quarta-feira, 18 de junho de 2025

Cinema - Homem Com H

De: Esmir Filho. Com Jesuíta Barbosa, Caroline Abras, Hermila Guedes, Bruno Montaleone e Rômulo Braga. Drama / Biografia, Brasil, 2025, 129 minutos.

Enquanto nos encaminhávamos para o final da sessão de Homem com H, que estreou ontem na Netflix, virei pra minha companheira e disse: "que bonita uma homenagem dessas ainda em vida". Sim, porque a meu ver, o filme dirigido por Esmir Filho - do premiadíssimo Os Famosos e Os Duendes da Morte (2009) -, é também isso: uma justa maneira de enaltecer um dos maiores artistas ainda vivos e em atuação, que temos a alegria de acompanhar. Falar que Ney Matogrosso era um iconoclasta, um sujeito que quebrava (e segue quebrando) paradigmas, que era e sempre foi um artista com "A" maiúsculo, é meio que chover no molhado. Mas o caso é que, nos tempos que vivemos, esse óbvio, por vezes precisa ser dito. Precisa ser lembrado. Porque o Ney é esse sujeito complexo, furioso, de sexualidade diversa, de corpo sinuoso e ondulante, que, de quebra, ainda tem uma voz única, que segue nos encantando. E, de fato, assistir a tudo isso na telinha é um deleite.

Sim, os cracudos de cinebiografias certamente lamentarão a ausência de polêmicas, de outras histórias importantes ou curiosas ou de outros episódios que marcam a sua trajetória - e que integram o livro de Julio Maria no qual o projeto se inspira. Mas como fazer isso em uma obra de duas horas e pouco? Méritos pro Esmir que, não apenas tentou, mas conseguiu dar um panorama diversificado das origens do menino humilde nascido no Mato Grosso do Sul, que precisava lidar com seu pai militar - que se exasperava com seus modos afeminados -, passando pelas descobertas sexuais e artísticas em meio a um País que mergulharia na Ditadura Militar, até chegar a consolidação daquela figura excêntrica, visceral, escandalosa e cheia de carisma que vemos nos palcos, sempre com adereços vibrantes, figurinos ambíguos e uma presença única. Daquelas que hipnotiza. Assim como ele mesmo, quando menino, seria hipnotizado pela vedete Elvira Pagã (em participação especialíssima da cantora Céu), ainda na infância.

 


Aliás, essa mescla meio bucólica, meio roqueira e polvilhada por tintas neon e de lantejoulas em palcos grandes ou pequenos, que marcariam as apresentações de Ney Matogrosso Brasil afora - fosse nos Secos e Molhados ou mais tarde, em carreira solo -, surge a todo instante, em memórias juvenis ou mesmo em improvisos em estúdio, que o levariam a interpretar com energia única as canções escolhidas para seus discos. Por sinal, essa capacidade meio que de domar a natureza, carregá-la consigo como se ele mesmo fosse também um bicho saído do meio do mato, de uma selva vinda sei lá de onde, surge nas entrelinhas em alegorias muito bem construídas, como no instante em que o artista simplesmente acorda com uma cobra serpenteando em seu peito nu para, sem nenhuma surpresa, recolhê-la e levá-la para uma espécie de criadouro que, aparentemente, ele mantinha em casa (e admito não ter pesquisado se isso era real ou não e, em muitos casos, prefiro a mística do que a verdade).

E, por fim, não dá pra falar de um filme desses sem citar a interpretação magnética de Jesuíta Barbosa, que preenche cada frame da tela com sua presença envolvente, eloquente, única, o que contribuí para que a homenagem nunca soe excessiva, esquemática ou caricatural - por mais excessivos que os trejeitos e os olhares intensos e as curvas corporais improváveis sugiram o contrário. Em certa altura, quando gravava um vídeo para o clássico Sangue Latino, que seria exibido na TV, um dos diretores de filmagem lhe alerta de que evite olhar para a câmera. Mas Ney não se segura. Olha pra nós de forma quase invasiva, a nos desnudar - esse nosso voyeurismo do todo, do corpo, do sangue, das lágrimas e dos fluídos que vertem por todos os lados quando nos deparamos com uma experiência fílmica como essa. Ney Matogrosso disse certa vez: "Sou ousado, sim, sou atrevido, sim, porque eu preciso ser, porque o Brasil está mais careta do que era". Num País em que a extrema direita, o evangelistão, o preconceito e o reacionarismo seguem ditando as regras e passando a boiada como se nada fosse, uma obra como essa não é apenas um regozijo de transgressão. Ela é necessária. O Brasil é pouco para o Ney e tudo o que ele representa. E que bom que seja assim.

Nota: 9,0 

 

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