quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail)

De: Adam Elliot. Com Sarah Snook, Jacki Weaver, Kodi Smit-Mcphee e Eric Bana. Animação / Drama, Austrália, 2024, 95 minutos.

Vamos combinar que em tempos de inteligência artificial e de consumo rápido, um filme em stop motion como Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail) - um dos indicados ao Oscar na categoria Animação na edição desse ano - se torna ainda mais relevante. E bastam os primeiros minutos da obra dirigida por Adam Elliot - do igualmente ótimo Mary e Max: Uma Amizade Diferente (2009) - para que sejamos impactados pelo visual (e isso que um amontoado de entulho, em muitos casos, não parece ter assim tanta "beleza"). Mas esse é um projeto que se deleita em sua complexidade do ponto de vista técnico, ao mesmo tempo em que entrega uma narrativa simples e trágica sobre dois irmãos gêmeos que perdem a mãe durante o parto e, mais adiante, veem o próprio, que sofre de um quadro severo de apneia do sono, também padecer.

Sim, apesar de essa ser uma animação, é importante que se diga que não há nada de infantil aqui. Aliás, a própria classificação indicativa do projeto - voltado à maiores de 17 anos ou menores acompanhados dos pais -, deixa claro o fato de esta ser uma produção para adultos. Com temas complexos como luto e solidão e até fanatismo religioso, problemas de saúde e fetiches sexuais, surgindo aqui e ali como parte da narrativa. Na trama, a protagonista Grace (Charlotte Belsey na versão criança e Sarah Snook, na adulta) é quem conta a história - que tem como ponto de partida a trágica morte de Pinky (Jacki Weaver), uma ex dançarina de bordel e leitora compulsiva, que se torna uma espécie de amiga involuntária da jovem. Em seu leito de morte, Pinky grita um inesperado "potatoes" - como se fosse algum tipo de Rosebud dos novos tempos -, deixando uma pulga na orelha sobre o significado daquilo. O que é só uma desculpinha pra uma volta no tempo para que toda a história seja rememorada.

 


De forma divertida, Grace solta no jardim um de seus caracois - seu nome é Sylvia - e mais adiante entenderemos como ela se tornaria uma colecionadora desse tipo de molusco. Na volta no tempo, a protagonista narra como sofria bullying em sua juventude por conta de uma cicatriz acima de sua boca, resultado de uma operação de lábio leporino, e de como o seu irmão Gilbert (Mason Litsos na infância e Kodi Smit-Mcphee na fase adulta), a defendia de seus colegas provocadores. Aliás, a defendia a ponto de se oferecer para uma transfusão de sangue comovente durante sua cirurgia - o que lhe levaria a crer que morreria. São pequenos instantes que emocionam e que ajudam a construir a história, inspirada em eventos reais da própria juventude de Elliot, cheia de adversidades, que ajudariam na formação e no amadurecimento de Grace.

Em sua trajetória, Grace descreve desde o auxílio e um sem teto de quem se torna amiga - um magistrado de nome James (Eric Bana), que é destituído do cargo por se masturbar em público -, e de como viria a ser adotada por um excêntrico casal de swingers (sim, de troca de casais). Já Gilbert, um piromaníaco de carteirinha, acaba enviado à casa de uma família de fanáticos religiosos, que utiliza a sua intolerância para oprimir. O que gera uma série de instantes tragicômicos. A chegada de Pinky à vida de Grace também é descrita com riqueza de detalhes - sendo ela uma senhora de hábitos curiosos, que teve uma série de empregos, perdeu dois maridos, teve o dedo mindinho decepado e frequenta praias de nudismo. Já o candidato a namorado da protagonista, se insere na trama como um jovem provavelmente fetichista, que se aproveita dela pelo seu fascínio por "gordinhas". Esquisito, mas esperançoso, soturno mas cheio de humanidade, esse é um filme que une técnica e roteiro de forma inequivocamente honesta. O que faz valer cada segundo.

Nota: 8,5

 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Lorde (Virgin)

Quando Lorde lançou o Solar Power (2021), a opinião da crítica e do público foi meio que unânime: o terceiro disco da neozelandesa, por melhores que fossem as suas intenções, parecia meio deslocado do seu tempo. O mundo recém saía de uma pandemia, uma série de tensões perto em vias de ebulição e o álbum parecia um convite quase ingênuo a uma dança psicodélica de maturidade forçada. Bom, o fato é que não emplacou. Ainda mais depois do impacto de Melodrama (2017), nosso primeiro colocado na lista internacional daquele ano, que permanece, com seu apelo à dança solitária e frenética no escuro, como um dos registros mais importantes da década anterior. E, bom, passado todo esse tempo - e é quase inacreditável que a artista já esteja com doze anos de carreira -, chegamos à Virgin que é, com seus sintetizadores sombrios e letras bastante confessionais, um retorno às origens. Por mais batido que possa parecer esse conceito.

 


E esse tipo de renascimento observado nas canções - cheias daquela melancolia movimentada, que funciona com fones de ouvido na madrugada do quarto, mas também em danças hipnóticas nos inferninhos da vida -, também dialoga com uma série de aspectos da vida pessoal, de Lorde e que vão desde um término de relacionamento, passando por um transtorno disfórico pré-menstrual que ocorreria após ela parar de tomar anticoncepcional, até chegar às cobranças relacionadas à imagem pessoal e ligadas às exigências da indústria. O resultado é uma colação de canções que já nascem com aquela cara de hino com refrãos pegajosos, como no caso de Man of The Year (que investiga às complexidades de gênero), Favourite Daughter (sobre medos decorrentes da fama inesperada e a necessidade de aprovação) e Broken Glass (a respeito do impacto dos distúrbios alimentares). Visceral, sexy, adulto, mundano e totalmente conectado com os dilemas contemporâneos. Lorde sendo Lorde era só o que precisávamos nesse 2025.

Nota: 9,0 

Cinema - Amores Materialistas (Materialists)

De: Celine Song. Com Dakota Johnson, Pedro Pascal, Chris Evans e Zoe Winters. Drama / Romance, EUA / Finlândia, 2025, 116 minutos.

