segunda-feira, 17 de março de 2025

Novidades em Streaming - Mil e Um (A Thousand and One)

De: A.V. Rockwell. Com Teyana Taylor, Aaron Kingsley Adetola, William Catlett e Josiah Cross. Drama, EUA, 2023, 117 minutos.

 "Por quê você sempre me abandona?". Existe um sentimento meio ambíguo na pergunta feita pelo jovem Terry (Aaron Kingsley Adetola) a sua mãe Inez (Teyana Taylor), ainda no começo do impactante Mil e Um (A Thousand and One), obra que venceria o Prêmio do Júri no Festival de Sundance de 2023 e que, agora, chega a Netflix. Afinal de contas, quem abandona quem em uma cidade (e em um bairro) que cresce, se modifica, se embranquece, se gentrifica? Inez é claramente uma jovem mãe fraturada, calejada que, mesmo com poucos anos de vida, aparenta carregar o mundo nas costas - tanto que quando ela sai da prisão, parece se mover de forma frenética, urgente, por meio de carros e prédios e fios em um Brooklyn urbano e caótico. Ela é uma cabeleireira que precisa correr atrás dos meses que se esvaíram atrás das grades. Enquanto tenta se reaproximar do filho que, abandonado com apenas dois anos de idade (de acordo com suas memórias), agora reside em uma casa adotiva.

Como mulher preta, periférica, sem muita perspectiva e sem nenhum tipo de amparo do Estado, Inez toma uma medida meio desesperada em relação à Terry: o "sequestra", na ideia de não mais o abandonar. Embora todos que acompanharemos nessas tensas duas horas de tentativas desesperadas de sobrevivência pareçam, como já disse, abandonados. Inez mal tem onde morar. Como cabeleireira autônoma ela precisa reconstruir uma clientela que meio que não existe. E ainda de forma escondida, para não dar nas caras que seu filho, que talvez jamais devesse ser apartado dela independentemente das circunstâncias, agora se se encontra com ela de forma ilegal. É uma realidade crua, de uma cidade (no caso Nova York, mas bem que poderia ser outra metrópole), que a gente meio que não vê. Que está algumas camadas abaixo, longe da branquitude das paredes e das cercas ou da da higienização reforçada por práticas um tanto eugenistas.

 


 

Sim, porque nas aparências esse filme pode ser sobre uma mãe em fuga que não deseja mais se separar de seu filho, como uma leoa em torno de sua prole, brigando contra tudo e todos. Mas a ótima estreia de A.V. Rockwell também é uma produção sobre um mundo em transformação, que se altera, que se modifica, e que relega às pessoas mais vulneráveis os destinos mais implacáveis. Para que Terry, por exemplo, não seja localizado por agentes do Estado - que detém sua custódia -, Inez solicita a um amigo do Harlem, onde ela agora se refugia, documentos falsos (certidão de nascimento e cartão de seguridade social) para o menino. É uma forma paliativa de fugir da vigilância, que, aliás, só cresce (e é interessante notar como a obra exibe, em trechos transitórios, uma série de discursos de antigos prefeitos de Nova York, como Rudy Giuliani e Mark Bloomberg, que sequer parecem perceber o quão contraditórias são as suas falas sobre violência policial e proteção do cidadão, enquanto, por exemplo, citam a escritora Toni Morrison).

Todos esses componentes adicionam complexidade à produção, que jamais passa pano para seus personagens, que se apresentam como figuras complexas, ambíguas, nunca unilaterais. Quando, por exemplo, o antigo namorado de Inez, Lucky (William Catlett) reaparece em sua vida, ele pode ao mesmo tempo representar a presença (e a segurança) masculina, mas também a dúvida e a incerteza, especialmente em relação à Terry e a paternidade improvisada. Dentro de casa a vida doméstica pode ser problemática e incerta - e é assim pra qualquer pessoa. Mas quando o filme faz alguns saltos temporais em meio a traumas generalizados, desconfortos contínuos e promessas de melhoria, percebemos que é o exterior que torna tudo mais complexo. Especialmente em uma sociedade que ainda se movimenta pautada pela meritocracia. Como ser alguém na vida quando tu já arranca lá atrás? Quando sequer os teus documentos estão corretos? Quando o assédio da polícia é permanente? Quando a autoestima parece lá embaixo? Ao cabo esse é um filme duro, de realidade, que é reforçado pela fotografia granulada e pelo senso de agora. De quem precisa comer, precisa viver, agora. Não depois. O que, em tempos de Trump, pra piorar, não parece indicar uma perspectiva otimista.

Nota: 8,0 


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