocado na relação daquele ano -, mas agora, com Euro-Country, tá com cara de que ela finalmente (e com justiça) vai furar a bolha. Até porque na lista de melhores artistas da última semana que ninguém ouviu (mas já deveriam ter ouvido), poucos terão a capacidade única de unir letras debochadas - pontuadas por uma série de críticas e comentários sociais e políticos ácidos e quase cínicos -, com violões country e arranjos pop perfeitos como Ciara Mary Alice Thompson. Como em seus registros anteriores, esse é um disco de dor e de humor, que ri de si, mas que também examina as crises atuais com sincera confiança.
Um bom exemplo dessa mistura pode ser percebido no sofisticado single Take A Sexy Picture of Me, que discute imagem e aceitação, a partir de uma experiência pessoal, em que a irlandesa sofreu uma onda de hate após um vídeo publicado no Instagram da BBC Radio 1, ano passado. "Nunca achei que fosse obesa e agora deveria ser presa por ter uma bunda grande e gorda", debochou à época, após ser surpreendida pela chuva de comentários atacando sua aparência. E a real é que essa é a habilidade de CMAT: a de pegar temas espinhosos para convertê-los em grandes canções, cheias de versos irônicos e de refrãos pegajosos. Político mas cintilante, reflexivo mas agridoce, esse é um álbum que parece se expandir a cada nova audição. O que faz com que ótimas músicas como When a Good Man Cries (sobre fazer um parceiro sofrer, mesmo que ele não tenha feito nada de errado) ou Running/Planning (a respeito de pressões sociais e planos conformistas) se tornem melhores a cada repetição!
De: Hiroshi Okuyama. Com Keitatsu Koshiyama, Sosuke Ikematsu e Kiara Nakanishi. Drama, Japão / França, 2024, 90 minutos.
Existe uma cena bastante singela ainda no início de Sol de Inverno (Boku no Ohisama) e que, em alguma medida, resume o encantamento daquilo que acompanharemos na obra do diretor Hiroshi Okuyama. Nela, o pequeno Takuya (Keitatsu Koshiyama) fica hipnotizado enquanto assiste a um grupo de meninas praticando patinação no gelo. A estação mais gelada do ano chegou, e o jovem troca o beisebol dos dias primaveris, pelo hóquei congelante, em que ele não parece se adaptar muito bem. Como goleiro - que é o que sobra pra quem não tem muita habilidade em qualquer esporte coletivo -, ele acaba levando uma dolorida "bolada" (ou discada, vá lá), que lhe dá um vergão junto às costelas. A real é que ele abomina com todas as forças o hóquei sobre o gelo. E o interesse pelas patinadoras não envolve necessariamente as meninas em si e, sim, a delicadeza do esporte que ele observa. Com seus gestos majestoso e elegância única.
Sim, como se fosse o menino apaixonado por balé clássico de Billy Elliot (2000), aqui temos um garoto que sonha em ser patinador artístico. Algo que ele nem entende direito por quê gosta. "Um esporte de garotas", debocha uma das meninas quando percebe Takuya - que, de quebra, sofre uma gagueira que lhe rende o apelido de Tata - ensaiando os primeiros (e um tanto desajeitados) passos. Só que no canto do rinque, o protagonista também é espionado pelo professor Arakawa (Sosuke Ikematsu), que fica comovido com as tentativas do menino, com suas repetidas quedas e jeito meio desengonçado. "Os patins de hóquei não servem para isso", explica o instrutor à Takuya, enquanto lhe estende um par ideal para a prática. "Considere isso um empréstimo", afirma. O que dá início a uma parceria e também a uma amizade entre treinador e aluno.
Claro que, diferentemente do que ocorre em filmes hollywoodianos, aqui não teremos um exame do preconceito e da homofobia tão acentuados, tão escancarados. As coisas ocorrem meio que pelas frestas, evoluindo com sutileza, assim como se espalham de forma econômica, mas vigorosa, os raios de luz que entram no complexo esportivo em que boa parte da ação ocorre. Como filme oriental, muito do que se diz é o não dito. Os silêncios são longos, assim como as sequências cheias de carisma em que a dupla celebra qualquer evolução. Tudo sempre meio na encolha pra não chamar a atenção. Incluído entre as garotas, Takuya passa a fazer dupla com a patinadora Sakura (Kiara Nakanishi), uma atleta bastante técnica, que será justamente o ponto de desequilíbrio. Ela parece nutrir uma certa paixão pelo professor, que mostra uma afetuosa (no melhor sentido) atenção ao seu novo pupilo. Além do fato de o instrutor ser gay - ele tem um namorado que reside com ele.
Em alguma medida, esse é um filme nunca exagerado. Como se emulasse a passagem das estações, aqui o que vale é o exercício de paciência. As sequências em que a família é envolvida surgem envoltas em uma aura enigmática, quase incerta. Há uma beleza onírica que se percebe já na primeira sequência do longa, quando um Takuya paralisado, percebe a queda dos primeiros flocos de neve que evidenciam a chegada da nova estação. O inverno ali naquela ilha japonesa será invariavelmente gelado, mas o sol será uma figura onipresente, mostrando que há calor em cada fragmento - o que é reforçado pela fotografia levemente granulada, de tons amarelados. Há uma maravilhosa sequência de treino em um lago congelado - cenário que retornará mais adiante -, com um outro sentido. Não há nada definitivo aqui. Apenas um exame sobre liberdade de fazer o que se ama. E de como isso pode ser fundamental na nossa formação como sujeitos.