Vamos combinar que parte do magnetismo do cinema de Celine Song talvez esteja em sua capacidade de subverter pequenas lógicas. Ainda mais quando o assunto é o cinema e as expectativas criadas em relação ao que assistimos. No ótimo e elogiado Vidas Passadas (2023), por exemplo, ela brincou com as expectativas relacionadas ao primeiro amor. Do que poderia ter sido e nunca foi. E de como essas memórias ligadas às nossas paixões juvenis, muitas vezes podem surgir como um borrão idealizado. Como uma fantasia romantizada de uma outra época e que, verdade seja dita, muito provavelmente não existe mais. Afinal de contas as pessoas mudam e, que bom que é assim. Em seu novo projeto, Amores Materislistas (Materialists), a realizadora traz de volta um ethos meio batido, mas que costuma render em comédias românticas ou dramas de época: o casamento deve ser por amor ou por dinheiro?

Sim, a gente já viu essa história milhares de vezes e em tempos tão individualistas e de apelo à certas tradições o assunto parece receber uma injeção de oxigênio. Na trama, Dakota Johnson é Lucy, uma profissional que trabalha como casamenteira - meio que como um Tinder em forma de ser humano, que planilha candidatos solteiros, faz um levantamento de suas preferências em termos de idade, altura e condição financeira e tenta unir possíveis almas gêmeas. Um negócio que parece ser lucrativo junto à burguesia de Nova York, tanto que ela está prestes a celebrar a nona união entre pombinhos que não se conheciam e que agora estão prestes a seguir para o altar. E é justamente durante a festa de casamento de sua mais recente cliente, que ela conhece o charmosíssimo e elegante Harry (Pedro Pascal), um sujeito agradável que, nas impressões da profissional, é uma espécie de pão quente para os seus negócios. Solteiro, bem resolvido, com grana, é garantia de sucesso com suas clientes mais exaustas de tudo.

 


Só que, como nas tradições que envolvem obras do gênero, Harry não parece interessado em alguma das mulheres do catálogo de Lucy. O que ele deseja é a própria, com quem ensaia uma dança sensual que vai quase para além do simbólico. E como as coisas não costumam ser assim tão óbvias, há na vida de Lucy um terceiro integrante: no caso o garçom John (Chris Evans), um ator em meio período que luta para vencer na vida, enquanto as dívidas se acumulam (e as frustrações também). Por trafegar em um ambiente de tanta pompa e elegância, Lucy parece desejar ser parte daquele contexto de eventos chiques, gastronomia farta e bebidas sofisticadas. Harry, por mais que Lucy negue, tem o potencial para oferecer isso. Ao passo que o esforçado John, em meio ao desespero de um amor que nunca se resolve financeiramente, aparecerá em flashbacks bastante francos, encarnando o ex quebrado que calcula até os centavos na hora de oferecer um almoço de aniversário à protagonista ("não é que eu te odeie por ser pobre, mas nesse momento te odeio justamente por isso", afirma Lucy com uma franqueza atroz).

Para quem acredita que o amor possa superar todas as adversidades, inclusive as que envolvem a falta de dinheiro, a honestidade com que Lucy lê o mundo pode ser quase dolorida (ainda que a obra de Song possa preparar, aqui e ali, as suas ciladas). "Casamento é um negócio e sempre foi assim", "o jeito que você paga a conta de desconcerta", "um dia, sem motivo algum, vocês vão passar a se odiar, parar de fazer sexo, se trair", são algumas das frases práticas e quase niilistas que a protagonista desferirá com uma honestidade assombrosa, em meio a cenários luxuosos e que reforçam o prazer intelectual que é assistir pessoas tão bonitas, com discursos tão ambíguos e realistas, mas que denotam de forma vibrante a complexidade dos relacionamentos, com suas frustrações, vulnerabilidades, medos e incertezas. É, ao cabo, uma obra gostosa de ver e talvez não tão completa como Vidas Passadas. Mas tem uma beleza que foge daquele escopo óbvio de começo, meio e fim redondinho de comédia romântica mais previsível. Ainda que não seja necessariamente surpreendente. Ah, detalhe que não pode passar batido: a trilha sonora de nomes como The Ronettes, Cat Power, Harry Nilsson e Françoise Hardy é a cereja do bolo.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Hot Milk

De: Rebecca Lenkiewicz. Com Emma Mackey, Fiona Shaw, Vicky Krieps e Vincent Pérez. Drama, Reino Unidos, 2025, 93 minutos.

Mesmo quem não está assim tão familiarizado às alegorias cinematográficas será capaz de compreender o significado de um cachorro que, no contexto de um filme simplesmente late de forma contínua. Um barulho que ecoa ao fundo e que parece evidenciar o fato de haver algum incômodo ali. O cão do vizinho parece estar irremediavelmente preso. De forma desconfortável. Uma metáfora mais do que perfeita para a condição vivida pela jovem Sofia (Emma Mackey), no pastoso Hot Milk: "acorrentada" à própria mãe, Rose (a sempre ótima Fiona Shaw), que padece em uma cadeira de rodas, com dores excruciantes. Dores que, aliás, lhe perseguem desde a juventude, quando se separou do marido após uma série de experiências traumáticas. O que lhe impediu de andar com as próprias pernas. Um tipo de simbolismo que, em alguma medida, percorre toda a narrativa, que é inspirada em um livro de Deborah Levy.

Exibido no Festival de Berlim, esse é aquele tipo de obra que convida o espectador a tentar unir os pontos daquilo que parece ser uma jovem umbilicalmente conectada à sua mãe controladora, dependente (física e emocionalmente) e narcisista. Por ser cadeirante, Rose é incapaz de fazer qualquer coisa por conta própria. O próprio ato de servir um copo de água pode ser complicado - com tudo piorando a partir de implicâncias tolas a respeito da qualidade da bebida (que vem embutido de um alto grau de exigência do tipo de tratamento que a genitora, essa idosa tão sofrida, acredita merecer da filha). De férias na litorânea Almería, a dupla está programada para uma série de consultas com uma espécie de curandeiro local chamado de Gomez (Vincent Pérez), que toma algumas medidas drásticas, como a interrupção de certos tratamentos com medicamentos supostamente ineficazes e uma investigação mais atenta a respeito de fatos (traumáticos) da vida de Rose, que poderiam ter desencadeado as dores crônicas.

