A ideia para o filme Divino Amor é absurdamente original. A trama viaja para o futuro para imaginar um Brasil do ano de 2027. Nele, o Estado definitivamente deixou de ser laico, a família tradicional está estabelecida exclusivamente no padrão homem, mulher e filho, a burocracia é galopante e o Governo funciona num misto de opressão religiosa e conservadorismo extremo. Enfim, é o tipo de distopia tão verossímil nesses recém-iniciados anos de Bolsonaro, Damares, Olavo de Carvalho e Alexandre Frota que a sensação, na verdade, é a de que não estarmos necessariamente vendo o futuro e, sim, o presente. Afinal de contas, hoje em dia, homem deve vestir azul e mulher deve vestir rosa. O Estatuto da Família busca restringir a sua composição a heteronormatividade. Deputados da bancada evangélica rezam o Pai Nosso na Câmara, em dia de votação de pautas. E por aí vai. Esse é o nosso Brasil da atualidade. Retrógrado. Cafona.
Em 2027 esses aspectos parecem apenas ter se ampliado. Ou se legitimado pelo voto - e aqui cabe saudar o diretor Gabriel Mascaro (Boi Neon) por ser uma espécie de visionário com esta pequena obra, que foi produzida e concluída antes das últimas eleições. No universo que ele concebe não existe mais o Carnaval, que foi agora substituído por um tipo de rave gospel em que fundamentalistas religiosos aguardam pela chegada do Messias. Pessoas que precisam de conselhos de algum pastor podem acessar uma espécie de drive thru da salvação em que liturgia e música sacra se misturam para expiação das dores dos fiéis. A tecnologia serve as instituições e para identificar pessoas pelo seu Estado civil - solteiro, casado, divorciado e, no caso das mulheres, se estão grávidas ou não. É o tipo de opressão que não é necessariamente escancarada, mas que estabelece rótulos e que busca uniformizar uma sociedade que, consequentemente, perde a sua identidade. Tudo é sombrio, triste, desolador.
A protagonista Joana (Dira Paes, em ótima performance) é uma escrivã de cartório profundamente religiosa, devota à idéia de fidelidade conjugal e que tenta evitar que casais se separem. Sim, é um dos objetivos do Estado impedir que uma de suas instituições máximas - no caso, o matrimônio - não seja arruinada. Que os casais continuem. Persistam. Sejam felizes na marra e superem as "fases ruins". Mas o que fazer quando ela própria tem as suas convicções questionadas, a partir de um evento que modificará a sua vida e a de seu marido Danilo (Julio Machado) para sempre? Incapazes de ter filhos, eles procuram todo o tipo de solução médica e tecnológica, com direito a cenas constrangedoras de busca de "fertilidade". Mas, e quando o milagre acontece, mas não é bem como se esperava, como lidar?
O filme, que mais parece uma espécie de apocalipse enfumaçado em cores neon, procurará lidar com essas questões, ao passo que mostrará as interações de Joana e Danilo na entidade que dá nome ao filme e que busca algo como "a ressignificação do casamento" por meio de terapia - o que deverá ocorrer com muito sexo entre os envolvidos, mas apenas como forma de estímulo, sem amor (o que dá conta da hipocrisia das famílias de bem que não se furtam em pular a cerca, tal qual ocorre na metafórica sequência de um cachorro no cio ainda no primeiro ato). Utilizando-se de longos planos, Mascaro inundará a tela de cenas em que os dogmas religiosos são desconstruídos, com os sujeitos se vendo reféns da mesquinharia que rege a grande maioria das igrejas, que jamais almejam o bem estar coletivo e, sim, apenas a satisfação individual de poucos, numa espécie de hedonismo às avessas.
Nota: 8,5
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