De: Mike Flanagan. Com Tom Hiddleston, Chiwetel Ejiofor, Mark Hamill, Karen Gillan e Jacob Tremblay. Drama / Fantasia, EUA, 2025, 111 minutos.
Uma jovem artista de rua toca bateria em uma esquina qualquer. As pessoas passam, não dão muita bola, seguem suas vidas. Aquilo que a gente meio que vê nas grandes cidades, cotidianamente. Até o momento em que um sujeito bem vestido - com um terno bem cortado -, de pasta na mão, cruza por ela. E, de forma inesperada, para. Para, ouve, começa a absorver aquele ritmo cadenciado e inicia uma dança. Que começa econômica, mas evolui de forma expansiva, chamando a atenção de outros. Uma outra mulher é convidada pelo homem a dançar com ele, se propondo a conduzi-la. O que formará um conjunto belo e envolvente, e que talvez dê conta do caráter aleatório da existência. A gente nunca sabe onde está exatamente a linha de chegada, quem deixará marcas em nossas vidas, quais memórias teremos. Ou mesmo dores, desejos, arrependimentos. É meio óbvio que tudo isso nos percorra. E ao mesmo tempo muito lindo como A Vida de Chuck (The Life of Chuck) lida com todas essas questões.
A etapa em que o homem dança com a mulher, ao som de uma baterista em um dia tranquilo faz parte do segundo ato da obra de Mike Flanagan, inspirada em um conto recente de Stephen King (aliás, uma das especialidades do realizador, adaptar obras do autor de livros de mistério). Esse segmento - seu título é Artistas de Rua Para Sempre -, é meio que fundamental para a compreensão daquelas que parecem ser algumas das ideias centrais da produção. A de que não somos absolutamente nada e ninguém "na fila do pão", mas que ao mesmo tempo somos capazes de coisas maravilhosas. Chuck (Tom Hiddleston na fase adulta), o homem que dança, é apenas um contador que deixou o sonho de ser artista pelo caminho. Mas que reaviva esse ideal, justamente no momento em que encontra Taylor (Taylor Gordon), a baterista. Chuck ainda não sabe, mas tem apenas nove meses de vida pela frente. Ou vai ver talvez ele saiba e sinta isso. E não queira desperdiçar nenhuma oportunidade.
Importante que se diga que nenhuma análise que se faça desse belo projeto poderá ser definitiva. Essa é uma obra bastante aberta e cheia de possibilidades de interpretação. Chuck é alguém que morre com apenas 39 anos e, quando o filme começa, no exato instante em que o ocaso de sua existência parece em curso, ao mesmo tempo o nosso planeta parece ir pelo mesmo caminho. No ato 3, chamado de Obrigado, Chuck - sim, a coisa vai de trás pra frente, tornando tudo mais formidável - temos o professor de Ensino Médio, Marty Anderson (Chiwetel Ejiofor). Que parece enfastiado com os rumos da educação, ao mesmo tempo em que se depara com o caos ambiental que se instala - com grandes tsunamis, queimadas, vulcões e crateras que afetam sua vida e os demais -, que resulta na queda da internet, na perda de serviços telefônicos, da luz e da esperança como um todo. Desesperado, ele tenta ir ao encontro de sua ex-esposa Felicia (Karen Gillan), enquanto tudo o que enxerga são placas, outdoors e mensagens oficiais na TV, saudando a existência de um certo Chuck. Que parece ser ao mesmo tempo o último meme, e algum tipo de esperança que conecta todos ali ao espaço material.
Já na primeira parte, Eu Contenho Multidões, viajaremos para infância e para a juventude de Chuck, com suas memórias embotadas pela perda precoce dos pais em um acidente de carro, com ele sendo criado pela afável avó Sarah (Mia Sara) - que é quem estimula o protagonista a dançar - e pelo taciturno avô Albie (Mark Hamill), que se torna alcoólatra após a perda do filho. Na casa dos avós, permanece um mistério que envolve um quarto no sótão: a recomendação é de que ele nunca seja aberto. Sob hipótese alguma. Na juventude, os dissabores e as complexidades do crescer, com suas paixões gerais e incertezas, colidem com certo idealismo capaz de superar fantasmas literais, ou reais, que rondam a vida do menino. Fantasioso, eventualmente onírico, repleto de simbolismos e de metáforas sobre dor, perdas, memória, luto e amadurecimento e futuro, essa é uma das grandes obras da temporada e que nunca se fecha simplesmente, quando sobem os créditos. Somos uma partícula minúscula dentro da teoria do Calendário Cósmico - nos lembra o professor Marty em certa altura. E ainda assim, repletos de vida, de contradições e de experiências extraordinárias.