 


Só que esse ambiente praiano tão sensualmente caloroso e tão magneticamente quente também transformará Sofia que, mesmo com vinte e poucos anos, parece meio travada no que diz respeito aos relacionamentos. Há algo pronto a desabrochar - e o simples toque de um enfermeiro em certa altura, após a jovem ser queimada por uma água viva, parece exalar uma energia sexual vibrante (o que é reforçado pela sensualíssima desatenção quanto a um seio que pula para fora do biquíni de forma inesperada). E, como se já não bastasse esse clima meio febril e letárgico da orla marítima inebriante, a coisa ainda escala após Rose conhecer a enigmática Ingrid (Vicky Krieps), uma alemã que, com sua personalidade desapegada em todos os sentidos, surge como o espírito livre que fornece o ideal de uma vida oposta à da protagonista. Sem amarras e extrovertida, ainda que traumatizada em alguma medida.

Para aqueles que buscam um sentido maior naquilo que assistem, essa pode ser uma experiência eventualmente hermética e não muito fechada em uma caixinha. Sofia, por exemplo, é uma antropóloga em formação que nunca chegou a concluir os seus estudos, ao passo que a mãe é uma bibliotecária precocemente aposentada. Em meio a essa síndrome de coitadismo que avança para uma vida de frustrações e de dores nunca superadas, a idosa converte a existência da filha em um inferno para quem apenas existe para ser sua cuidadora. Envolta pela névoa litorânea cintilante e plácida, a jovem vai aos poucos quebrando essas correntes que a atam à mãe. O que envolve pequenas subversões - como soprar a fumaça do cigarro nas roupas que estão no varal ou mesmo quebrar um prato violentamente quando Sofia é impedida (em termos) de encontrar o próprio pai, que lhe abandonou aos 15 anos. O final ambíguo pode ser pouco revelador. Ainda que nos lembre que, em alguns casos, só atitudes extremas podem fazer com que ciclos se quebrem.

Nota: 7,0 

 

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Entre Nós, o Amor (Une Vie Rêvée)

De: Morgan Simon. Com Valeria Bruni Tedeschi, Félix Lefebvre e Lubna Azabal. Comédia / Romance / Drama, Bélgica / França, 2024, 97 minutos.

Uma simpática comédia dramática sobre as complexidades da relação mãe e filho e que parece nos lembrar o tempo todo da importância de viver a própria vida - e não a dos outros. E, de como isso pode ser decisivo para um ambiente doméstico mais pacífico. Sim, parece papinho meio de coach, mas o caso é que no carismático Entre Nós, o Amor (Une Vie Rêvée), que acaba de estrear na Reserva Imovision, a vida da protagonista Nicole (Valeria Bruni Tedeschi) só dá um giro de 180 graus depois que seu filho sai de casa, após uma briga feia. Aliás, por briga feia, leia-se uma discussão forte em que verdades duras vêm à tona e ressentimentos emergem em uma velocidade galopante. "Tenho vergonha de você quando estou com meus amigos. Queria que você não existisse, você é um ser velho e grotesco morrendo um pouco a cada dia", verbaliza o jovem Sérgio (Felix Lefebvre), contra a sua genitora, do alto de seus 19 anos.

E, não sejamos hipócritas, né galera, todo mundo que já brigou feio com os próprios pais sabe que a quantidade de palavras agressivas por metro quadrado costuma verter sem muito espaço pra reflexão, pra racionalidade. É horrível, mas meio que parte da vida, como lembra a afável Norah (Lubna Azabal), dona de um boteco da vizinhança frequentado por imigrantes que passam os dias fumando narguilé e observando o movimento. É Norah que se aproxima de Nicole quando esta parece estar na pior para lhe oferecer um café, um cigarro, um abraço, um beijo, um... algo a mais. "Na idade deles você também não estava de saco cheio dos seus pais?", questiona amistosamente à protagonista. Que chora, mas também passa a olhar para o outro lado diante da atenção quase desmedida da afetuosa Norah. Em meio as divagações, Nicole afirma não ter nada a oferecer. Ao que recebe como resposta um "a felicidade não é questão de dinheiro".

 


Sim, pode parecer utópico ignorar a parte financeira em favor do amor, mas parte dos motivos da grande briga entre Nicole e Sérgio é que ela tá completamente ferrada do ponto de vista de grana. Desempregada e endividada, ela tem se empenhado em conseguir um novo trabalho - recebendo negativas excêntricas de entrevistadores, como no instante em que seu currículo é negado por ela simplesmente morar longe do local ("isso pode fazer com que você se atrase"). Após ter sua conta no banco encerrada justamente por causa das dívidas, ela resolve tomar uma decisão drástica para não deixar seu filho na pior: oferecer o seu corpo para a ciência, após a sua morte. O que impediria Sérgio de não apenas herdar o problema financeiro da mãe, mas também evitar uma despesa de cinco mil euros que seriam necessários para o enterro. Um gesto de amor que é mal interpretado pelo rapaz. Que se revolta. E sai de casa.

Tudo soa bastante simples e é. Não é que não haja uma reflexão um pouco maior sobre questões políticas da França - há sequências de Macron na TV verbalizando as conquistas econômicas de seu País, enquanto alguns setores ainda sofrem pela falta do básico. A xenofobia que parece rondar os cantos também surge, aqui e ali, salpicada em instantes meio aleatórios, mas que servem como parte do conjunto, afinal de contas os problemas domésticos nunca surgem desconectados de dificuldades sociais mais amplas. "Essa não é a sua casa pra você me tratar assim", argumenta Nicole a um senegalês que a confronta no boteco, após uma cena mais quente entre ela e Norah. É o suficiente para que o mal entendido quase escale para uma crise geral envolvendo os refugiados. Só que nesse caso bastante específico o que comove mesmo é a relação doméstica de mãe e filho. "Só quero saber se você está bem e se vem jantar", pergunta uma sofrida e chorosa mãe após a horrível discussão. É família sendo família. É carinho seguido de pancada. É celebração que se alterna com a dor. É real e intenso. O que faz valer. 

