De: Lone Scherfig. Com Sara Becker, Bérenice Bejo, Alondra Valenzuela, Daniel Brühl e Antonio de la Torre. Drama, Chile / Espanha / França, 2023, 116 minutos.
"Artistas são como vagalumes. Têm brilho próprio." Sim, A Contadora de Filmes (La Contadora de Películas) pode até ser aquele tipo de produção meio batida, que presta homenagem ao cinema, ao mesmo tempo em que evidencia o poder da arte como veículo de transformação - cultural, social, política. Só que nessa nova obra de Lone Scherfig, do oscarizado Educação (2009), tudo é tão salpicado de carisma, que é meio difícil de resistir. Ainda mais por se tratar de um projeto que viaja para a América do Sul, mais precisamente para o Chile dos anos 60 - década que antecederia o golpe de Estado (e a ditadura) de Pinochet -, para nos contar a história da jovem Maria Margarita (Alondra Valenzuela), uma menina apaixonada por cinema, a ponto de tratar as idas de fim de semana para o escurinho da sala da cidadezinha local, como um verdadeiro evento. Uma coisa quase ecumênica.
Só que esse não é um amor apenas de Margarita. O caso é que toda a sua família ama as produções cinematográficas - do pai Medardo (Antonio de la Torre) e da mãe Maria Magnolia (Berénice Bejo), até chegar aos seus irmãos Mirto (Beltran Izquierdo), Marcelino (Santiago Urbina) e Mariano (Elian Lobos). Todos se reúnem nos domingos para sessões entusiasmadas de O Homem que Matou o Facínora (1962), A Um Passo da Eternidade (1953) ou Spartacus (1960). E, nesse conjunto, tudo vai mais ou menos bem na rotina familiar: Medardo é o operário da mina local, que vê o mercado de salitre ser impulsionado por suas múltiplas possibilidades de uso. O gerente da mina, um certo Hauser (Daniel Brühl) parece tê-lo em alta conta, ainda que o que lhe interesse mesmo seja destinar galanteios à bela Magnolia. Só que aí vem um grave acidente que impedirá o patriarca de seguir seu trabalho, relegando-o eternamente a uma cama.
Em um período em que direitos trabalhistas ainda se apresentavam como incipientes, a despeito das reuniões quase clandestinas de trabalhadores, exibidas em algumas sequências, Medardo sai com uma mão na frente e outra atrás. O que resultará em severas dificuldades financeiras para todos os integrantes da família que, de um dia para o outro, veem o seu lazer preferido se esvair. Com dinheiro para apenas um ingresso de cinema frente à pobreza, surge o dilema: quem enviar para não apenas assistir o filme, mas relatar a experiência? Mirto parece não conseguir controlar a boca suja, ao proferir uma dúzia de palavrões por frase a cada sentença. Já Marcelino exaure a família, com um estilo rebuscado, entre o parnasiano e o romântico, que irrita a todos. Com Mariano a coisa também não flui tão bem, cabendo à Margarita o ofício de assistir a produções como Gata em Teto de Zinco Quente (1958), Se Meu Apartamento Falasse (1960) e Três Homens em Conflito (1966), entre outras, para contá-las a família, reunida na sala, depois.
É algo bonito e fantasioso, unindo a mágica fílmica já vista anteriormente em obras como A Rosa Púrpura do Cairo (1985) e Rebobine por Favor (2008), que convertem o amor pelo cinema em uma experiência anestesiante e bela. Pode não haver nada de mais aqui, mas não deixa de ser interessante notar como a arte surge, a todo momento, como ponto de ruptura, de quebra do status quo e de derrubada de certo conservadorismo reinante. Em certa altura, Margarita (interpretada por Sara Becker, na versão adulta) descobre, em companhia do seu eterno primeiro amor Maurício (Simon Beltran), que sua mãe anda frequentando, às escondidas, um bordel local, onde dançarinas se exibem com bustiês cheios de purpurina para senhores engomados. Lá pelas tantas, nem surpreenderá tanto a fuga de Magnolia, que desaparece sem deixar muito rastro, talvez indo atrás da plateia nunca encontrada. "Ele nunca pôde substituir o público imaginado dela", reflete alguém a certa altura, a respeito da relação de Medardo e Magnolia - ela que nutria sonhos secretos de ser uma dançarina. Arte, memória, política, patriarcado, violências, traumas, questões sociais. É tudo muito sutil. Tão sutil que a gente quase nem nota que a produção, baseada no romance de Hernán Letelier, conta com Walter Salles na produção. Um atrativo a mais.
Nota: 8,0
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