Nota: 7,5

 

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - April (Ap'rili)

De: Dea Kulumbegashvili. Com Ia Sukhitashvili, Kakha Kintsurashvili e Merab Ninidze. Drama, Geórgia / Itália / França, 2025, 134 minutos

 "Sei que você faz abortos nas vilas. Você é uma assassina." A frase dita à médica obstetra Nina (Ia Sukhitashvili), por um pai enlutado, ainda no início de April (Ap'rili), o elogiado filme de Dea Kulumbegashvili que acaba de estrear na Mubi, serve não apenas para solucionar imediatamente aquilo que poderia ser um provável mistério da narrativa, mas também para evidenciar os preconceitos que envolvem a prática. Ainda mais em países em que a justiça reprodutiva e tudo que envolve os direitos das mulheres nesse campo, são tratados não como casos flagrantes de saúde pública e, sim, com decisões tomadas por rígidos códigos religiosos, que transbordam para dilemas morais profundos, talvez onde nem devesse existir dilema. Nina é uma excelente médica, respeitada por seus pares e que já realizou milhares de nascimentos no hospital em que trabalha. Mas, em certo dia, as coisas dão errado e um bebê nasce sem vida.

Para as pessoas do entorno, pouco importa que a gravidez não tenha sido informada ao hospital, num flagrante caso de negligência. Sem acompanhamento médico e com uma mãe desejando um parto normal, as coisas se complicam. "Aquela mulher sentiu um alívio ao ver que a criança tinha morrido. Ela estava tranquila, pacífica", argumenta Nina ao diretor do hospital, David (Kakha Kintsurashvili). Só que, pelo visto, nada disso importa muito quando, paralelamente, a protagonista cruza estradas de chão precarizadas para, aqui e ali, auxiliar jovens de pequenos vilarejos, muitas delas provavelmente vítimas de violência, sem desejar uma gravidez, a retirarem os fetos ainda em formação dos seus ventres. Aliás, o que é exibido em sequências bastante gráficas, que geram desconforto não pelo ato em si, mas pelas condições precárias em que ocorrem. Em mesas improvisadas, com toalhas plásticas e instrumentos nem sempre tão adequados.

 


Como um filme não hollywoodiano, esse vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Veneza não segue a lógica mais esperada em produções a respeito desse tema. Aqui não haverá sequências de tribunal ou com cidadãos "de bem" rabiscando o carro da protagonista com palavras de ódio ou intolerância ou outros tipos de eventos que seguem uma cartilha. Pelo contrário, para a diretora Dea Kulumbegashvili esta parece ser uma obra muito mais sobre sensações evocadas vindas de um plano quase abstrato, eventualmente onírico, do que de situações concretas que poderiam delimitar a narrativa. Não por acaso, a produção já abre com a cena de uma figura grotesca - uma espécie de monstro -, que se movimenta lentamente em um plano escuro, enquanto ao fundo ouvimos gritos e risadas que parecem ser de crianças pequenas. Um tipo de alegoria que retornará em diversos momentos, especialmente aqueles em que Nina parece confrontar a si própria (bem como suas decisões).

Sim, Nina tem uma vida solitária que envolve fugir das investidas do próprio David - que tem interesse nela (o que pode influenciar as tomadas de decisão futuras sobre sua continuidade no hospital) - e ter encontros fortuitos com homens desconhecidos de beira de estrada para satisfação sexual, com ela mesma não escapando da violência que emerge desses indivíduos. Ao cabo essa é uma obra complexa, que não reduz as figuras que encontramos à meras caricaturas, já que Nina parece trafegar entre a nobreza e a inconsequência dos seus atos, com os traumas da juventude - como no instante em que ela conta como a irmã quase perdeu a vida diante dela, que, paralisada, ficou sem ação -, retornando para lembrá-la que, sim, há uma certa monstruosidade que habita seu ser. Alternando longos planos sequência de chuvas torrenciais, estradas embarradas e dias cinzas, com os campos floridos da chegada da primavera, Dea constroi uma experiência selvagem e rústica, mas também meditativa e de fluidez lenta. É meio magnético justamente por fugir do óbvio. O que em tempos de massificação e de mais do mesmo, também tem valor.

Nota: 8,5 

 

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Jadsa (Big Buraco)

Vamos combinar que a figura da coisa grande, de tamanho maior (ou big), meio que funciona como um espectro onipresente no novo registro da baiana Jadsa. Em meio à emanações oníricas e sofisticadas que fundem jazz, samba rock e MPB e que sempre foram marca de sua carreira, não são poucas as menções ao enorme, ao gigante - nem que seja um gigante simbólico, uma alegoria para tempos de grandes expectativas, especialmente no que diz respeito à arte e seu imediatismo. Dos títulos das canções - Big Luv, Big Bang, 1000 Sensations, Big Mama, Big Buraco (que também nomeia o disco) , às letras provocativas e enigmáticas que parecem até maiores em sua simplicidade (As coisas acontecem quando querem / Quando crescem todo mundo vê / Não o caminho traçado a navalha / Mas o tamanho do bicho que é) - tudo remete a essa representação de profundidade, de intensidade.

 


Talvez uma audição descompromissada não resulte nessa percepção de imediato, mas em meio a sopros bem encaixados, efeitos que se espalham e percussão levemente experimental, o que se tem é um trabalho caloroso mesmo quando o assunto é o cotidiano. Por exemplo, na envolvente Big Bang, que abre o álbum, parece haver um certo apelo à importância das coisas simples (viver, comer e dormir bem) e da potência envolvida nisso. Já Tremedêra é aquela experiência brasileiríssima de jamelão, caju e mangaba e de metáforas sensuais, de sabores, amores e sotaques bem nossos. Expediente que se repete na sexy Sol na Pele, com seu refrão grudento e clima primaveril estilo Mahmundi. Em resumo, é o dia a dia em alegorias apaixonadas, pulsantes, de degustação de loucura e de outras sensações. Ao cabo, o buraco pode ser um lugar de aconchego também. Como vocês bem sabem.

Nota: 8,0 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Cine Baú - Nascida Ontem (Born Yesterday)

De: George Cukor. Com Judy Holliday, William Holden e Broderick Crawford. Comédia / Romance, EUA, 1950, 103 minutos.

"Impressionante a quantidade de coisas interessantes que se aprende lendo". Vamos combinar que a frase dita por Billie Dawn, personagem de Judy Holliday na comédia Nascida Ontem (Born Yesterday), hoje em dia soa quase óbvia, frente à tantas produções que já debateram o assunto. Sim, a educação é emancipadora, todos sabemos, e no caso da protagonista do divertido clássico de George Cukor, que completa 75 anos de lançamento em 2025, essa liberdade é (quase) literal. Já que a ficha dela cai justamente quando ela começa a se aprofundar em suas leituras. É com o estudo sobre os mais variados temas que a jovem perceberá, aos poucos, o quão absurda é a sua submissão ao tosco, mal educado e truculento Harry (Broderick Crawford) - um magnata do ferro velho, com quem ela estava por uma provável falta de autoestima.

Como se fosse a protagonista do recente Pobres Criaturas (2023), do Yorgos Lanthimos - mas com menos psicodelia e um discurso mais direto -, Billie tem uma nova chance de sair da bolha de opressão ao conhecer o jornalista Paul Verrall (William Holden), que vai ao encontro deles em Washington DC com a ideia de escrever uma matéria sobre os negócios (escusos) de Harry, que está na capital federal justamente para encontrar alguns lobistas. Só que o ricaço nega a entrevista com o repórter, mas se afeiçoa a ele. Resolvendo contratá-lo após um episódio em que o brutamontes acredita ter sido constrangido pela mulher, em um encontro com um congressista. Instruído a "educar" Billie para que ela tenha modos mais refinados nessas reuniões com figurões, Paul se aproxima dela e, bom não é preciso ser nenhum adivinho para saber que a ligação entre os dois não será apenas o de tutor e aluna.

 


Claro, estamos falando de uma obra de 1950 e é evidente que essa narrativa do homem que salva uma mulher para torná-la mais aceita socialmente soa ultrapassada. Mas há que se considerar o tempo em que o filme, inspirado na peça de teatro do escritor Garson Kanin, veio à público. Um tempo em que o machismo e o patriarcalismo costumavam relegar o papel da mulher a espaços sociais bastante restritos  e aqui não deixa de ser interessante observar como Billie sai da posição de esposa troféu improvisada de um burguês xucro que trata todas as pessoas, inclusive da sua equipe de assessores, com grosserias e aos berros, para se converter em uma mulher independente, capaz de tomar as próprias decisões de forma autônoma. Não por acaso, em um dos pontos altos da produção, Billie se recusa a assinar uma série de documentos comprometedores por finalmente compreender a natureza obscura daquela papelada (ela era sócia, afinal, de Harry).

Aliás, mais do que isso, como uma jovem meio que à frente do seu tempo e num apelo iminentemente feminista, é justamente Billie quem toma a iniciativa de (tentar) beijar Paul que, inicialmente se esquiva, mas que, mais adiante cai aos seus braços, conforme eles ampliam às visitas a museus, bibliotecas, teatros, memoriais e outros espaços públicos que apenas reforçam a conexão e a sintonia da dupla. A própria frase clássica de Thomas Jefferson, que mais adiante, num contexto de pós Segunda Guerra, poderia funcionar como libelo antifascista (Quando as pessoas temem o governo, isso é tirania; quando o governo teme as pessoas, isso é liberdade) surge como uma lembrança importante do que está em jogo ali, com Harry sendo o tirano simbólico e metafórico a oprimir Billie (que representa, numa alegoria mais do que livre, o povo). 

 

 

Alternando momentos comoventes, como aquele em que a protagonista narra à Paul sobre as cartas enviadas a seu pai, um homem justo e de caráter a quem ela admira (e com quem não conversava simplesmente pelas dificuldades de escrita); com outros engraçados, como no momento em que um Harry desesperado pergunta ao seu assessor se não há maneira de tornar Billie "burra outra vez", a obra de Cukor permanece essencialmente divertida, com seu texto ágil, situações comicamente inusitadas e mensagem valiosa sobre o poder do conhecimento ("é perigoso viver em um mundo de ignorantes" lembra alguém em certa altura e aí quando vê é negacionismo científico, apego à extrema direita e reacionarismo). Não por acaso, o filme figura em uma série de listas de melhores, como no caso dos 100 mais engraçados da história do American Film Institute (em um honroso 24º lugar). Vale resgatar!

Novidades em Streaming - Síndrome da Apatia (Quiet Life)

De: Alexandros Avranas. Com Grigoriy Dobrygin, Chulpan Khamatova, Miroslava Pashutina e Naomi Lamp. Drama, Grécia / Alemanha / Suécia / Estônia / França / Finlândia, 2025, 99 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor grego Alexandros Avranas sabe que seus filmes procuram examinar a barbárie e os horrores do mundo sempre de forma sutil, partindo de um microcosmo doméstico, com o grito abafado normalmente saindo pelas frestas. Ao espectador, assim como ocorre nas obras do compatriota Yorgos Lanthimos - de projetos estranhos e diversos como Dente Canino (2009), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e Pobres Criaturas (2023) - cabe unir os pontos para compreender melhor aquilo que sempre parece estar uma camada abaixo. Foi assim com o impressionante Miss Violence (2013) - em que a violência sexual contra menores e o incesto emergem como parte da fratura de uma família traumatizada por um suicídio -, é assim também com Síndrome da Apatia (Quiet Life), produção que estreou na última semana na plataforma Reserva Imovision.

A trama é simples e, por mais excêntrica que pareça, é inspirada em eventos reais. Na história um casal de refugiados russos - Sergei (Grigoriy Dobrygin) e e Natalia (Chulpan Khamatova) -, que alega ter chegado à Suécia por medo de retaliações do Governo, tem o seu pedido de asilo político negado por falta de evidências dessa suposta violação. Após o ocorrido, uma das filhas, a jovem Katja (Miroslava Pashutina), simplesmente desmaia na rua. E, resumidamente, nunca mais acorda. Sendo diagnosticada, localmente, com a síndrome da resignação, uma espécie de curiosa condição psicológica que coloca crianças e adolescentes, geralmente filhos de imigrantes, em um estado letárgico, catatônico. Como se fosse um sono permanente, o que os impede de comer, andar ou falar - um quadro que pode durar semanas, meses ou anos e que seria uma resposta à situações de trauma e de adversidade.

 


O tema, diga-se de passagem já foi retratado no documentário em curta-metragem A Vida em Mim (2019), que chegou a ser indicado ao Oscar em sua categoria naquele ano. E que revela como centenas de crianças foram, misteriosamente, acometidas pela síndrome que segue tendo suas causas desconhecidas. Já na obra de Avranas, o que se vê é a luta do casal protagonista em meio a cubículos de hospital e outros ambientes opressores, não apenas para prosseguir após o ocorrido com Katja, mas também para obter o documento que ateste a autorização para residência. O que envolverá a participação da outra filha, a adolescente Alina (Naomi Lamp), que será encarregada de contar aos representantes da imigração a história de agressão que ela supostamente teria testemunhado contra o seu pai - um professor em seu País de origem , e que poderia contribuir para a obtenção do visto.

Sem muita brecha para outros mistérios - ainda que a produção se empenhe em conceder à narrativa a ideia geral de metáfora para traumas atuais que envolvem xenofobia, crises imigratórias, burocracias estatais, indiferença à dor do outro e outros temas políticos e sociais (tudo muito de passagem) -, o filme se esforça em evidenciar, talvez forçando um pouco a barra, o significado do silêncio frente às injustiças. Ainda que, como no caso dos repulsivos episódios recentes do nosso congresso brasileiro - com deputados de extrema direita colando esparadrapos em suas bocas, para denunciar uma ditadura existente somente na cabeça alucinada deles -, essas ideias soem totalmente deturpadas, é importante lembrar que não devemos nos calar, nem ficarmos "apáticos" frente ao sofrimento alheio. É aquela pulguinha que fica.

Nota: 7,0 

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Annahstasia (Tether)

"Talvez eu seja uma moralista / Uma anticapitalista / Que vende seus sonhos por grana / Pra comprar seda e veludo". Pesquisando um pouco sobre a história da Annahstasia eu achei curioso que, próxima dos 30 anos de idade, e com essa voz de veludo de Tracy Chapman moderna, ela estivesse lançando apenas o seu primeiro disco. Mas as coisas logo ficaram claras: assim que surgiu para o mundo ainda adolescente, ensaiando as primeiras canções, não demorou para que um grupo de empresários quisesse transformá-la meio que na marra na mais nova estrela da temporada. Uma daquelas cantoras de pop e R&B insípidas, que existem a rodo por aí, ideais para o consumo rápido - e para o esquecimento idem. Mas a artista tinha outros objetivos. Que parecem ficar evidentes nas letras bastante íntimas e quase explícitas, como no caso da ótima Silk and Velvet, que abre esse pequeno texto.

 


Bater de frente teve seu ônus, mas também seu bônus, como parece ficar evidente na audição de Tether. Esse é um daqueles discos com alma, que pega o folk e o rock e converte-o em algo quase espiritual, meio místico. Uma experiência elevada de arte para além da música. Que se escava pelas profundezas de forma densa, ainda que tudo pareça muito simples, já que a grande maioria das canções são feitas com violão, percussão e pianos minimalistas e efeitos econômicos. A voz quente e densa de Annahstasia é daquelas que aconchega, mesmo quando os versos surgem rasgantes, como no caso da ótima Believer (E eu só quero brincar de faz de conta às vezes / Mas eu preciso que você acredite / Que estou tentando o meu melhor / Então não me descarte como todos os outros), que encerra o disco em um gospel de estilo angustiado, com melodias pouco óbvias. É disco pra colocar no repeat. E ir absorvendo aos poucos.

Nota: 8,5 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Cinema - Filhos (Vogter)

De: Gustav Möller. Com Sidse Babett Knudsen, Sebastian Bull Sarning e Dar Salim. Drama, Dinamarca / Suécia, 2024, 94 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS] 

Existe um filme alternativo dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne chamado O Filho (2001) que, de forma muito resumida, conta a história de um carpinteiro enlutado, que resolve contratar justamente o assassino do próprio filho, em um programa de ressocialização de adolescentes que ele participa. É uma experiência áspera e complexa, mas que acena com esperança para um mundo em que a violência e o "olho por olho, dente por dente" parecem reger os códigos atuais da sociedade. E, enquanto assistia ao excelente Filhos (Vogter), projeto dinamarquês que está em cartaz nos cinemas, foi meio inevitável não pensar na obra dos Dardenne. Não apenas pelas semelhanças na história, mas também pelo estilo econômico, cheio de sutilezas e de silêncios que falam muito, adotado por Gustav Möller, que é diretor do ótimo Culpa (2018).

Na trama, Eva (Sidse Babett Knudsen) é uma agente carcerária que parece ter uma retidão moral incorrigível. Só pelos seus modos com os presos - sempre educada, preocupada em resolver problemas pequenos ou grandes (como as filas para o banho ou uma boa condução das aulas de matemática ou de ioga) - é possível perceber que ela é alguém que acredita, de fato, no potencial regenerativo do sistema. Especialmente quando o assunto são os criminosos que cumprem penas mais leves. Só que a coisa muda de figura quando ela nota a chegada de um misterioso preso a uma ala em que estão infratores envolvidos em crimes mais sérios. O que é justamente o caso de Mikkel (Sebastian Bull Sarning), que é acusado de ter assassinado um outro preso por motivos fúteis (como saberemos mais adiante). Há, tem também um outro detalhezinho importante, nada de mais: o jovem morto é o filho de Eva.

 


Claro que não é preciso ser nenhum gênio pra perceber que há caroço nesse angu. Quando Mikkel chega, Eva trata logo de mexer os pauzinhos para que ela seja deslocada justamente para a ala onde está o rapaz. Mesmo sendo alertado por Rami (Dar Salim), o chefe do departamento, dos riscos que ela corre no local. Os olhares demorados da agente, a sua paciência comovente em observá-lo à distância e a sua disposição em confrontá-lo nos assuntos mais minúsculos possíveis (como no momento em que ela lhe nega um maço de cigarros), acirrarão os ânimos e facilitarão a compreensão daquele contexto por parte do espectador. Especialmente para aqueles que já estão acostumados a esse tipo de gramática fílmica, de obras repletas de ambiguidades e de se soluções nunca óbvias. Com os próprios traumas e segredos do passado de Eva, servindo como um inesperado combustível jogado sobre o fogo.

De tensão crescente, o projeto é daqueles que vão escalando aos poucos - o que é reforçado por uma certa claustrofobia que rege o todo. Seja nos cubículos apertados ou nos corredores sufocantes, em que não há nenhuma janela, em que a luz mal se vê. Assim como no caso de Olivier, o protagonista de O Filho, que não parece muito bem saber o que fazer com o jovem, após contratá-lo - ainda que o espectro da vingança ronde sua mente meio que o tempo todo -, aqui temos também uma agente penitenciária que promove uma luta interna muito maior do que aquela contra um sistema supostamente injusto. Em certa altura, após uma confusão na cela de Mikkel, Rami argumenta com Eva, lembrando-a que ele permaneceu uma semana de castigo na solitária. O que mais pode ser feito, afinal? Talvez haja pessoas que "não possam ser salvas", lembra o mesmo Rami. A frase de múltiplos significados, é daquelas que bate forte. Ficando conosco quando os créditos sobem.

Nota: 8,5

 

Novidades em Streaming - Você é o Universo (Ти – Космос)

De: Pawlo Ostrikow. Com Volodymyr Kravchuk, Alexia Depicker e Leonid Popadko. Drama / Ficção Científica / Comédia, Ucrânia, 2024, 100 minutos.

Será que o ucraniano Você é o Universo (Ти – Космос) é uma ficção científica de tintas existencialistas sobre o fim do mundo e o apocalipse climático, ou apenas meio que uma indireta fílmica sobre a indisponibilidade das pessoas para a construção de laços mais sólidos em tempos tão fragmentadamente líquidos (com o perdão da mais óbvia e cansativa citação de Bauman)? Parte obra catastrofista em que o espaço é o limite, parte carrossel do Insta com reflexões supostamente profundas a respeito da ausência de responsabilidade afetiva na era digital, o filme do diretor Pawlo Ostrikow, que está disponível na Reserva Imovision, também tem a chance de não ser nada disso. Nem uma coisa nem outra. Apenas uma aventura, vai ver, sobre solidão na pós-modernidade, com um astronauta em sua nave nos confins do universo, servindo como a base para a fundamentação desse tipo de alegoria. Uma história que meio que sempre existiu, mas que gostamos de voltar a contar.

Na trama, Andriy (Volodymyr Kravchuk) é uma espécie de transportador de cargas espacial, que tem como trabalho levar resíduos nucleares radioativos para o fim do mundo do espaço - mais precisamente para o satélite de Júpiter, Calisto. Uma missão solitária que ele faz de forma permanente, com viagens de ida e volta de dois anos cada. Com toneladas de lixo a bordo. O resumo da ópera é de que, após 150 anos de uso desse tipo de energia, houve um acúmulo de radiação em instalações provisórias, que poderia comprometer a vida em nosso planeta (com tudo sendo explicado em uma bem humorada animação ainda no começo do filme). Bom, o caso é que, em certo ponto, uma das missões dá meio que errado e a Terra explode - sinceramente, admito que não entendi se uma coisa estava relacionada a outra. Impedido de retornar pro nosso mundinho, Andriy parece condenado a vagar pelo espaço. Enquanto tiver combustível. Ou enquanto tiver ânimo pra sobreviver.

 


Resignado, o protagonista revolve se entupir de comida - ele ainda tem estoque para alguns meses -, enquanto consome discos de vinil que, convenientemente, compõem uma decoração que lembra um mapa dos planetas em sua parede. Há também a necessidade de se desviar dos detritos da própria Terra, o que ele faz se "escondendo" atrás da Calisto. Para se distrair, ele mantém conversas nada empolgantes com o robô Maxim (Leonid Popadko) - uma mescla do Hal-9000 de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e o Gerty, o computador de bordo de uma das grandes e esnobadas obras do cinema alternativo, o ótimo Lunar (2009) -, que lhe conta umas piadas meio de tiozão do pavê só que pioradas. Na tela da nave, Andriy recebe instruções de engravatados xaropes, que estão insatisfeitos com os rumos da missão - aliás, essa transmissão é interrompida quando o sujeito, enfurecido, quebra o televisor.

Tudo vai mais ou menos nesse rumo até o dia em que ele recebe em seu computador de bordo, de forma inesperada, uma mensagem de uma jovem francesa de nome Catherine (Alexia Depicker), que alega estar em uma estação espacial perto de Saturno. Utilizando a mesma frequência e um tradutor, os dois iniciam uma conversa amistosa e mundana, nesse Tinder em que nenhum dos dois sabe exatamente como é o rosto do outro - o que envolverá instantes poéticos, como a tentativa de Andriy de recriar a face de Catherine usando um tipo de massa de modelar (a plasticina). A comunicação é meio complicada, já que o envio e a resposta levam mais de três horas pra ocorrer. Mas mesmo assim, Andriy decide ir ao encontro da sua nova amiga, em uma viagem de milhões de quilômetros de distância. Quem quer dá um jeito, já diria aquela publicação da Nozy. Sim, se a gente forçar um pouquinho a amizade também será possível encontrar, aqui e ali, metáforas sobre guerras (e não é demais lembrar que a própria Ucrânia segue em conflito), pandemias, isolamento, crises imigratórias e outros. Vai de cada um. E o resultado será tocante e comovente, nos fazendo pensar sobre a importância dos laços, das conexões e daquilo que nos faz, de fato, humanos.

Nota: 8,0

 

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Pulp (More)

Só o Pulp pra lançar um disco tão... Pulp em pleno 2025. E eu confesso que eu não estava preparado pra simplesmente gostar do álbum dos ingleses. Sabe aquele retorno que tu tá pronto pra achincalhar, meio que no modo "nem dei play já não gostei"? A minha energia tava meio que nessas até o momento de ouvir More a primeira vez. A segunda. A terceira. Nesse momento eu já tava cantando junto o refrão grudento de Grown Ups, uma canção longa e gloriosa sobre amadurecimento, cheia de citações culturais e uma poesia que faz a gente navegar diretamente praquele climinha brit pop 90 (Foi na noite que me deixaram sair de casa / Foi na noite em que peguei o ônibus sozinho / E a cidade deslizava pelas janelas / Como um filme que estava apenas começando). Vinte e quatro anos de passaram desde o último registro de Jarvis Cocker e companhia e, bem, eles soam como se estivessem nisso há décadas (e a real é que estão).

 


Em entrevista, o vocalista afirmou que tudo começou com a enevoada The Hymn of the North, que começou a ser tocada nos shows desde que o grupo voltou aos palcos em 2023. Foi tudo rápido até que um novo trabalho fosse formatado e a real é que talvez houvesse bastante coisa acumulada nesses anos todos, porque More nunca faz feio como uma continuação meio que natural dos clássicos Different Class (1995), This Is Hardcore (1998) e We Love Life (2001) que eu, nas minhas madrugadas de Lado B na MTV, cresci ouvindo (e amando). Mesclando a possibilidade de dar uns passinhos animados nos inferninhos alternativos, mas sem deixar de lado as letras provocativas e cheias de ironias sobre temas sérios como fanatismo religioso (Slow Jam), ou mundanos como amores platônicos e perturbados (Tina) ou a importância de dizer um "eu te amo" (Got to Have Love), a banda constroi um disco que surpreende pela vitalidade. Aliás, Got to Have Love tem uma das melhores frases do trabalho: Sem amor você está apenas se masturbando dentro de outra pessoa. O homem sabe das coisas.

Nota: 8,5 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Centenas de Castores (Hundreds of Beavers)

De: Mike Cheslik. Com Ryland Brickson Cole Tews, Doug Mancheski, Olivia Graves e Wes Tank. Comédia / Aventura, EUA, 2024, 108 minutos.

Preciso ser honesto com vocês: fazia tempo que não assistia a um filme tão chapado, desvairado, maluco, demente e, acima de tudo, divertido, do que esse inesperado Centenas de Castores (Hundreds of Beavers), que está disponível para aluguel em plataformas como a da Amazon. Feita com orçamento baixíssimo (cerca de US$ 150 mil), a produção consegue um feito raro: fazer rir naturalmente, sem forçação de barra. O estilo anárquico e de curioso espírito formalista da obra de estreia do diretor Mike Cheslik, pode ser percebido já nos primeiros três minutos, quando, em uma sequência que une animação e musical - com uma canção de tintas folclóricas sendo vigorosamente entoada -, o protagonista, um produtor de sidra meio desastrado, é apresentado. Seu nome é Jean Kayak (Ryland Brickson Cole Tews) e ele acaba de perder todo o seu pomar de maçãs, após um acidente com os barris que reservavam a bebida alcoólica (que era bastante consumida por viajantes locais).

Quando a gente fala assim, parece tudo bastante correto e até eventualmente trágico. E, talvez na vida real meio que fosse. Mas aqui é tudo tão nonsense que, mesmo quando as coisas dão errado, o resultado é a gargalhada. Filmado todo em preto e branco, sem diálogos e com alguns intertítulos - alguns até com frases aleatórias que parecem saídas de um livro barato de empreendedorismo coach -, o filme adota um estilo cartunesco, com Jean sendo o sujeito que perde tudo e que parte em uma jornada solitária. Inicialmente, para tentar simplesmente matar sua fome - o que envolve tentativas frustradas de caçadas de coelhos, peixes e ovos enormes dispostos em ninhos sobre árvores altíssimas (com ele sendo meio que sempre derrotado num estilo Coiote e Papa Léguas) - e, mais adiante, para tentar conseguir um casamento com a charmosa filha (Olivia Graves) de um exigente comerciante local (Doug Mancheski).

 


Em uma produção do tipo, é importante não levar nada muito a sério. Os coelhos, por exemplo, são simplesmente seres humanos adultos, vestidos com as roupas alvas dos animais. Com dentes e orelhas enormes. O mesmo valendo para castores, lobos, guaxinins, cães e até cavalos. Todos se comportando como os bichos - mas também sendo meio humanos (como no instante em que um grupo de cachorros joga cartas madrugada adentro ou no momento em que uma dupla de coelhos senta a porrada no protagonista após as coisas saírem errado). Jean sofre nesse ambiente inóspito, essencialmente gelado, que parece saído de algum local ermo no Século XIX. Com as coisas mudando um pouco de figura quando ele é salvo, após um acidente, por um caçador andarilho (Wes Tank). É com ele que Jean aprenderá a arte das armadilhas. Que lhe possibilitará adotar maneiras criativas - com um toque pessoal, claro -, na hora de tentar aprisionar os animais. Para trocá-los com o comerciante.

A quantidade de piadas em cascata - bobas e hilárias - é parte do charme. É um filme de humor físico, de quedas, de tombos, de dentes despedaçados, de cabeças batidas, de dedos sangrando após serem mordidos por piranhas, de aves gigantes evacuando e outras bicando o rosto de Jean. De castores vilanescos construindo uma enorme arca e mastigando milhares de troncos de árvores. É um conjunto imprevisível e mesmo aquilo que poderia parecer um tipo de gag meio barata ou de mau gosto - como no momento em que Jean toma água do rio para, mais a frente descobrir um que um coelho urina vastamente corredeira acima -, ocorre de forma tão inesperada, que é quase impossível ficar alheio. Sim, talvez nem todo mundo simpatize com o clima absurdista e sem limites, que exige uma boa dose de suspensão de descrença. Mas quem se aventurar sem grandes expectativas nessa narrativa minimalista, frenética e repleta de efeitos especiais caseiros, feitos na raça, poderá se maravilhar com esse tipo de cinema nunca óbvio. E que usa suas referências - Chaplin e Monty Phyton, games noventistas e revistas em quadrinhos underground - com personalidade e criatividade infinitas.

Nota: 8,5